sábado, 23 de janeiro de 2016

Don't Look Now - Daphne du Maurier (Parte 3)


 


A primeira coisa que John fez pela manhã foi requisitar uma ligação telefônica para o diretor da escola preparatória e avisou da sua partida para o gerente na recepção.


Fizeram as malas enquanto aguardavam a ligação.

Nenhum deles se referiu aos acontecimentos do dia anterior, o que não era necessário. John sabia que a chegada do telegrama e o pressentimento de perigo dito pelas irmãs fora coincidência, nada mais, mas era inútil iniciar uma discussão sobre isso. Laura estava convencida, mas sabia que era melhor manter seus sentimentos para si mesma.

Durante o café da manhã discutiriam formas e meios de chegar em casa. Deveria ser possível conseguir lugar para o carro no trem especial que ia de Milão até Calais, uma vez que era início da temporada. De qualquer forma o diretor havia dito que não havia urgência.

A ligação para a Inglaterra veio enquanto John estava no banheiro e Laura atendeu. Ele entrou no quarto alguns minutos depois. Ela ainda estava falando, mas ele poderia dizer a partir da expressão em seus olhos que estava ansiosa.

Miss Hill relatou que Johnnie tinha tido uma noite agitada no hospital e o cirurgião poderia ter que operar, mas a menos que fosse absolutamente necessário. Tiraram um raio-X e o apêndice estava em uma posição complicada, não seria simples.

— Aqui, dê para mim! — Disse John.

A voz suave, mas um pouco tímida da esposa do diretor veio pelo receptor.




 — Eu sinto muito estragar seus planos — disse ela — mas Charles e eu sentimos que deveriamos avisá-los, e que o pequeno pode se sentir um pouco melhor se vocês estiverem por perto. Johnnie é muito corajoso, mas é claro, ele tem febre. Isso não é incomum, o cirurgião disse que é esperado nas circunstâncias em que se encontra. Às vezes um apêndice pode se deslocar ao que parece, e isso torna tudo mais complicado. Ele vai decidir sobre a operação esta noite.

— Sim, claro, nós entendemos plenamente.



— Por favor, diga a sua esposa para não se preocupar. O hospital é excelente, uma equipe muito boa, e temos toda a confiança no cirurgião.

— Sim, sim.

Então interrompeu porque Laura estava fazendo gestos ao lado dele.

— Se não conseguirmos vaga para o carro no trem, eu posso ir de avião — disse ela. – Eles com certeza encontrarão um assento. E pelo menos um de nós estará lá esta noite.

Ele assentiu com a cabeça.

— Muito obrigado senhora Hill. Nós vamos conseguir voltar à tempo, tenho certeza que Johnnie está em boas mãos. Agradeça ao seu marido por nós. Adeus.

Desligou o telefone e olhou à sua volta para as camas desarrumadas, malas no chão, lenços de papel espalhados. Cestas, mapas, livros, casacos, tudo o que tinham trazido com eles do carro.

— Deus — disse ele — que maldita confusão! Que bagunça!

O telefone tocou novamente. Era o porteiro dizendo ter conseguido reservar um lugar no trem especial para eles na noite seguinte.

— Olhe — disse Laura que havia tomado o telefone — você consegue um assento no avião do meio-dia, de Veneza para Londres? É imperativo que um de nós esteja em casa esta noite. Meu marido poderá ir depois.

— Espere! — Interrompeu John. — Não há necessidade de pânico. Certamente vinte e quatro horas não fará diferença.

Ansiedade drenara a cor de seu rosto. Ela se virou para ele.

— Talvez não para você. Eu perdi uma filha, e não vou perder outro.

— Tudo bem, querida, tudo bem...

Colocou a mão no braço dela, mas ela afastou-se com impaciência e continuou dando instruções pelo telefone. John voltou-se para sua mala. Não adiantava dizer nada. Melhor para ele seria agir como ela queria. Poderiam, é claro, pegar o avião, e então, quando tudo estivesse bem, e Johnnie restabelecido, voltar e buscar seu carro, dirigindo para casa através da França como haviam feito até Veneza. Seria uma senhora despesa, mas seria melhor do que Laura ir pelo ar e ele com o carro no trem de Milão.

— Podemos se quiser, ir de avião — ele começou timidamente explicando a ideia repentina.

Ela não queria ouvir.

— Isso realmente seria um absurdo — disse impaciente. — Estarei lá esta noite, e você segue de trem, é o que importa. Além disso, vamos precisar do carro no caso de ir de casa para o hospital. E nossa bagagem? Nós não poderíamos sair e apenas deixar tudo isso aqui.




Não. Ideia boba. Fora apenas... Bem, ele estava tão preocupado com Johnnie quanto ela, embora não o revelasse.

— Vou descer para falar com o porteiro — disse Laura. — Eles sempre são mais eficientes com a gente do lado. Tudo o que eu quero é fazer a minha mala. Só precisarei dela. Você pode depois levar todo o resto de carro.

Ela não tinha saído do quarto cinco minutos quando o telefone tocou. Era Laura.

— Querido, não poderia ser melhor! Conseguiram um vôo charter que sai de Veneza em menos de uma hora. A lancha especial sai direto de San Marco em cerca de dez minutos. Alguns passageiros cancelaram. Estarei em Gatwick em menos de quatro horas.

— Vou descer imediatamente — disse e foi juntar-se a ela na recepção.






Já não parecia ansiosa, mas cheia de propósito. Estava a caminho de casa. Ele continuou desejando que pudessem partir juntos. Não podia suportar a ideia de ficar em Veneza, depois que ela se fosse, e o pensamento de dirigir até Milão, passar uma noite triste no hotel, sozinho, o dia arrastando-se interminável, as longas horas no trem na noite seguinte, encheu-o de depressão, independentemente da vontade de estar logo com Johnnie.

Caminharam para San Marco, o brilhante Molo depois da chuva, um pouco de brisa soprando, os cartões postais e cachecóis e lembranças turísticas tremulando nas barracas, os próprios turistas passeando contentes, como fora para eles um dia antes.




 — Vou ligar pra você de Milão — disse para ela. — Os Hills irão conseguir-lhe uma cama, eu suponho. E quando você estiver no hospital, vão me dar notícias. Faz parte do contrato. Você é bem-vinda para eles.

Os passageiros desciam do pátio para o estágio abaixo carregando bagagens de mão com a Union Jack estampada nelas. Em sua maioria pessoas de meia-idade, e o que parecia serem dois ministros metodistas guiando o grupo. Um deles avançou em direção a Laura, estendendo a mão, mostrando uma fileira brilhante de dentes quando sorriu.

— Você deve ser a senhora que irá se juntar a nós para o vôo de volta. Seja bem-vinda a bordo e à Irmandade. Estamos todos muito satisfeitos em conhecê-la. Desculpe-me por não ter um lugar para seu marido também.

Laura virou-se rapidamente e beijou John com um tremor no canto de sua boca.

— Você acha que eles vão cantar hinos no avião? — Ela sussurrou. — Cuide-se, benzinho. Ligue para mim esta noite.

O piloto fez soar a buzina e no momento seguinte Laura descia os degraus para a lancha, ficando de pé entre a multidão de passageiros, acenando com a mão, seu casaco caro sobressaindo entre os mais sóbrios de seus companheiros.



 
Ele afastou-se da borda de atracação e ficou assistindo com um sentimento de imensa perda enchendo seu coração. Então se virou e voltou ao hotel.




Não havia nada, pensou enquanto olhava o quarto do hotel, tão melancólico como um quarto desocupado, especialmente quando os sinais recentes de ocupação ainda eram visíveis. As malas de Laura sobre a cama, traços de pó sobre a penteadeira. Um lenço de papel com uma mancha de batom, jogado no cesto dos papéis. Mesmo um velho tubo de pasta de dente espremido, deitado na prateleira de vidro acima do lavatório. Sons do tráfego vindo do Grande Canal através da janela aberta, mas
Laura não estava mais lá para ouvi-los, ou assistir da pequena varanda.


 
O prazer tinha ido embora. O sentimento também.

John terminou a arrumação, deixando toda a bagagem pronta para ser recolhida e desceu para pagar a conta. O funcionário da recepção dava boas-vindas a recém-chegados.

As pessoas estavam sentadas no terraço com vista para o Grande Canal lendo jornais, um dia agradável esperando para ser explorado.

Decidiu almoçar cedo no terraço do hotel, em um local familiar, e em seguida o porteiro levaria suas bagagens para uma das balsas que fazia a travessia entre San Marco e Porta Roma, onde seu carro esperava guardado na garagem.

O garçom, seu amigo especial, deixara o serviço, e a mesa onde geralmente se sentava estava ocupada por recém-chegados, um casal em lua de mel, disse a si mesmo com azedume, observando a alegria, os sorrisos, enquanto sentado em uma pequena mesa para duas pessoas, por trás de um vaso de flores.

Ela está voando a esta altura, a caminho de casa. Tentou imaginar Laura sentada entre os ministros metodistas, contando-lhes sobre Johnnie doente no hospital, e Deus sabe o que mais.
As irmãs gêmeas podiam ficar sossegadas, agora que seus desejos tinham sido realizados.
O almoço acabou sem tempo para uma xícara de café no terraço. Seu desejo era fugir o mais rapidamente possível, buscar o carro, e seguir sem parar até Milão.

Despediu-se do gerente na recepção e acompanhado por um porteiro que havia trazido sua bagagem num carrinho com rodas, foi mais uma vez até o cais de embarque em San Marco. Assim que entrou na balsa a vapor, com sua bagagem amontoada ao lado dele, e uma multidão de pessoas se acotovelando ao seu redor, sentiu uma pontada momentânea de tristeza por estar deixando Veneza.

Quando viria até ali de novo? No próximo ano... Em três anos...

Lembrou-se da primeira vez em lua de mel, há quase dez anos, e em seguida uma segunda visita rápida antes de um cruzeiro, e agora estes últimos dez dias que terminaram tão abruptamente.


O sol brilhava na água, turistas de óculos escuros desfilavam para cima e para baixo, o Molo e o terraço de seu hotel ficaram fora de vista, o ferry abrindo seu caminho pelo Grande Canal.

Tantas coisas para guardar. Amava as fachadas, varandas, janelas, a água batendo nas escadas de palácios decadentes, a pequena casa vermelha onde d'Annunzio viveu com o seu jardim, e muito em breve a balsa teria virado à esquerda na rota para a Piazzale Roma, e perderia a melhor visão do canal, o Rialto, os novos palácios.

 
Outra balsa estava passando por eles no sentido contrário, repleta de passageiros, e por um breve momento ele desejou poder trocar de lugar, estar entre os turistas felizes com destino a Veneza, e tudo o que ele tinha deixado atrás de si.

Então ele a viu.

Laura e as irmãs gêmeas ao seu lado, e Laura, ela... seu rosto uma expressão de angústia.



Ele olhou surpreendido, espantado demais para gritar, para acenar, e mesmo que o fizesse, nunca teriam ouvido ou visto, pois sua balsa já tinha passado e elas estavam indo na direção oposta.



Que diabo tinha acontecido? Deveria ter havido um problema com o voo charter que nunca decolou, mas, nesse caso, por que Laura não lhe telefonou no hotel? E o que essas malditas irmãs estavam fazendo com ela? Teria ela encontrado-as no aeroporto? Coincidência? E por que ela estava tão abalada? Nãopodia pensar em nenhuma explicação. Talvez o voo tivesse sido cancelado. Laura, é claro, voltava para o hotel, esperando encontrá-lo lá, de seguir com ele para Milão e pegar o trem na noite seguinte. Que confusão! A única coisa a fazer era telefonar para o hotel imediatamente assim que sua balsa chegasse à Piazzale Roma e dizer-lhe para esperar, que ele iria voltar e buscá-la.

A debandada de costume se seguiu quando a balsa chegou a plataforma.
Tinha que encontrar um carregador para levar sua bagagem e, em seguida, achar um telefone. Providenciar trocados e encontrar o número atrasou-o ainda mais. Quando finalmente conseguiu, felizmente o funcionário da recepção que conhecia ainda estava trabalhando.

— Olhe, aconteceu uma confusão terrível — começou a dizer, e explicou como Laura estava à caminho do hotel, e que a vira com duas amigas em um dos ferrys. Será que o funcionário poderia dizer-lhe para esperar?

— Em qualquer caso, diga para que espere. Vou o mais rápido que puder.

O funcionário entendeu perfeitamente e John desligou.

Graças a Deus, Laura não tinha aparecido antes dele ter conseguido ligar, pois teriam dito a ela que ele estava a caminho de Milão. O carregador estava esperando com a sua bagagem, e pareceu mais simples andar com ele até a garagem, entregar tudo para o cara no escritório e pedir-lhe para guardá-la por uma hora, quando deveria estar voltando com sua esposa para pegar o carro.

Em seguida voltou para a estação de desembarque para esperar o próximo ferry para Veneza. Os minutos se arrastavam e ele ficava imaginando o que dera errado no aeroporto e por que Laura não tinha telefonado. Não adianta conjecturar. Ela iria contar-lhe toda a história no hotel. Uma coisa era certa: não permitiria que Laura e ele próprio encontrassem novamente as irmãs, e que se metessem com seus assuntos. Ele podia imaginar Laura dizendo que elas também tinham perdido o voo, e se poderiam ir juntos para Milão?

Finalmente o ferry atracou e ele pisou a bordo. Um anticlímax, rever as paisagens familiares que ele tinha se despedido nostálgico, pouco tempo atrás! Nem sequer olhou para elas desta vez, tão decidido que estava de chegar ao seu destino. Em San Marco havia mais pessoas do que nunca, multidões andando lado a lado.

Quando chegou ao hotel e empurrou a porta de balanço, esperava ver Laura e, possivelmente, as irmãs, esperando na sala à esquerda da entrada. Ela não estava lá. Foi até o balcão. O funcionário da recepção com que ele tinha falado ao telefone estava ali de pé, conversando com o gerente.



— Minha esposa chegou? — John perguntou.

— Não, senhor, ainda não.

— Que estranho. Tem certeza?

— Absolutamente certo, senhor. Eu estive aqui desde que me telefonou às quinze para as duas. Não deixei a mesa.

— Eu não entendo. Ela estava em um dos vaporettos que passam pela Accademia. Ela teria desembarcado em San Marco cerca de cinco minutos depois e viria para cá.

O funcionário parecia perplexo. — Não sei o que dizer. A signora estava com amigas, foi o que o senhor disse?

— Sim. Não exatamente amigas, mas conhecidas. Duas senhoras que conhecemos em Torcello ontem. Fiquei espantado ao vê-la no vaporetto, e, claro, assumi que o voo tinha sido cancelado, e que tinha de alguma maneira encontrado-as no aeroporto e decidiu voltar para cá, para me pegar antes de eu saisse.

Oh inferno, o que estava fazendo Laura?

— Talvez a signora ficou com suas amigas. O senhor sabe onde elas estão hospedadas?



— Não. — Disse John. — Eu não tenho a menor idéia. Além do mais, eu nem sei os nomes das duas senhoras. Eles eram irmãs gêmeas. Mas por que ir para o hotel delas e não para aqui?

A porta vai-e-vem se abriu, mas não era Laura. Dois hóspedes.

O gerente invadiu a conversa.  – Vou dizer o que farei. Telefonarei para o aeroporto e verificarei o voo. — Sorriu como se desculpando.

— Sim, faça isso. Podemos descobrir o que aconteceu lá.

Acendeu um cigarro e começou a andar para cima e para baixo do hall de entrada. Uma maldita confusão tudo aquilo!

O gerente já falava ao telefone, mas seu italiano era muito rápido para John acompanhar a conversa. Finalmente, desligou.



 — A situação ficou ainda mais misteriosa — disse ele.  — O voo charter não foi adiado, decolou no horário com todos os passageiros. Não houve problemas. A signora deve simplesmente ter mudado de ideia.  — Seu sorriso era mais de desculpas do que nunca.

— Mudou de ideia — John repetiu. — Mas por que diabos ela faria isso? Ela estava ansiosa para estar em casa hoje à noite.

O gerente deu de ombros. – O senhor sabe como são as mulheres, senhor. Sua esposa pode ter pensado que depois de tudo ela preferiria pegar o trem para Milão. Eu garanto que a reserva foi feita corretamente e era um avião Caravelle, perfeitamente seguro.

— Sim, sim — disse John impaciente. — Não o culpo. Eu simplesmente não consigo entender o que a induziu a mudar de ideia, a menos que estas duas senhoras tenham convencido-a.

O gerente estava em silêncio. Não conseguia pensar em nada para dizer. O funcionário da recepção parecia igualmente preocupado. — É possível — ele se aventurou — que não fosse a signora que viu no vaporetto?

— Oh, não, era minha esposa, eu lhe garanto. Eu a vi tão claramente quanto posso ver você. Eu poderia jurar em um tribunal.

— É lamentável — disse o gerente — não sabermos o nome das duas senhoras, ou o hotel onde estavam hospedadas. Disse que encontrou estas senhoras no Torcello ontem?

— Sim ... Mas apenas brevemente. Não tenho certeza se estavam hospedadas por lá. As vimos no jantar em Veneza depois.

Hóspedes chegaram com a bagagem para o check-in e o funcionário foi obrigado a atendê-los. John se virou em desespero para o gerente.

— Você acha que seria bom telefonarmos para Torcello, caso as pessoas de lá saibam o nome das senhoras, ou onde estavam hospedados em Veneza?

— Podemos tentar — respondeu o gerente. — É pequena a probabilidade de conseguirmos, mas podemos tentar.

John retomou seu ritmo ansioso, o tempo todo acompanhando a porta de vai-e-vem, esperando, orando, para ver o casaco vermelho de Laura.

Mais uma vez, seguiu-se o que parecia uma interminável conversa telefônica entre o gerente e alguém em Torcello.

— Diga-lhes que são duas irmãs — disse John — duas senhoras idosas vestidas de cinza, e uma senhora era cega.

O gerente concordou. Ele estava dando uma descrição detalhada. No entanto, quando  desligou,
balançou a cabeça. O gerente do hotel disse que se lembra bem das duas senhoras, mas elas foram lá apenas para o almoço. Não sabe seus nomes.

— Bem, então não há nada a fazer senão esperar.

John acendeu o terceiro cigarro e saiu para o terraço. Olhou para o canal, buscando as cabeças das pessoas em navios que passavam, barcos a motor, mesmo gôndolas.

Os minutos passaram em seu relógio, e não havia nenhum sinal de Laura.



Um terrível pressentimento importunava-o, de que tudo fora premeditado, que Laura nunca teve a intenção de pegar o avião, que ontem à noite no restaurante ela tinha se encontrado com as irmãs. Oh Deus, pensou, isso é impossível, estou paranóico.


No entanto, por que, por quê? Não, o encontro no aeroporto fora fortuito, e algum motivo incrível tinha persuadido Laura a não embarcar no avião, uma de suas visões psíquicas, que a aeronave cairia, e que ela deveria retornar com elas para Veneza. E Laura, em seu estado de extrema sensibilidade, sentiu que deviam estar certas e engoliu tudo sem questionar.





Mas por que ela não voltou para o hotel? O que estaria fazendo?

domingo, 17 de janeiro de 2016

Don't Look Now - Daphne du Maurier (Parte 2)



O hotel junto ao Grande Canal tinha um ar acolhedor.

O funcionário sorriu quando lhe entregou a chave. O quarto era familiar, igualzinho em casa, com as coisas de Laura dispostas ordenadamente sobre a penteadeira, mas com uma leve atmosfera festiva de estranheza, de emoção, que apenas um quarto de férias é capaz. Era nosso naquele momento, mas não mais do que isso. Enquanto estávamos nele nós lhe trazíamos vida. Quando partirmos, ele não existirá mais, desaparecerá no anonimato.

John girou ambas as torneiras no banheiro, a água jorrando para o banho, o vapor subindo. Agora, pensou, finalmente é o momento para fazer amor, e voltou para o quarto, e ela compreendeu e abriu os braços e sorriu.

Abençoado seja depois de todas essas semanas se contendo.



— É o seguinte — ela disse mais tarde ao espelho, prendendo os brincos. — Não estou com muita fome. Vamos comer no restaurante do hotel?

— Deus, não! — Ele exclamou. — Com aqueles casais sombrios nas outras mesas? Estou faminto e feliz. E quero ficar bêbado!

— Nada de luzes brilhantes e música, não é?

— Não, não... Quero alguma cave pequena, escura e sinistra, cheia de amantes com as esposas de outros.

— Hum. Sabemos o que isso significa. Você vai se concentrar em alguma adorável italiana de dezesseis anos e sorrir para ela durante o jantar, enquanto eu estou fico sóbria, e com algum sujeito feio me encarando.

Saíram rindo na noite quente e suave, havia magia ao redor, por todos os lugares.

— Vamos caminhar — disse ele — vamos andar e abrir o apetite.





Inevitavelmente foram parar no Molo, com suas gôndolas dançando sobre a água, as luzes misturando-se com a escuridão. Havia outros casais passeando pela mesma causa, sem rumo, para um lado e para outro, sem propósito, e marinheiros em grupos barulhentos, e as meninas de olhos escuros sussurrando em saltos altos.

— O problema — disse Laura — é que andar em Veneza torna-se compulsivo uma vez que comece.
Só até a ponte seguinte, você diz, ai então até a próxima. Tenho certeza de que não há restaurantes por aqui, estamos quase nos jardins públicos. Vamos voltar. Eu sei que há um restaurante em algum lugar perto da igreja de San Zaccaria, tem uma rua estreita que vai dar nele.

— Se seguirmos pelo Arsenal, cruzando essa ponte no final, tomando a esquerda, sairemos do outro lado de San Zaccaria. Já fizemos isso outro dia.

— Sim, mas era dia. Podemos nos perder, o caminho não é muito bem iluminado.

— Não comece. Tenho instinto para essas coisas.

Eles viraram na Fondamenta dell'Arsenale e atravessaram a pequena ponte até o Arsenal propriamente, e assim por diante, passando a igreja de San Martino. Havia dois canais à frente, um seguindo a direita, e outro a esquerda, com caminhos estreitos ao lado de cada um. John hesitou. Por qual deles tinham caminhado no dia anterior?

— Vê — protestou Laura — perdidos, como eu disse.

— Bobagem — respondeu ele com firmeza. — Esquerda, me lembro da pequena ponte.




 O beco era estreito, as casas de ambos os lados do canal pareciam fechar-se sobre ele, e durante o dia, com o reflexo do sol sobre a água e as janelas das casas abertas, as roupas de cama penduradas aos balcões, um canto de canário em uma gaiola, trazia uma impressão de calor e de abrigo. Agora no escuro, as janelas das casas fechadas, a umidade, era uma cena completamente diferente, negligenciada, pobre, de barcos ancorados ao longo de degraus escorregadios e entradas escuras que pareciam caixões.

— Juro que não me lembro desta ponte — disse Laura fazendo uma pausa e segurando-se no corrimão. — Não gosto da aparência do beco.

— Há uma lâmpada na metade do caminho. Sei exatamente onde estamos... Não estamos muito longe do bairro grego.

Atravessaram a ponte e estavam prestes a mergulhar no beco quando ouviram o grito. Veio certamente de uma das casas do lado oposto, mas qual delas era impossível dizer. Com as janelas fechadas, cada uma delas parecia inabitada.
Viraram-se na direção do som.

— O que foi isso? — Laura sussurrou.

— Alguns bêbados ou outra coisa qualquer — disse John brevemente. –Vamos continuar.

Parecera mais com alguém que está sendo estrangulado, o grito reprimido pela asfixia.

— Devíamos chamar a polícia — disse Laura.

— Oh, pelo amor de Deus – ele deixou escapar. Onde ela pensa que está? Piccadilly?

— Bem, pra mim chega, é sinistro — ela respondeu e começou a afastar-se.

John hesitou quando viu uma pequena figura que de repente se moveu numa entrada abaixo das casas opostas, e, em seguida, pulou em um barco estreito.

Era uma criança, uma menina com não mais do que cinco ou seis anos, vestindo um casaco curto sobre sua saia e um capuz vermelho cobrindo a cabeça.



 
Havia quatro barcos ancorados e ela começou a saltar de um para o outro com uma agilidade surpreendente, com a intenção, ao que parecia de fuga. Uma vez seu pé escorregou e ele prendeu a respiração, pois ela estava prestes a perder o equilíbrio; em seguida ela se recuperou e pulou para o barco mais longe. Inclinando-se, puxou a corda, que teve o efeito de puxar o barco do canal, quase tocando o lado oposto de outra entrada, a cerca de dez metros de onde John estava. Em seguida a criança pulou novamente sobre os degraus e desapareceu no interior da casa, deixando o barco balançando atrás dela. Todo o episódio não durou mais de quatro minutos.

Ouviu um tamborilar rápido de pés. Era Laura tinha retornado. Ela não tinha visto nada e ele se sentia grato por isso. A visão de uma criança, uma menina, o medo de que a cena que acabara de testemunhar fosse de algum modo uma continuação para o grito alarmante, poderia ter tido um efeito desastroso sobre seus nervos.

— O que foi? — Ela chamou. — Não vou continuar sem você. Aquela ruela miserável segue em duas direções.

— Desculpe, estou chegando.

Ele a pegou pelo braço e caminharam a passos largos pelo beco.

— Não ouviu mais gritos? — Ela perguntou.

— Não, não, nada. Eu disse, era algum bêbado.





O beco levou a um terreno abandonado atrás de uma igreja, não uma igreja que ele conhecesse, mas liderou o caminho em frente, ao longo de outra rua e mais outra ponte.

— Espere um instante — disse ele. — Acho que à direita, vai levar-nos para o bairro grego, a igreja de San Georgio é mais ou menos ali.

Ela não respondeu. Estava começando a perder a fé. O lugar era como um labirinto. Eles poderiam ficar dando voltas e voltas para sempre, e encontrariam-se de novo perto da ponte onde eles tinham ouvido o grito.

Obstinadamente continuaram até, surpreendentemente e com alívio, ver pessoas andando na rua iluminada à frente. Havia uma torre de igreja, e o ambiente tornou-se familiar.

— Não disse a você? É San Zaccaria, nós encontramos! O seu restaurante não pode estar muito longe.




De qualquer modo não havia outros restaurantes, só o brilho confortador das luzes,  o movimento das pessoas caminhando ao longo do canal naquela atmosfera de turismo.
O letreiro “Ristorante” em luzes azuis, brilhava como um farol num beco do lado esquerdo.

— É este o seu lugar? — Ele perguntou.

— Deus sabe — disse ela. — E quem se importa? Vamos lá de qualquer maneira.

E mergulharam na explosão súbita de ar aquecido e zumbido de vozes, o cheiro de massas, vinho, garçons, clientes, empurrões, o riso. Para dois? Por aqui, por favor, disse o garçon em inglês. Ora, pensou, sua nacionalidade britânica era sempre tão óbvia?

— Dois Camparis grandes com refrigerante — ordenou John. — Enquanto vamos estudar o cardápio.

Não se apressou. Entregou o cardápio para Laura e olhou em volta. Principalmente italianos, o que significava comida boa. Logo em seguida ele as viu no lado oposto da sala. As irmãs gêmeas.

Estavam sentando-se naquele segundo, retirando seus casacos, o garçom pairando ao lado da mesa.
John foi acometido com o pensamento irracional que não era coincidência.

As irmãs os haviam visto na rua e os tinham seguido. Por que tinham escolhido este lugar em particular, de toda Veneza, a menos que... A menos que Laura em Torcello tivesse sugerido outro encontro, ou a irmã tinha sugerido? Um pequeno restaurante perto da igreja de San Zaccaria, vamos lá às vezes para o jantar. Foi Laura que antes da caminhada, tinha mencionado San Zaccaria.

Ela ainda estava indecisa olhando o cardápio, não tinha visto as irmãs, mas a qualquer momento teria escolhido o que queria comer, e então iria levantar a cabeça e olhar toda a sala. Se as bebidas chegassem logo ao menos daria a Laura algo para ocupar-se.

— Sabe, eu estava pensando — ele disse rapidamente — amanhã poderiamos pegar o carro e ir até Pádua, almoçar por lá, ver a catedral e tocar o túmulo de St Antony, e olhar os afrescos de Giotto.
Poderíamos voltar atravessando várias vilas ao longo de Brenta.

Não adiantou. Ela deu um pequeno suspiro de surpresa. E era genuíno. Ele podia jurar que era genuíno.

— Olha, que extraordinário!

— O que?

— Lá estão elas! Minhas maravilhosas velhinhas gêmeas. Estão olhando para cá!

Ela acenou com a mão, radiante, encantada. A irmã com que ela tinha falado em Torcello curvou-se e sorriu. Falsa, velha desgraçada. Eu sei nos seguiram!

— Oh, querido, preciso falar com elas — disse impulsivamente — apenas para dizer-lhes o quão feliz passei o dia, graças a elas.

— Pelo amor de Deus! Olha, as bebidas chegaram e nós ainda não pedimos.Você pode esperar até mais tarde, até acabar de comer.

— Será rápido! Eu quero scampi, só. Eu disse que não estava com fome.

Levantou-se e, passando pelo garçom com as bebidas, atravessou a sala.

Viu-a curvar-se à mesa e já que havia uma cadeira vaga na mesa, sentou-se conversando. A irmã pareceu surpresa, enquanto a cega estava impassível.

Tudo bem, pensou John selvagemente, vou ficar bêbado!




  Começou a beber seu campari com soda e pediu outro, enquanto apontou algo completamente ininteligível no cardápio como sua escolha, e scampi.

— E uma garrafa de Soave – acrescentou — com gelo.

A noite estava destruída de qualquer maneira. O que era para ter sido uma íntima e feliz celebração seria agora sobrecarregado com visões espíritas, mortos a compartilhar a mesa com eles, tão estúpidos quanto na vida terrena. O gosto amargo do campari mudou seu humor de repente para autopiedade, enquanto observava o grupo. Laura aparentemente escutando enquanto a irmã falava e a cega em silêncio.

 
Seus olhos cegos se viraram na direção dele.

Falsos, pensou, ela não é cega. Fraudes, e poderiam ser do sexo masculino, como haviam brincado de imaginar histórias em Torcello, e estão atrás de Laura.

Começou seu segundo campari com soda. Duas bebidas tomadas com o estômago vazio, resultou em um efeito imediato. Sua visão ficou turva. E Laura ainda sentada na outra mesa, enquanto a irmã falava e falava. O garçom apareceu com o scampi.

— A signora não vem? — Perguntou, e John balançou a cabeça sombriamente, apontando um dedo para o canto oposto da sala.

— Diga a signora — respondeu com cuidado – que o scampi vai ficar frio.

Ele olhou para o prato colocado diante dele e enfiou delicadamente um garfo. O molho pálido revelou duas enormes fatias do que parecia ser cozido de porco, enfeitado com alho. Levou uma porção a boca e mastigou, sim, era carne de porco, húmido, rico, o molho picante e curiosamente doce. Soltou o garfo, empurrando o prato para longe e tornou-se ciente de Laura sentando-se ao lado dele. Ela não disse nada, o que foi bom, porque estava nauseado demais para responder. Não era apenas a bebida, mas a reação ao dia, um pesadelo!

Ela começou a comer seu scampi, ainda muda. Não pareceu notar que ele não estava comendo. O garçom pairando perto de seu cotovelo, ansioso, parecia ciente de que a escolha de John fora de alguma forma um erro, e, discretamente, removeu o prato.

— Traga-me uma salada verde — murmurou John, e mesmo assim Laura não registrou surpresa, ou, como ela poderia ter feito em circunstâncias mais normais, o acusado de ter bebido em excesso.

Finalmente quando ela terminou o scampi, tomando um gole de vinho, enquanto John mordiscava sua salada em pequenos bocados como um coelho doente, ela começou a falar:

— Querido, sei que você não acredita, e é bastante assustador de certa forma, mas depois que elas deixaram o restaurante em Torcello, foram para a catedral, como fizemos, embora nós não as víssemos na multidão, mas um cego tem outra visão. Ela disse que Christine estava tentando lhe dizer algo sobre nós, que estamos correndo perigo se ficamos em Veneza. Christine queria que fôssemos embora o mais rápido possível.

Então é isso, pensou. Elas acham que podem mandar nas nossas vidas! Quando comemos, onde comemos, quando vamos para a cama? Temos de entrar em contato com as irmãs gêmeas. Elas vão nos orientar!

— Por que não diz alguma coisa, querido?

— Porque você está certa, não acredito nisso. Francamente,... suas velhotas são um casal de doidas e nada mais. São obviamente desequilibradas, e eu sinto muito se isso te machuca, mas o fato é que elas encontraram uma otária em você.

— Você está sendo injusto. Elas são genuínas, sei disso. Foram completamente sinceras no que me disseram.

— Tudo bem. Elas são sinceras. Mas isso não as torna equilibradas. Honestamente, querida, você conheceu aquela velha por dez minutos em um banheiro, ela lhe diz que vê Christine sentada ao nosso lado... E, em seguida, quer nos arrancar de Veneza. Bem, sinto muito, mas podem ir pro inferno!



A raiva o tinha feito sóbrio. Se não fosse por Laura, iria levantar-se, cruzar a sala e disser às velhas tolas pra onde deviam ir.

— Eu sabia que você reagiria assim — disse ela infeliz. — Eu disse para elas. Elas disseram para não se preocupar. Amanhã, quando sairmos de Veneza, tudo ficará bem.

— Oh, pelo amor de Deus — disse John servindo-se de um copo de vinho.

— Afinal — continuou — já vimos o melhor de Veneza. Não me importo de ir para outro lugar. Sei que parece bobagem, mas sinto isso dentro de mim querido, Christine está infeliz e está tentando nos dizer para ir embora.

— Certo — disse John com calma, encerrando o assunto. – Vamos então! Fechamos a conta do hotel imediatamente. Terminou de comer?

— Oh, querido — suspirou Laura — não fique assim. Olhe, por que não vem comigo, converse com elas, elas podem explicar sobre a visão para você. Talvez então você começasse a levá-las a sério.

Especialmente porque Christine está mais preocupada com você. E o extraordinário é que a irmã cega disse que você é psíquico, mas não sabe disso. Você está de alguma forma ligado ao desconhecido, eu não.

— Bem, agora chega! Eu vidente? Pois minha intuição psíquica me diz para sair deste restaurante agora, e podemos decidir o que fazer quando voltarmos ao hotel.

Ele sinalizou pedindo a conta para o garçom e permaneceram sem falar um com o outro, Laura infeliz, distraindo-se com sua bolsa, enquanto John olhava furtivamente a mesa das gêmeas. Uma vez paga a refeição, ele empurrou a cadeira para trás.

— Está pronta?

— Só vou dizer adeus a elas primeiro.

— Como queira — respondeu ele e caminhou para fora do restaurante, sem olhar para trás.

A umidade suave da noite, tão convidativa ao passeio, se transformara em chuva. Com isso os turistas desapareceram. Uma ou duas pessoas passaram apressadas debaixo de guarda-chuvas. Isto é o que os habitantes daqui vivem de verdade, pensou. Esta é a verdadeira vida. Ruas vazias a noite, o silêncio molhado de um canal de águas estagnadas frente a casas fechadas.

O resto é uma fachada brilhante, um show.

Laura se juntou a ele e se afastaram juntos em silêncio, por detrás do palácio ducal saindo na Piazza San Marco. A chuva era pesada agora e buscaram abrigo com os poucos retardatários restantes sob as colunatas. As mesas estavam nuas e cadeiras tinham sido viradas de cabeça para baixo.

Os especialistas estão certos, pensou, Veneza está afundando. A cidade inteira está indo para o fundo lentamente. Um dia os turistas vão viajar para cá de barco para olhar para baixo, verão submersos os pilares e as colunas de mármore e muito, muito abaixo deles, lodo e lama por breves momentos, um submundo perdido de pedra.

Os saltos de seus sapatos fizeram um som seco ao tocar o pavimento e a chuva espirrava das bocas d’água acima.

Um triste fim para uma noite que tinha começado com esperança, com inocência.

Quando chegaram ao hotel, Laura foi direto para o elevador e John para a recepção pegar a chave com o porteiro da noite. O homem entregou-lhe também um telegrama, que John olhou brevemente.

Laura já estava no elevador.

Então ele abriu o envelope e leu a mensagem. Era do diretor da escola preparatória.

“Johnnie sob observação no hospital da cidade, suspeita de apendicite.
Não há motivo para alarme, mas o médico aconselhou avisar vocês.
Charles Hill.”

Leu a mensagem duas vezes, e em seguida caminhou lentamente entrando ao elevador, onde Laura estava esperando. Entregou-lhe o telegrama.

— Isto chegou enquanto estávamos fora. Não é boa notícia.

Apertou o botão. Ela lia o telegrama. O elevador parou no segundo andar e saíram.

— Bem, isso explica tudo, não? — Ela disse. — Aqui está a prova! Temos que deixar Veneza. É Johnnie quem está em perigo, não nós! Foi o que Christine estava tentando dizer!

domingo, 10 de janeiro de 2016

Don't Look Now - Daphne du Maurier (Parte 1)





 — Não olhe agora – disse John para sua esposa – mas tem um casal de velhinhas a duas mesas de nós, tentando hipnotizar-me.



Laura, rápida, fez um elaborado bocejo, então inclinou a cabeça como se procurasse no céu por um avião.

— Logo atrás de você — ele acrescentou. — É por isso que você não pode virar-se, seria óbvio demais.

Laura, usando do truque mais antigo do mundo deixou cair o guardanapo, em seguida, inclinou-se para ele debaixo dos seus pés, enviando um olhar sobre seu ombro esquerdo enquanto se endireitava. Baixou a cabeça.





— Não são velhinhas — disse ela disfarçando. — São gêmeos travestis.

Sua voz tornou-se ameaçadora, o prelúdio para um riso descontrolado, e John rapidamente derramou o chianti em seu copo.

— Finja que engasgou, ou elas vão notar. Você sabe o que são de verdade? Criminosos percorrendo os pontos turísticos da Europa, transando em cada parada. Irmãs gêmeas aqui em Torcello. Irmãos gémeos amanhã em Veneza, ou mesmo hoje à noite, desfilando de braços dados pela Piazza San Marco. Apenas mudando de roupas e perucas.

— Ladrões de jóias ou assassinos? — Perguntou Laura.

— Oh, assassinos sem dúvida. Mas por que me escolheram?


O garçom interviu trazendo café, o que deu tempo de Laura para recuperar o controle.

— Não sei como não notamos quando chegamos.

— Foi aquele bando de americanos ali — disse John — e aquele homem de barba com um monóculo que se parece com um espião. Distração pura. Só então vi as gêmeas. Oh Deus, aquela com o cabelo branco está de olho em mim de novo.

Laura tirou o estojo de pó compacto de sua bolsa e segurou na frente de seu rosto, utilizando o espelho.

— Acho que sou eu quem estão olhando, não você — disse ela. Graças a Deus deixei minhas pérolas com o gerente do hotel. — Fez uma pausa, empoando os lados do nariz com pó. –É o seguinte — disse ela depois de um instante — estamos errados. Não são assassinos, nem ladrões. É um casal de velhas e patéticas professoras aposentadas em férias, que economizaram trocados por uma vida inteira para poder visitar Veneza. Elas vêm de algum lugar com um nome como Walabanga na Austrália. E se chamam Tilly e Tiny.


Pela primeira vez desde que tinham chegado, sua voz assumira a antiga qualidade borbulhante que ele tanto amava, a expressão preocupada de suas sobrancelhas tinha desaparecido. Finalmente, pensou, ela está começando a superar. Se eu puder continuar assim, a velha rotina familiar de piadas compartilhadas nas férias e em casa, as fantasias ridículas sobre as pessoas em outras mesas, ou hóspedes no hotel, ou vagando em galerias de arte e igrejas, então tudo vai voltar ao lugar, a vida se tornará como era antes, a ferida vai cicatrizar, ela vai esquecer.

— Sabe — disse Laura — foi um almoço muito bom. Gostei muito.

Graças a Deus, pensou ele, graças a Deus... Então se inclinou para frente, falando baixo em um sussurro conspirador: — Um deles está indo ao banheiro. Você acha que ele, ou ela, vai trocar de peruca?

— Não diga nada — murmurou Laura. — Vou segui-la e descobrir. Ela pode ter uma mala escondida lá, e mudar de roupa.

Ela começou a cantarolar baixinho, um sinal para ele de contentamento. O fantasma da crise temporariamente desaparecera, e tudo por causa de um joguinho em férias familiares, abandonado por muito tempo, e agora, através de mero acaso, felizmente recapturado.

— Ela está a caminho? — Perguntou Laura.

— Prestes a passar pela nossa mesa agora.

A mulher em si não era tão notável. Alta, angulosa, características aquilinas, com o cabelo cortado rente que era elegantemente chamado de estilo Eton, o fez lembrar-se de sua mãe, ou algo da geração dela. Estaria na casa dos sessenta e pouco, supôs, paletó esporte, saia de tweed chegando ao meio da perna. Meias cinza e sapatos de amarrar. O tipo visto em campos de golfe e em exposições caninas, invariavelmente ostentando, não cães de raça, mas pugs.

— Suponha que, murmurou Laura, quando eu estiver no toalete ao lado, ela comece a se despir?

— Depende do que será revelado — John respondeu. — Se ela for uma hermafrodita, tente sair logo de lá. Ela pode ter uma seringa hipodérmica escondida e querer acertá-la antes de chegar à porta.
Laura fez um barulho com a boca e fingiu tremer. Então, endireitando os ombros, se levantou.

— Eu não posso rir agora — disse ela — e aconteça o que acontecer, não olhe para mim quando eu voltar, especialmente se saimos juntos de lá.

Pegou sua bolsa e caminhou conscientemente para longe da mesa em busca de sua presa.


  John derramou a borra do chianti no seu copo e acendeu um cigarro. O sol ardia sobre o pequeno jardim do restaurante. Os americanos tinham ido embora assim como o homem de monóculos. Tudo era paz. A gêmea idêntica estava sentado em sua cadeira com os olhos fechados. Graças a Deus, pensou naquele momento, de qualquer modo, Laura tinha se lançado em seu jogo tolo, inofensivo. As férias poderiam se transformar na cura que ela precisava, apagando, ainda que temporariamente, o desespero entorpecido que a tinha tomado desde a morte da filha.

"Ela vai superar isso" dissera o médico. "Todos superam com o tempo. E você tem o menino”.
“Eu sei, mas a menina era tudo. Ela sempre, desde o início fora especial, não sei por quê. Acho que era a diferença de idade. Um menino em idade escolar é complicado mesmo, não é um bebê de cinco. Laura literalmente a adorava. Johnnie e eu ficávamos para trás."
“Dê-lhe tempo" repetia o médico, “dê-lhe tempo. De qualquer maneira, vocês são jovens ainda. Haverão outros. Outra filha”.




Tão fácil falar... Como substituir a vida de uma criança amada com um sonho? Ele conhecia muito bem Laura. Outra criança, outra menina, teria suas próprias qualidades, uma identidade separada, podendo até induzir hostilidade por conta deste fato. Um usurpador do berço, o berço que havia sido de Christine.

Olhou por sobre sua taça de vinho, e a mulher estava olhando para ele novamente. Não era casual, à espera da volta de sua companheira, mas algo mais profundo, com intenção, os proeminentes olhos azuis estranhamente penetrantes, dando-lhe uma súbita sensação de desconforto. Dane-se! Tudo bem, pode olhar fixo, se for preciso. Dois podem jogar esse jogo.


Soltou uma nuvem de fumaça do cigarro no ar e sorriu para ela, ofensivamente. Ela não reagiu. Os olhos azulados continuaram nele, de modo que foi obrigado a desviar o olhar, apagar o cigarro, olhar por cima do ombro para o garçom e pedir a conta. Fez algumas observações casuais sobre a excelência da refeição, mas uma sensação de picadas no couro cabeludo permanecera, e uma estranha sensação de mal-estar.

Em seguida, tão abruptamente como tinha começado, viu que seus olhos estavam fechados novamente, ela estava dormindo, ou cochilando, como tinha feito antes.

O garçom desapareceu. Tudo estava quieto.

Olhando para o relógio, pensou que Laura já estava ausente tempo demais. Dez minutos pelo menos.

 
Algo que poderia usar, de qualquer maneira. Começou a planejar a forma que a piada tomaria. Como a velhinha tinha despojado de suas roupas íntimas, sugerindo que Laura fizesse o mesmo. E, em seguida, o gerente tinha surpreendido-as, exclamando em horror, a reputação manchada do seu restaurante, a ameaça de que consequências desagradáveis poderiam vir a menos que...

Toda a fantasia transformando-se em chantagem. Ele e Laura e as gêmeas em uma lancha da polícia de volta para Veneza para interrogatório. Quinze minutos... Oh, vamos lá, vamos lá...

Houve um som e a gêmea caminhou lentamente sozinha, para a mesa dela e ficou ali por um momento, sua figura alta, angular interpondo-se entre John e sua irmã. Ela estava dizendo alguma coisa, mas ele não conseguia entender as palavras. Qual era o sotaque? Escocês? Em seguida, ela se curvou, oferecendo um braço para a gêmea sentada e se afastaram pelo jardim pouco além, a gêmea que tinha olhado para John apoiada no braço de sua irmã. Outra diferença. Ela não era tão alta, e inclinava-se mais, talvez tivesse artríte. Desapareceram de vista, e John tornando-se impaciente, levantou-se e estava prestes a caminhar de volta para o hotel quando Laura surgiu.

— Bem, devo dizer, você me deixou... — começou a dizer, e então parou, por causa da expressão no rosto dela. — Qual é o problema, o que aconteceu?



Podia dizer sem qualquer chance de estar enganado que algo havia de errado. Quase como se ela estivesse em estado de choque. Tropeçou em direção à mesa que ele tinha acabado de desocupar e sentou-se. Ele puxou uma cadeira ao seu lado, segurando sua mão.

— Querida, o que foi? Fale-me, está se sentindo mal?

Ela balançou a cabeça, em seguida, virou-se e olhou para ele. A expressão atordoada que ele tinha notado a princípio tinha dado lugar a uma expressão quase de exaltação.

— Foi maravilhosa — disse ela lentamente — a coisa mais maravilhosa que poderia acontecer. Ela não está morta, ela ainda está conosco. É por isso que olhavam para nós, essas duas irmãs. Elas podiam ver Christine.

Oh Deus, pensou. Era isso que temia. Ela perdera o juizo! O que faço? Como vou lidar com isso?

— Laura, querida — começou com um sorriso – vamos agora? Paguei a conta, podemos ir olhar a catedral e passear em Veneza.

Ela não estava ouvindo, ou pelo menos as palavras não a penetravam.

— John, amor — ela disse. — Tenho que lhe contar o que aconteceu. Eu a segui, como tínhamos planejado, para o toalete. Estava penteando o cabelo e eu fui para o banheiro, e, em seguida, sai e lavei as mãos na pia. Ela estava lavando as dela e de repente, ela virou-se e me disse com um forte sotaque escocês, “Não fique triste. Minha irmã tem visto sua menina. Ela estava sentada entre você e seu marido, rindo”. Pensei que ia desmaiar. E quase desmaiei. Por sorte, havia uma cadeira e me sentei, e a mulher se inclinou sobre mim e acariciou minha cabeça. Eu não tenho certeza de suas palavras exatas, mas ela disse algo sobre o momento da verdade, mas não devia ter medo, tudo estava bem, a visão da irmã havia sido tão forte que elas sabiam que Christine queria que eu soubesse. Oh,  John, juro que não estou inventando, foi o que ela me disse, é tudo verdade.


A urgência desesperada em sua voz fez seu coração encolher. Tinha que jogar o jogo dela, acalmá-la, fazer qualquer coisa para trazer de volta aquela sensação de calma.

— Laura, querida, claro que acredito em você, só que é uma espécie de choque, eu estou chateado porque você está chateada...

— Mas eu não estou chateada — ela interrompeu. — Estou feliz, tão feliz que não posso pôr o sentimento em palavras. Você sabe como tem sido todas essas semanas, em casa e em todos os lugares nós estivemos de férias, embora eu tente esconder isso de você. Agora estou bem, sei que a mulher estava certa. Oh Deus, esqueci o nome dela. Ela é médica aposentada, vivem em Edimburgo, e aquela que viu Christine ficou cega há alguns anos atrás. Embora ela tenha estudado ocultismo por toda vida, só após ficar cega ela realmente passou a ver coisas, como um médium. Elas tiveram experiências maravilhosas, mas descrever Christine como a cega fez para sua irmã, o pequeno vestido azul-e-branco que ela usava em sua festa de aniversário, e ela estava sorrindo alegremente... Oh, isso me fez tão feliz que acho que vou chorar.

Sem histeria, pegou um lenço da bolsa e assuou o nariz, sorrindo para ele. — Estou bem, você vê, não precisa se preocupar. Nenhum de nós precisa se preocupar com mais nada. Dê-me um cigarro.
Ele puxou um do seu maço e acendeu para ela. Ela parecia normal, a mesma, novamente. Não estava tremendo. E se isso a fizesse feliz, por que não? Mas... Mas... Ele desejava que não tivesse acontecido. Havia algo estranho sobre leitura de pensamento, sobre telepatia. Os cientistas não podiam explicar, ninguém podia, e isso é o que deveria ter ocorrido entre Laura e as irmãs. Aquela que tinha ficado olhando para ele era cega. A explicação do olhar fixo. Que de certa forma era desagradável, assustador. Oh inferno, pensou, eu gostaria que não tivéssemos vindo aqui para o almoço. Entre vir aqui e ir até Pádua, tivemos que escolher Torcello.

Perguntou tentando soar casual: — Você não combinou de encontrá-las novamente ou qualquer coisa assim, não é?

— Não, querido, por que eu deveria? Quero dizer, não havia mais nada que pudesse me dizer. A irmã teve sua visão maravilhosa, e só. De qualquer forma, elas estão de partida, é um pouco parecido com a nossa brincadeira de antes. Elas estão viajando ao redor do mundo antes de retornar para a Escócia. Eu disse Austrália, não? Qualquer coisa, mas não assassinos ou ladrões de jóias.

Ela havia se recuperado completamente. Levantou-se e olhou em volta. –Vamos! Já que estamos em Torcello temos que ver a catedral!


Tomaram o caminho a partir do restaurante para o outro lado da praça aberta, com suas barracas de lenços, bijuterias e cartões postais, e assim até a catedral.

 
Um navio grande tinha acabado de descarregar uma multidão de curiosos, muitos dos quais já haviam encontrado em Santa Maria Assunta. Laura pediu ao marido o guia, e, como sempre tinha sido seu costume em dias mais felizes, começou a vagar lentamente pela catedral, estudando mosaicos, colunas, painéis da esquerda para a direita, enquanto John, menos interessado por causa de sua preocupação com o que tinha acontecido, seguia de perto, mantendo um olho alerta para as irmãs gêmeas. Não havia nenhum sinal delas.

 
Talvez tivessem ido para a igreja de Santa Fosca ali perto. Um encontro repentino seria embaraçoso, além do efeito que poderia ter sobre Laura. Mas os turistas anônimos e barulhentos não podiam prejudicá-la, embora transformassem qualquer apreciação artística praticamente impossível. Ele não conseguia se concentrar na beleza fria do que via, e quando Laura tocou sua manga, apontando para o mosaico da Virgem com o Menino de pé acima do friso dos Apóstolos, acenou com a cabeça em solidariedade, ainda não vendo nada além da face triste da Virgem. Num impulso súbito olhou para trás, por cima das cabeças dos turistas em direção à porta, onde os afrescos dos bem-aventurados e dos condenados recebiam o julgamento.

As gêmeas estavam ali, a cega ainda segurando o braço de sua irmã, seus olhos cegos fixados firmemente nele.

Sentiu-se incapaz de se mover, e uma sensação iminente de desgraça e tragédia, caiu sobre ele. Todo o seu ser cedeu, por assim dizer, em apatia, e pensou: “É o fim, não há escapatória”.  Em seguida as duas irmãs se viraram saindo da catedral e a sensação desapareceu, deixando em seu rastro indignação e raiva crescente. Como se atreviam, velhas tolas, a praticar seus truques mediúnicos sobre eles? Devia ser assim, de forma fraudulenta, insalubre, provavelmente a forma como elas viviam em turnê pelo mundo, fazendo com que todos se sentissem desconfortáveis. Se lhes desse chance, colocariam as mãos no dinheiro de Laura.


Sentiu-a puxando-o pela manga novamente.

— Não é linda? Tão feliz, tão serena..
.
— Quem? O quê?

— A Madonna. Ela tem uma qualidade mágica. Não sente isso também?

— Suponho que sim. Não sei. Há muita gente ao redor.

Ela olhou para ele, surpresa.

— O que isso tem a ver? Você é engraçado. Tudo bem, vamos para longe deles. Eu quero comprar alguns cartões postais mesmo.

Desapontada com sua falta de interesse, ela começou a avançar através da multidão de turistas até a porta.

— Vamos — disse ele abruptamente, já do lado de fora. — Temos tempo o suficiente para cartões
postais, vamos explorar um pouco – e afastou-se no caminho que os levariam de volta para o centro, para as casas pequenas, as barracas e a multidão à deriva, escolhendo uma passagem estreita no qual ele podia ver além, um trecho de um canal. A visão de água límpida era um contraste agradável ao sol forte sobre suas cabeças.

— Não acho que isso leva para algum lugar — disse Laura. — É enlameado também, não se pode sentar. Além disso, há mais coisas que o guia de viagem diz que devemos ver.

— Esqueça o livro — disse ele impaciente, puxando-a para junto dele. Colocou os braços ao redor dela.

— É a hora errada do dia para passeios turísticos. Olhe, tem um rato nadando lá do outro lado.
Ele pegou uma pedra e atirou-a no animal que afundou, não deixando nada senão bolhas na superfície.

— Não — reclamou Laura. — É crueldade!

E então, de repente, colocando a mão em seu joelho falou: — Você acha que Christine está aqui conosco?

Ele não respondeu imediatamente. O que havia para dizer? Seria assim para sempre?

— Espero que sim — respondeu lentamente. — Se você sente que sim.

Se Christine estivesse realmente ali, estaria correndo à margem, sem sapatos, querendo pular na água, com Laura correndo apreensiva atrás dela. “Querida, tome cuidado, volte aqui!”

— A mulher disse que ela estava tão feliz, sentada ao nosso lado, sorrindo.

Seu bom humor se transformara em inquietação.

— Vamos, vamos voltar — disse ela.

Ele a seguiu com o coração apertado. Sabia que ela não queria realmente comprar cartões postais ou ver o que restava para ser visto; ela queria ir atrás das velhotas, não necessariamente para falar, só para estar perto delas.

Quando chegaram a um lugar aberto com barracas, ele notou que a multidão de turistas havia diminuído bastante, apenas alguns retardatários, e as irmãs não estavam entre eles. Deviam ter se juntado aos demais que tinham chegado a Torcello pelo serviço de balsa.

Uma onda de alívio se apoderou dele.

— Olhe, tem vários cartões postais nas barracas — ele disse rapidamente — e alguns lenços de cabeça atraentes. Deixe-me comprar-lhe um lenço de cabeça.



— Querido, eu tenho tantos! — Ela protestou. — Não desperdice suas liras.

— Não é um desperdício. Eu estou a fim de comprar algo. Que tal uma cesta? Você sabe que nunca tem o suficiente. Ou alguma renda? Quer?

Ela riu ao ser arrastada para a barraca. Ele diante das quinquilharias espalhadas tentou conversar com a vendedora sorridente. Sua tentativa de comunicar-se em italiano ruim fazendo-a sorrir mais.
Ele sabia que se desse tempo aos turistas para caminhar até o cais e pegar o serviço de balsa, as irmãs gêmeas estariam de vez fora da vista e de sua vida.

— Nunca vi — disse Laura, cerca de vinte minutos mais tarde — tanto lixo empilhado em tão pequeno espaço!

Sua risada borbulhante assegurava que estava tudo bem, que ele não precisava se preocupar mais, aquele momento ruim tinha passado.

A lancha que os havia trazido de Veneza estava esperando. Os passageiros que tinham chegado com eles, os norte-americanos, o homem com o monóculo, já estavam reunidos lá em fila. Mais cedo, antes de sairem, ele pensara que o preço do almoço e do transporte de ida e volta, era decididamente exagerado. Agora não se ressentia disso, exceto que a saída para Torcello tinha sido um dos principais erros desta viagem por Veneza.

Desceram para a popa para procurar um lugar ao ar livre. O barco chacoalhava bastante ao sairem da lagoa para o canal. O Ferry, mais popular e acessível, tinha partido pouco antes em direção de Murano, enquanto eles seguiriam por San Francesco del Deserto e voltando a Veneza.

Ele colocou seu braço ao redor dela mais uma vez, mantendo-a perto, e desta vez ela respondeu sorrindo, com a cabeça em seu ombro.

— Foi um dia lindo — disse ela. — Eu nunca esquecerei, nunca. Sabe querido, agora, finalmente posso começar a desfrutar das nossas férias.

Ele queria gritar de alívio. Vai dar tudo certo, deixe-a acreditar no que quiser, não importa, tanto que a faça feliz. A bela Veneza diante deles, nitidamente delineada contra o céu, e ainda havia muito para ver, vagando juntos, poderia ser perfeito por causa de sua mudança de humor. Começaram a discutir sobre a noite por vir, onde eles iriam jantar, não aquele restaurante que normalmente iam, perto do teatro Fenice, mas em algum lugar diferente, um lugar novo.

— Sim, mas precisa ser barato — disse ela — porque já gastamos muito hoje.