segunda-feira, 2 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 7)



Blair pairava sobre o microscópio. Colocou uma nova lâmina com nova amostra, examinou-a com cuidado e franziu o cenho. Afastando-se, esfregou os olhos e em seguida deu uma segunda olhada pela ocular.
— Doutor, venha aqui um segundo.
Cooper se aproximou e tomou o lugar do biólogo no instrumento quando Blair se afastou. O médico olhou por muito tempo, então se afastou e deu de ombros.
— Não entendo. Oque é que eu deveria ver? — Disse apontando para o microscópio.
Ao invés de responder,  Blair deu a volta e caminhou até o cadáver desfigurado, agora na mesa de centro. Cooper o seguiu, dando a Fuchs a oportunidade de olhar também no microscópio.
Blair indicou um dos crescimentos na forma de tendões que se projetavam da massa central do material escuro, viscoso e da carne parcialmente dissolvida, em seguida, apontou para o microscópio.
— É o tecido de uma dessas hastes.
Cooper aceitou isso. — O que você fez?
— Nada — olhou para seu assistente.
Fuchs olhou tão completamente confuso com o que viu através da ocular como seus companheiros.
— Que tipo de estrutura celular é essa?
—  Precisamente o meu ponto — disse Blair severamente.
—  Você fez uma pergunta, não um ponto.
— Não são o mesmo tecido?
Cooper interrompeu os dois cientistas. — Eu não consigo entendê-los, Blair. O que está tentando dizer?
— Não tenho certeza de que é qualquer tipo de estrutura celular. Biologicamente falando.
— Se é uma amostra de tecido, tem que haver estrutura celular — disse Cooper.
—  Será?
— Se não é, o material é inorgânico.
— É mesmo?
— Você não pode ter material orgânico desprovido de estrutura celular — acrescentou o médico exasperado.
— Não pode?
Cooper desistiu. — Olha,  não é realmente o meu campo, Blair. Sou um simples médico. Eu faço o meu melhor para reparar o conhecido, não decifrar o exótico. Vamos embalar o corpo e parar por hoje. Estou cansado.
— Eu também — acrescentou Fuchs sinceramente.
Cooper desabotoou o avental que não era mais branco, mas ao invés disso se assemelhava a uma tela de Jackson Pollock. Jogou-o no cesto de roupa em seu caminho para fora. Fuchs seguiu-o e descartou as luvas. Seu jaleco ainda estava relativamente limpo.
Blair retornou para a mesa para dar uma última olhada através do microscópio. O padrão peculiar não tinha mudado, na ausência de atenção, metamorfoseado em algo confortavelmente familiar.
A confusão de Cooper era compreensível. Mesmo o biólogo estava confuso.


O clima esquentou um pouco e a neve soprada pelo vento derretia um pouco mais rápido quando em contato com alguma coisa quente. Ela golpeava as paredes exteriores de metal corrugado do galpão.
Dentro do complexo principal, aquecedores mantinham os corredores e quartos agradavelmente quentes e úmidos. O umidificador também era uma necessidade vital. Era um paradoxo que apesar da presença da água congelada em todos os lugares, o ar da Antártida era cortante e seco. Pele rachada era um problema constante e Cooper estava sempre prescrevendo alguma coisa para isso.
Depois de cada banho os homens precisavam de lubrificante tanto quanto suas máquinas, pois a água quente do chuveiro os lavava dos óleos corporais. A caspa era um problema irritante e persistente, mas não grave.
Os relógios de parede no complexo marcavam  quatro e meia. Somente as luzes noturnas iluminavam os corredores e áreas de armazenamento, a sala de recreação vazia e a cozinha deserta. Um ronco suave era ouvido por trás de portas fechadas.
O sono chegava facilmente na terra branca.
Apenas uma seção ainda estava ocupada.
   
Determinado, Macready sentou-se no pequeno pub e continuou olhando para a tela da televisão.
Ele estava no último dos videotapes noruegueses.
No momento ele mantinha um olho na tela, enquanto inflava um balão de forma irregular em tons de carne. Este objeto misterioso logo assumiu o contorno bruto de uma mulher de tamanho natural.
O fôlego de Macready era fraco e ele estava tendo um momento difícil.
As proporções da sua amante de polietileno variavam.


 Algo na fita chamou sua atenção e ele parou de repente. Segurando o tubo de enchimento bem fechado com uma mão, ele estendeu a mão e bateu na tecla de reverso. Imagens riscadas como de um filme ruim surgiram, até que ele usou do "play" novamente.
Olhou para a tela.
Os noruegueses, de novo, trabalhando contra um céu pálido. Desta vez sem a neve soprando para obscurecer a imagem. Eles estavam vestidos para o trabalho pesado ao ar livre.
Enquanto observava, eles se separaram e se espalharam. A imagem mostrou momentaneamente o céu, quando o cinegrafista mudou sua posição sem desligar a câmera. Quando se firmou de novo, mostrou a equipe de pesquisadores estrangeiros no gelo plano. Seus braços estavam esticados um em direção ao outro, como se estivessem tentando medir algo.

Dentro da circunferência de seus braços estendidos havia uma enorme mancha escura no gelo. O perímetro que haviam formado com seus corpos englobava apenas uma pequena parte do todo.
Isso foi o que atraiu a atenção de Macready. A mancha escura parecia estar sob a superfície, em vez de encima dela.
O quadro ficou preto, em seguida, voltou, e ele podia ouvir os noruegueses murmurando em segundo plano.
O local não tinha mudado, mas já tinha passado algum tempo. No fundo o céu era azul ao invés de branco. Os noruegueses podiam ser vistos andando em torno da forma escura, quase oval. Os limites estavam claramente marcados com pequenas bandeiras usadas em sondas de gelo.
Mais uma vez a cena se desvaneceu. Quando a imagem voltou Macready se viu assistindo três homens com brocas de gelo abrindo furos em um pequeno triângulo acima do centro escuro. A câmera balançava conforme seu operador se aproximava.
Preto, a câmera apontada para baixo filmava um grande buraco no gelo. Algo escuro e metálico.
Macready se inclinou mais perto, agora mais do que curioso.
A próxima sequência mostrou que os homens usavam as furadeiras para fazer pequenos buracos, espalhadas no gelo, utilizando bandeiras como marcas de posicionamento. Outros em torno dos locais de perfuração, trabalhando com pequenas caixas em suas mãos.
Macready franziu a testa, murmurando para si mesmo. — É muita coisa para perfurar. Dinamite, talvez? Ou cargas de térmite?
Na próxima imagem registrada, as bandeirinhas estavam penduradas frouxamente. A vista era de muito longe e não havia um norueguês à vista. Várias pequenas explosões atiraram nuvens de gelo em pó, confirmando a estimativa feita pelo piloto a respeito do que os homens estavam fazendo uso de explosivos.


 
De repente, a visão guinou violentamente. Em seguida a câmera parecia ter sido jogada através do ar, como uma tremenda explosão.
Macready assustado pulou da cadeira. De repente, ele estava acordado.
— O que...
A fita continuava a tocar a imagem agora distorcida, mostrando apenas fundo branco. Uma linha escura irregular corria o comprimento da imagem.
Demorou para Macready alguns segundos até perceber que a linha representava uma rachadura na lente da câmera.
Esquecendo sua companheira inflada, Macready apertou o botão de rebobinar.
O manequim foi ejetado, voando ao redor do pub até que ficou sem ar e caiu inerte ao chão.


Estava tão silencioso no canil quanto no resto da estação. Talvez mais tranquilo, pois nenhum dos cães de trenó roncava.
Nem todos estavam dormindo. Alguns descansavam preguiçosamente curvados uns contra os outros companheiros, lambendo as patas, bocejando, coçando as costas contra o chão duro, ou simplesmente olhando com olhos semicerrados para nada em particular.
Apenas um deles estava completamente acordado. O curativo faltando no quadril novamente. Estudava seus companheiros sonolentos com calma.
Vários minutos depois trotou para um aglomerado de cinco cães, sentou-se na frente deles e continuou olhando estranhamente intenso, mais do que como um canino normal. Aos poucos, os cinco cães tomaram conhecimento de que alguma coisa estava acontecendo. Um gemeu. Eles começaram a despertar, consciente de que algo peculiar estava no meio deles. Um gemido incerto veio de um segundo animal. Nada disto alterou a postura do recém chegado ao canil. Ele continuou sentado, imóvel e olhar para os outros. O torso anormalmente rígido, e não ofegava.
E havia algo mais. Os outros cães estavam cientes, como um desconforto. Um homem teria notado imediatamente.
O novo cão já não possuía pupilas. Os olhos se tornaram sólidos, duas esferas negras sem brilho.
Vários deles, confusos, submetidos a este olhar inflexível, começaram a andar pelo canil. Até agora, eles ainda estavam mais confusos do que assustados. Vários deles começaram a rosnar para o recém-chegado.
Ainda assim, o novo cão permaneceu congelado no lugar. O rosnar em torno dele começou a ficar mais alto. Vários dos outros cães acordaram e juntaram-se ao ritmo e resmungos. Instintivamente começaram a circundar o estranho. Este recém-chegado não estava reagindo como um cão deveria. A falta de qualquer tipo de resposta estava começando a se enfurecer os outros habitantes do canil.
Um latiu para o husky, em seguida, um segundo fez o mesmo. O rosnar se tornou mais frenético. Como uma mente, três dos animais pularam simultaneamente sobre o novo cão.


Macready fascinado e absorvido com a filmagem, e o que se dera imediatamente anterior à violenta explosão e posterior a quebra da lente da câmera, ouviu o clamor distante do canil. Relutantemente, ele se afastou para longe do monitor, depois de desligá-lo com o controle e saiu do bar. Ficou parado em silêncio no corredor deserto, então seguiu em direção aos quartos de dormir, em silêncio, exceto pela balburdia dos cães que ia aumentando.
Ele parou fora de um dos cubículos. A porta estava aberta, olhou para dentro
Clark estava sob os cobertores, roncava. Macready hesitou.
— Clark. Ei Clark!
Não houve resposta. Macready aproximou-se da cama e estendeu a mão para empurrar o braço do tratador. Irritado, Clark se virou para o lado e puxou as cobertas em torno de seus ombros.
Macready estendeu a mão e apertou as narinas do tratador, cortando-lhe o ar. Isso fez com que Clark sentasse rapidamente.
Ele piscou para o intruso, muito grogue para estar bravo de verdade.
— Que ideia é essa, Mac? O que é?
— Não está ouvindo? — Macready apontou com o dedo na direção da porta. A cacofonia do canil era claramente audível.
— A cachorrada enlouqueceu. Se deixar esses vira-latas acordarem todo mundo, os caras vão fazer comida de cachorro de você. Cuide disso!
— Que inferno!
 Clark balançou as pernas para fora da cama, inclinou-se e esfregou os olhos enquanto Macready desaparecia no corredor. Tendo cumprido a sua responsabilidade, o piloto estava ansioso para voltar para o vídeo.
Clark se atrapalhou para vestir suas calças. Gostava de seus animais, mas às vezes até mesmo as melhores equipes de cães de trenó podiam ser um pé no saco. Eram criaturas tensas, o menor desentendimento era suficiente para o grupo inteiro pirar. A disputa pela posição de macho-alfa, sobre um pedaço particular de alimento, sobre qualquer coisa, exceto privilégios de acasalamento (todas as fêmeas eram esterilizadas) bastava para criar um frenesi sem sentido.
Ele não se importava com isso e não ficava surpreso quando acontecia. Era da natureza de cães de trenó. Mas às cinco da manhã? Ele tinha que acabar com isso, é claro, e não apenas porque o ruído poderia interromper o sono de beleza de alguém. Os cães eram valiosos. Childs e Palmer e Macready cuidavam de suas máquinas. Cabia a Clark cuidar daqueles de quatro patas.
O aquecimento do corredor era automaticamente desligado durante os períodos de sono. Seu corpo protestou por ter sido arrastado para fora da cama quente tão cedo. Podia ouvir o vento assobiando avidamente acima.
Sonolento e irritado, virou a esquina do corredor que dava para o canil. O barulho no canil era mais alto agora, muito mais alto do que ele esperava. Correu para a porta. Soava como cães de trenó atacando um urso.
Confuso, se atrapalhou deslizando a trava da porta. — Agora, o que está acontecendo...
Assim que a porta se abriu, alguma coisa bateu-lhe ao peito com força suficiente para mandá-lo cambaleando para trás, com os braços balançando para manter o equilíbrio. Sentiu o mesmo que quando em uma tarde de verão, Childs tinha acidentalmente acertado-o, durante uma partida de rúgbi no gelo. A respiração se fora por conta do diafragma comprimido.
Os dois cães que o tinham golpeado ficaram de pé lentamente e arrastaram-se de volta para o canil choramingando. De dentro vinha um rugido dos infernos, uma sinfonia grotesca de latidos e rosnados, grunhidos e ganidos frenéticos.
E um guinchar sobrenatural...


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