sexta-feira, 20 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Final)

Ferido e ensanguentado, arrastando de uma perna, Nauls engatinhava ao longo do corredor.
Não era só a perna, mas sua mente devia estar avariada, pois tinha certeza de ouvir o som de um motor acelerando. O transporte regular viera para levá-los para a segurança, para longe da repelente monstruosidade alienígena que rasgava o complexo na busca pelos últimos seres humanos.
Mas o avião não apareceria por meses, ele sabia.
O terror o fez rastejar mais rápido, ignorando a dor de sua perna quebrada.
O banheiro estava perto. Se arrastou até lá e trancou-se dentro. O murmúrio que tinha o perseguido, ficou mais alto.
Nauls se encostou à parede traseira, olhando em volta desesperadamente. Preso em uma caixa de madeira pequena, sem janelas, apenas o ventilador de pás finas. Uma pequena caixa, um peru magro embrulhado para o jantar de Natal, à espera do grande pai para começar a destrinchá-lo...
O murmúrio parou em algum lugar do outro lado da porta. Houve um arranhão na madeira. Um gemido baixo subiu das profundezas da garganta de Nauls, um som que não podia e não tentou controlar. Começou a tentar rasgar a madeira da parte de trás da cabine. O sangue começou a aparecer debaixo de suas unhas, enquanto arranhava os painéis.
No instante seguinte um golpe poderoso arrancou uma prancha da porta, que saiu em pedaços. Algo escuro estava começando a entrar.
Nauls colocar uma lasca de madeira irregular e pontuda contra sua garganta e deu-lhe um empurrão espasmódico...


O som do motor era alto no laboratório deserto.
No momento seguinte as paredes explodiram quando o trator atravessou-as, com sua enorme pá rasgando a sala pela metade.
Vidro e madeira quebrada por todo lado. A geladeira e sua carga de sangue congelado tombaram para o lado como um brinquedo.
A expressão selvagem de Macready no banco do motorista, se assemelhava àquela vista nos rostos de presos em instituições mentais. Tinha entrado no armazém de suprimentos pela janela quebrada e encontrado as peças removidas do motor do trator. Instinto e sorte tinham conduzido-o através da tempestade.
O congelamento formara placas negras em seu rosto e nas mãos expostas. Uma banana de dinamite entre os lábios. No assento ao lado, um par de grandes cilindros de metal escrito “hidrogênio". Não haviam sobrado balões meteorológicos para enviar em direção ao céu da Antártida. Macready tinha um destino diferente em mente para os tanques.
Saltou do trator.
Neve girava em torno dele, quando pegou a banana de dinamite dos lábios.
Estava sorrindo, meio louco.
— Ok, monstro — gritou para o interior do complexo. — Agora somos só eu e você! É cara a cara, se é que você tem uma. Vamos fazer uma pequena remodelação no lugar. Hora de deixar um pouco de ar fresco entrar, você gosta do ar local, não é?



Se acomodou no assento do motorista e ligou o motor. Acelerou, enviando a enorme máquina rasgando a próxima parede, a da enfermaria. Equipamentos e suprimentos médicos saíram voando. A mesa cirúrgica foi jogado contra a parede.
O grande trator tinha sido projetado para mover toneladas de gelo sólido e pedra. As paredes pré-fabricadas eram amassadas como papel alumínio sob suas pesadas lagartas.
O refeitório ficava ao lado; mesas, cadeiras, e alto-falantes agora silenciosos sumiram sob a pá implacável.
A voz de Macready era ouvida acima do vento, cantando uma canção popular mexicana irreverente, enquanto demolia o acampamento, enquanto seus olhos vasculhavam todos os cantos.
No meio da cozinha o gás vazava a partir de um cano quebrado, e o fedor de propano contaminou o ar momentaneamente antes de ser levado pelo vento. O trovador demente no banco do motorista ainda cantava.
De um canto distante, um braço com garras desapareceu, pela primeira vez se afastando de uma voz humana ao invés de ir na sua direção. A voz de Macready ecoou pelo corredor.
— Cante comigo se você conhece a letra, meu velho. Você gostaria do México... É quente e agradável por lá. Nada de gelo para trancá-lo por alguns milênios. Você gostaria de chegar lá, não? Tomar meu corpo e ir descansar na praia, pegar algumas senhoras para assimilar? Pena que você nunca vai chegar lá!
Vários outros cômodos foram destruídos antes do trator entrar pelo bar. Parou-o abruptamente e o fez recuar alguns metros.
— Parada Médica! — Anunciou para a tempestade, ainda assobiando sua canção alegre ao vento.
De alguma forma, uma garrafa de Jim Beam tinha sobrevivido ilesa ao caos.
— Gosta de uísque? — Gritou para o que sobrara do complexo, assim que arrancou a rolha. — Vamos lá, junte-se a mim para uma bebida. Vai ser bom para você! Faz nascer garras no seu peito!
Engoliu uma tragada substancial, sentindo o fogo escorrer para baixo da garganta e repousar em sua barriga.
Maravilha!
O trator desta vez atravessou a sala de recreação, pulverizando tudo. Estampidos intermitentes vinham do motor, bem debaixo do buraco do teto criado antes pela coisa. Um método inesperado de entrada.
— Droga, — o piloto murmurou com o sorriso ainda em seu rosto — sem gasolina. Bem, é hora de dar um passeio.
Enquanto brincava distraidamente com os tanques de hidrogênio, seus olhos observaram o buraco do teto, as portas restantes, o entulho acumulado.
Partículas de gelo trazidas pelo vento picavam seu rosto e mãos.
Verificou-as. As pontas dos dedos estavam negras como se tivesse transportado carvão, e estremeceu. Não de dor, pois estavam  dormentes, mas por saber o que poderia acontecer a eles.
Então se sentou no banco detrás e riu. Estava sentado, a se preocupar acerca do aspecto das pontas dos dedos, como uma maldita rainha da beleza.
Seu olhar vagava sem cessar sobre as ruínas.
— Docinho, vai ficar muito frio em breve. É melhor você fazer logo a sua jogada antes de morrermos. Quer dizer, eu sou apenas uma pessoa, e todo mundo sabe que os americanos têm melhor sabor do que os noruegueses, certo?
Virou a garrafa e tomou outro gole, mantendo os olhos fixos. Os faróis do trator ainda iluminavam os destroços.
— Eu sei que você está brava porque nós arruinamos a sua viagem, certo? Explodimos seu brinquedinho. Não tinha espaço para uma aeromoça, e o espaço para as pernas, definitivamente, não era de primeira classe.
Um ligeiro tremor sacudiu o trator e parou. Mac olhou para o buraco no telhado, em seguida, e em torno da sala de recreação devastada. Puxando seu isqueiro do bolso acendeu-o e segurou a chama perto do pavio da dinamite.
O tremor se repetiu um pouco mais forte.
Algo estava martelando na escuridão, uma constante e regular som que parecia vir de todos os lugares ao seu redor.
Levou um minuto para perceber que era o seu próprio coração.
— Queridinha — murmurou — eu sei que você está por perto. Aqui é o papai. Venha me ver!
O chão tremeu um pouco abaixo do trator.
Ele se levantou, olhando tenso para as áreas escuras, bem como aquelas iluminadas pelos faróis da máquina.
— Vamos! Venha pra mim, otário!
O trator foi atirado para o alto, vários centímetros.
Macready perdeu o equilíbrio e caiu para frente, balançando os braços. Encontrou-se olhando para algo que poderia ter sido um rosto. Uma garra avançou para ele, mas errou seu rosto.
O trator estava perto o bastante para aproximar-se do teto. Pulou acima dele e agarrou a borda do enorme buraco.
À coisa avançou pelo meio da carcaça do motor. As garras erraram suas pernas. Um silvo frustrado ecoou pela sala abaixo.
Trêmulo, Macready se firmou no telhado que ameaçava desabar a qualquer momento. Acendeu o pavio curto da dinamite e jogou-a na direção da cabine do trator.
Metade de um corpo grotesco surgiu a partir da abertura atrás de Macready, gritando em fúria. Algo duro e resistente como uma mangueira de borracha envolveu o torso do piloto, duas voltas, puxando-o para trás e apertando-o.
Naquele instante a explosão da dinamite inflamou os tanques de hidrogênio, enviando uma bola de fogo branco a 15 metros no céu noturno. Misturado com as chamas, os restos carbonizados da coisa.
A força da explosão empurrou Macready para longe do telhado, caindo num banco de neve. O membro que o prendera, agora sem vida, ainda estava enrolado em volta dele, queimando, assim como parte de sua jaqueta. Arrancou-a e a atirou de lado, em seguida,  rolou na neve até apagar a última das chamas que queimavam suas costas.




Não restara muito do acampamento.
Metade dele era uma ruina enegrecida fumegante, e o resto um monte de lixo, graças ao trator.
A tempestade acalmara consideravelmente.
Alguns pontos de fogo, ainda queimando, iluminavam as ruínas e as luzes do sul dançavam por cima delas.
Macready tropeçou caminhando através da devastação, com vários cobertores enrolados em torno dele, já que as parkas tinham sido consumidas pelas chamas ou jaziam enterradas sob os escombros, ou simplesmente estavam em algum lugar desconhecido. As várias camadas do cobertor protegiam seu corpo ferido do vento e do frio.
A dor o fez curvar-se duas vezes. Era difícil mancar até um lugar quente e empunhar o extintor de incêndio com muita precisão.  Murmurou algo, embora não houvesse ninguém para ouvi-lo. Finalmente desistiu e jogou de lado o extintor. Ouviu um som metálico, do fogão retorcido de Nauls.
A área do bar estava praticamente intocada pelo incêndio, aparentemente alguém lá encima decidira que agora que ele tinha se livrado definitivamente da coisa, poderia encher a cara durante o resto da noite.
Sorriu levemente. Estava ansioso para começar um pileque de cinco meses.
Encostou-se ao bar de madeira, feito artesanalmente, e acendeu um charuto do estoque não danificado.
Suas mãos estavam enroladas grosseiramente. Não encontrara luvas que prestassem, mas havia muita fita isolante nas ruínas da enfermaria. O que restou de suas mãos, de qualquer maneira, se beneficiou da bandagem.
Fumou um charuto e virou uma dose dupla (‘por favor, sem refrigerante’), em um copo um pouco lascado.
Algo agarrou-o pelo ombro.
Estava exausto demais para gritar.

Childs! Manchas brancas e negras manchavam a pele que fora exposta ao congelamento.
— Será que... você matou ele? Ouvi uma explosão.
A boca de Childs não estava funcionando muito bem. Seus lábios rachados estavam manchados de sangue seco. Uma rajada de vento fraco fez com que cambaleasse. A falta de alimentos e a exposição aos elementos externos tinha esgotado severamente a força do mecânico.
— Acho que sim — disse Macready.
— O que quer dizer, você acha? — Childs tropeçou para trás alguns passos.
Eles se olharam com desconfiança. De repente Macready estava alerta novamente.
— Sim, eu tenho certeza. — Fez um gesto com um dedo mumificado na direção do rosto do mecânico. — Está bastante mal... congelamento.
Childs manteve distância e exibiu a uma mão pálida inchada.
— Acho que vou perder a coisa toda. — Moveu seu pé direito, depois o esquerdo. Os movimentos foram débeis, instáveis. — Meus dedos já se foram.
Macready tinha visto uma das mesas de jogo por perto. Levou a garrafa de vidro, mancando até ela, e sentou-se na única cadeira com as pernas intactas.
O jogo de xadrez descansava em cima da mesa, o fio de energia arrebentado. Por algum milagre a caixa de peças havia sobrevivido ao cataclisma. Macready começou a arrumá-las no tabuleiro.
Os dois homens continuaram a olhar um para o outro com cautela.
— Então você conseguiu — disse Childs.



Macready terminou de montar as peças no tabuleiro de xadrez. Ímãs minúsculos mantinham as peças nos lugares, apesar do vento constante.
— Não fui o único, parece.
Childs encontrou um par de cobertores e envolveu-os em torno de seu corpo.
— O fogo vai manter a temperatura em todo o acampamento. Mas não vai durar muito.
Ele balançou a cabeça em direção à parede que faltava.
— Nem nós também.
— Talvez devêssemos tentar o rádio. Tentar obter alguma ajuda.
vTalvez a gente não devesse.
— Então, nós nunca o faremos — disse o mecânico com calma.
Macready, que fumava o charuto até que a ponta brilhasse vermelha, estendeu a mão para o meio de uma pilha e puxou um  pequeno cilindro de metal.
— Olhe o que eu encontrei. E funciona!
Cuidadosamente colocou o maçarico na mesa ao lado dele.
Childs observou o maçarico.
— Se você estiver preocupado, vamos fazer aquele seu exame de sangue.
— Se tivermos qualquer surpresa — o piloto respondeu — não estaríamos em condições de fazer nada sobre isso. O teste pode esperar.
Fez uma pausa, então alegremente perguntou: — Você joga xadrez?
Childs estudou o piloto, então foi até os destroços do lado de fora. Voltou carregando uma cadeira em boas condições e a colocou em frente da mesa de Macready.
— Acho que posso aprender.
O piloto sorriu e entregou ao mecânico a garrafa. Childs se inclinou para trás e bebeu a metade do que restava. Quando colocou a garrafa no chão, estava sorrindo.
Em torno deles os focos persistentes ardiam em meio a um mar de água congelada. 
Brasas brilhantes levadas pelo vento seguindo preguiçosamente para o céu noturno.
A fita fantasmagórica da aurora meridional fazia piruetas no alto, mascarando muitas das estrelas que surgiram na esteira da tempestade.
Macready cutucou o peão duas casas para frente...


FIM.




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