sábado, 14 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 18)

O tempo passava, mas devagar.
Dava para sentir a tensão, embora todos fizessem o melhor para escondê-la. As tarefas diárias eram bem-vindas, afastavam a mente do horror que ainda persistia sobre o acampamento.
Piadas soavam forçadas, como o riso que as acompanhavam.

Externamente, tudo parecia normal, mas a suspeita e a paranoia dava um colorido a cada palavra, cada movimento. Suspeita, paranoia e um medo desesperado.

Palmer foi trabalhar na segunda moto. Havia retirado todas as velas de ignição de ambas, desmontado os carburadores, removido e limpado os filtros de combustível.
Agora ele estava levando os motores para a sala de armazenamento onde seria trancado juntamente com os componentes vitais dos helicópteros e do trator. Os parafusos de montagem e parafusos seriam escondidos em outro lugar.
Macready não queria arriscar. Ele estava trabalhando na torre do balão com uma faca de cozinha, metodicamente cortando cada um dos enormes balões meteorológicos não inflados em tiras não infláveis. Não havia como dizer quanto tempo eles poderiam ter de permanecer isolados antes que Fuchs chegasse com um novo teste.
Era improvável, mas somente uma gaivota ou uma fragata meio congelada, poderia sair do campo. Seria melhor não se arriscar. Os pássaros não poderiam ser perseguidos.
Ele terminou o último dos balões, então avaliou os tanques de hidrogênio armazenados nas proximidades, antes de decidir que não havia necessidade de esvaziá-los. Não havia nada no campo que poderia sorrateiramente ser combinado com o hidrogênio, para criar um transporte ou coisa semelhante.

O aparelho de som na cozinha cuspia sua música vibrante, procurando aliviar a tensão com a despreocupação de um mundo que parecia estar a um milhão de quilômetros de distância. Nauls cantarolava enquanto tirava os pratos da máquina de lavar e empilhava-os ordenadamente em uma prateleira adequada.
Childs suspirou e uma das mãos coçou uma orelha enquanto a outra virou as páginas de uma revista grossa. A tocha industrial, com sua nova ponta reluzente, estava ao alcance da mão.

Clark, Cooper, e o gerente da estação cochilavam no sofá. O efeito da morfina acabaria usando em breve. Norris teria que preparar outra dose para o trio, Childs sabia.
Clark se mexeu, levantou-se e murmurou de mau humor para o guarda. — Tenho que ir à casinha, Childs.
O mecânico a contragosto largou a revista. Meio que carregou o adestrador até o final da sala e abriu a porta para ele.
— Seja rápido.
Clark cambaleou para dentro. Alguns segundos se passaram e as luzes começaram a piscar. Childs olhou em volta, preocupado. Apagaram completamente por um segundo, depois acenderam.
— Ah, não — murmurou o mecânico. — Agora não!
Quando apagou a segunda vez foi de vez. Junto com a luz outra coisa tinha desaparecido: a respiração mecânica suave e firme que você rapidamente aprendia a ignorá-la. O ronronar do gerador.
— Childs! — Nauls gritou da cozinha. — Foi um disjuntor?
— Não, — Childs gritou de volta — se fosse, teria desligado imediatamente. Não teria oscilado. Você não ouviu?
— O que, cara? Não ouvi nada!
— Foi o que eu quis dizer! O gerador se foi! Os controles do auxiliar estão em frente à porta da cozinha. Vá lá fazer funcionar!
Tropeçou na escuridão, saiu xingando quando esbarrou na mesa de carteado. Onde está a porra da lanterna?
Algo caiu da mesa para o chão. Uma revista, provavelmente.
— Vocês estão bem?
Uma risada veio do sofá, nervosa e com medo.
— Pare com isso, Cooper —  Childs disse.
A lanterna devia estar no canto, numa prateleira. Começou a tatear o caminho ao longo da parede.
— Nauls, porque está levando tanto tempo? É uma linha reta porta afora.
— Eu sei — foi a resposta nervosa. — Eu encontrei. Estou tentando, mas nada está acontecendo!
— Isso é impossível, cara!
Ele chegou até a prateleira e sentiu os livros e as caixas dos jogos de tabuleiro. Mas nenhuma lanterna.
Voltando-se para o centro da sala, foi cuidadosamente até a mesa.
— Ok, Clark. Fora da casinha, agora!
— Está em curto ou algo assim! — Nauls gritou do corredor.
Childs ignorou a reclamação do cozinheiro. Ele queria uma resposta do banheiro.
— Clark! Você está me ouvindo, Clark? Sai agora! Agora!
Como não houve resposta, Childs passou ao redor da mesa até localizar a tocha, que veio à vida com velocidade gratificante. Fogo azul encheu a sala de recreação com uma iluminação fantasmagórica.
Encaminhou-se para o banheiro, mas na metade do caminho viu algo que o fez parar, e virar a tocha em direção ao sofá.
— Onde... onde está Garry?
 O gerente da estação tinha desaparecido. Cooper olhava entorpecido a almofada vazia ao lado dele. Agora, ele e Childs estavam sozinhos.
— Merda — o mecânico procurou no escuro a sirene portátil e ligou-a.
Palmer ergueu os olhos da moto de neve que ele tinha desmantelamento quase toda. Macready e Sanders empurravam um caminho para fora do depósito de lixo e trocaram um olhar. Logo os três estavam correndo em direção à entrada mais próxima.
Childs virava-se a cada pequeno ruído imaginário, tentando manter a tocha entre ele e as trevas.
— Onde você está, Garry?
Cooper riu novamente em voz alta, o que não melhorou o estado de espírito do mecânico.
— Nauls, me traga uma lanterna!
O cozinheiro abandonou a caixa de controle inútil e voltou para a cozinha, sentindo seus armários familiares, até chegar a uma gaveta em particular. Suas mãos se moveram entre os conteúdos, pegando colheres e espátulas e conchas, tudo, exceto o que ele estava procurando.
— Alguém levou a minha! Não consigo encontrá-la!
— Clark! — Childs virou a lanterna para o banheiro. — Ou você sai ou eu entro!

Macready, Sanders e Palmer tropeçavam pelo corredor, batendo uns nos outros, enquanto lutavam para avançar no corredor inesperadamente escuro. Macready fechou a porta atrás deles. Suas lanternas forneciam a única iluminação.
— O que aconteceu? — Macready disse. Quando as luzes exteriores se foram, ele esperava alguns problemas no interior, mas não a escuridão total e completa. — Alguém sabe o que aconteceu?
— Macready...? — Chamou Norris.
— Sou eu! Palmer e Sanders estão comigo. Que diabos está acontecendo?"
— Acho que é o gerador, — respondeu o geofísico — estamos sem força.
— E o reserva?
— Sei lá!
Macready virou-se para seu assistente. — Tudo bem, Palmer, vamos até lá.
— Macready!
— É você, Childs?
— Tô na recreação.
Os pensamentos de Macready aceleravam. — Você está bem?
— Estou, cara. Mas o Garry sumiu!
Merda! O piloto pensou por um momento. Eles tinham outras prioridades no momento. — Espere!
— Ok — a voz do mecânico soou triste. — Que tal a força?
— Palmer e eu estamos cuidando disso — e começou a correr pelo corredor.
A luz da lanterna parecia fraca e prestes a falhar quando os dois homens alcançaram o pequeno lance de escadas que levava para a sala do gerador. Na parte inferior do trajeto de descida, Macready hesitou, virou-se e varreu a escuridão com o facho.
— Sanders. Onde está Sanders?
 Eles examinaram a escada juntos, em seguida, o chão e as paredes da sala do gerador. Sanders tinha ido embora.
Palmer deu um passo para trás e perguntou sem entusiasmo:
— Quer que eu vá procurá-lo?
— Não. Não agora — disse Macready impaciente. — Temos que primeiro dar um jeito nisso primeiro, depois podemos procurá-lo.
Aproximaram-se da massa silenciosa de metal. Mac se agachou junto àquele dinossauro blindado no meio da saleta. O cheiro de diesel, espesso e tóxico, estava por toda parte, mas foi desaparecendo rapidamente.
Palmer usou a luz para inspecionar os componentes. O feixe permaneceu em um espaço aberto perto da base.
— A bomba de combustível se foi! — O pânico distorceu sua voz. — Você precisa encontrar outra unidade, Mac. Se nós não colocarmos esta coisa para funcionar, logo iremos congelar, e não sairemos daqui.
— E o auxiliar?
— Não sei.
— Tem certeza sobre a bomba? É tudo o que está faltando?
O feixe de luz refez seu caminho através do gerador.
— Acho que sim. Eu não vejo mais nada. Este departamento é do Childs.
— Childs está ocupado! — Macready lembrou a seu assistente. — Segure as pontas! Estarei de volta o mais rápido que puder!
— Quer a minha luz?
— Não, fique com ele. Certifique-se de nada mais foi tirado.
Virou-se e correu até as escadas, sem se importar de tropeçar no escuro.
Palmer esperou. Ocorreu-lhe que estava sozinho na área mais isolada do prédio.
Merda, tinha que manter sua mente ocupada com outra coisa.
Segurando a lanterna firmemente em uma mão, sentou-se de costas contra o gerador.
Claro que havia sempre a chance de Macready não voltar por um bom tempo. Ele podia se distrair. Ou algo podia distraí-lo.


Childs batia os pés na sala de recreação, golpeando os lados do corpo para manter-se aquecido. A temperatura caia rapidamente, a noite antártica sugava o calor do interior do complexo, apesar das várias camadas de isolamento. A tocha estava sobre a mesa, adicionando um pouco de calor ao local, e seu brilho azul quase alcançava os cantos da sala. Cooper estava sentado ao sofá.
Pelo menos ele tinha parado de que rir daquela maneira infernal, Childs pensou agradecido.·

Macready, fora da sala de suprimentos, fazia malabarismos com sua lanterna e uma nova unidade de bombeio quando percebeu não estar sozinho.
— Quem está aí?
Não houve resposta. A silhueta correu pelo corredor.
— Sanders? É você? Pirou de novo, cara? Está tudo bem, sou eu, Macready. Ei, que...
Uma voz fraca veio de outra direção.
— Mac? — Palmer parecia ansioso. — É você, Mac? Onde diabo está a bomba?
— Tô chegando!
Lançou um último olhar para o corredor, mas só viu escuridão. Em seguida, foi correndo para a sala do gerador.
Quase caiu em sua pressa para descer os poucos degraus. A luz de Palmer junto ao gerador.
— Vai funcionar? — Macready perguntou a Palmer que estudava a unidade de bombeio.
— Não é igual!
— Inferno! — Macready começou a subir as escadas. — Vou olhar de novo!
— Não, não — Palmer agarrou seu braço e puxou-o de volta. — Quero dizer, é de um fabricante diferente, mas vai servir.
Macready deu um suspiro de alívio. — Caramba Palmer, não faça isso comigo!
— Segure a luz pra mim? — Palmer entregou sua lanterna para Macready e juntou-se à maquinaria.
— Um pouco mais alto, Mac.
Macready levantou os feixes gêmeos. As mãos de Palmer deixaram a escuridão. Sua respiração já estava começando a congelar.
Ele segurou as luzes tão firme que seus dedos logo estavam dormentes.
— Alguém certamente mexeu aqui. A braçadeira foi tirada do lugar.
— Vamos conseguir?
— Espero que sim. Só mais quinze minutos.
Palmer estava começando a soar confiante. — Gostaria de saber o que aconteceu com o gerador auxiliar. O que eu não entendo é...
Foi interrompido por um grito. Macready congelou. Ele já tinha ouvido aquele som, duas vezes. Uma vez na fita recuperada do acampamento norueguês, e mais uma vez longe da base, no gelo.
Pensou em Bennings, enquanto seu coração começou a martelar contra suas costelas.

Macready nunca ficou tão feliz na sua vida como quando as luzes se acenderam novamente.
Palmer se afastou do gerador cantarolando, limpando a graxa em suas calças.
— Isso deve segurá-lo por enquanto, até Childs poder vir aqui e prendê-la direito. Onde ele está?
— Sala de recreação — disse-lhe secamente Macready. Estava relutante em abandonar a sala do gerador, mas teve de se contentar com um cadeado pesado na porta, depois saiu.

A sala de recreação estava lotada no momento em que chegaram. O congestionamento, a presença de corpos humanos, era reconfortante depois de longos minutos sozinho com o gerador.
Palmer, Nauls e Sanders, estavam afastados uns dos outros, tanto quanto possível, mantendo distância entre eles e todos os outros.


Norris e Childs usavam de cordas de nylon para amarrar o médico, Clark e Garry ao sofá.
Macready amaldiçoou por não tê-lo ordenado mais cedo. Tarde demais agora.
Forçou-se a não pensar no que poderia ter acontecido se não tivesse sido capaz de conseguir uma bomba substituta.
Enquanto Norris e Childs cuidavam dos três prisioneiros, Macready brincou com o pequeno maçarico de propano que trouxera do armazém. Eram perigosos para operar, mas confiava neles mais do que qualquer uma das armas.
— Onde estão as lanternas? — Sanders perguntou a ele. — O que aconteceu com todas as lanternas?
— Danem-se as lanternas! — Macready rosnou para ele. — Onde diabos você estava?
— Eu... eu entrei em pânico novamente, Mac. Comecei a correr, tentando fugir. Sinto muito!
— Não é nada! Esqueça!
Se levantou, ergueu um dos maçaricos e olhou em direção a Palmer. — Acho que estes vão funcionar! Uma de suas melhores ideias!
— Obrigado, Mac. Mas quando eu estava pegando maçaricos na sala de estoque, notei outra coisa. Lembrei-me de que eu não conseguia encontrar o magneto do helicóptero um. E tem uma tonelada de coisas faltando. Cabos, fios, microprocessadores... todo tipo de merda. Eu não achava nada, até que me lembrei da peça que faltava do helicóptero um.
— Isso é engraçado — Nauls afastou-se da parede. — Eu notei que faltam coisas da cozinha também. Eu não disse nada sobre isso, porque achei que não era importante. Quer dizer, o que diabos alguém iria querer com um processador de alimentos?
Macready inspecionou a sala, contando cabeças.
— Alguém viu ou ouviu Fuchs?
Ninguém tinha visto ou ouvido. Ficou claro a partir de suas expressões, bem como do silêncio.
Childs estava com o gerente da estação, enquanto amarrava seus braços por detrás das costas.
— Onde você foi quando as luzes se apagaram... chefe?
Garry ainda estava tonto do efeito da morfina. — Estava escuro... fui procurar uma luz...
— Você está mentindo, desgraçado!
Garry lutou contra as cordas, esforçou-se para livrar os pés. Suas palavras saíram arrastadas. — Não gosto do seu tom...
Ele estendeu a mão livre e agarrou Childs pelo colarinho.
 — Sente-se!
O mecânico empurrou o gerente com a mão direita poderosa. Garry conseguiu desviar metade do golpe, colocou a cabeça no peito do homem maior, e jogou seu peso para um lado. Os dois caíram sobre o sofá, quase levando Cooper com eles.
Macready e Norris mergulharam imediatamente. O piloto agarrou Childs e Norris lutou com o gerente da estação, atordoado, mas ainda perigoso.
— Calma, chefe, já chega! Acalme-se!
De alguma forma Macready conseguiu afastar Childs para um lado.
— Pare com isso, cara! Tá me ouvindo? Contra quem você está lutando?
Childs estava segurando o punho do tamanho de uma torradeira, olhava fixamente para o piloto como se digerindo as palavras deste último. O punho caiu lentamente e o mecânico inalou profundamente. Quando falou de novo, parecia envergonhado.
— Desculpe Mac. Eu não estava pensando direito — mas continuou a olhar fixamente para Garry.
Foram interrompidos por um som estrondoso de cima. Vento forte golpeado o telhado.
Macready olhou o alto e para Childs.
— Ouviram isso? Verifiquei os gráficos de Bennings. A tempestade vai nos atingir a qualquer momento. Então, não temos muito tempo.
— Tempo para quê? — Norris quis saber.
Macready caminhou até a mesa e começou a distribuir os maçaricos portáteis. Empurrou o primeiro contra o estômago de Norris.
— Temos que encontrar Fuchs. Quando o encontrarmos, nós vamos matá-lo.
Sanders pareceu chocado. — Por quê?
— Se ele ainda fosse um de nós, ele teria vindo para cá agora. As luzes já se acenderam a um bom tempo. Ele não apareceu... significa que ele não pode, ou não quer, porque não é mais o Fuchs. Se ele tornou-se uma daquelas coisas, temos que detê-lo antes que ele se transforma em... em tudo o que ele puder... Sabe o que eu realmente acho? Está cansado de brincar. Ele sabe que o prendemos aqui, por isso não há razão para continuar mentindo, na esperança de roubar um transporte. A única maneira de sobreviver agora é ter certeza que nós não iremos matá-lo, isso significa nos eliminar. Lembrem-se, nós temos menos de uma hora!
Ele olhou para a direita. — Nauls, você e Childs vão verificar os barracos lá fora — atirou maçaricos para Palmer e Sanders.
— Vocês dois procurem no complexo. Fiquem juntos!
Palmer olhou para o operador de rádio. — Eu não vou com Sanders!
A cabeça de Sanders girou em direção ao piloto reserva. — O que há de errado comigo, cara?
Palmer ignorou-o, evitando seus olhos.
— Não vou com ele. Vou com Childs!
— Foda-se você, cara!
— Eu não vou com você! — A voz de Palmer estava à beira da histeria.
— Bem, quem disse que eu quero que você vá comigo? — Childs disse rispidamente.
Macready se colocou entre eles, irritado e sem paciência.
— Parem de besteira! Não temos tempo para isso. Quantas vezes eu tenho que dizer a vocês que isso é exatamente o que a coisa quer. Medo uns dos outros, paranoia... que cortamos as gargantas uns dos outros, para ela ficar lá fora rindo de nós, tolos.
Palmer parecia o garoto que foi pego com a mão na cumbuca.
— Sim, eu sei... mas ainda assim, não vou com Sanders!
— Ok, ok!  — Macready não fez nenhum esforço para esconder o seu desgosto — Sanders, você vem com a gente. Norris, você fica aqui!
Virou-se para enfrentar os homens amarrados no sofá.
— Se qualquer um deles se mover, frita ele! E se você ouvir alguma coisa, você toca a sirene. Nos encontramos aqui em vinte minutos de qualquer maneira. E todo mundo vigia todo mundo. Não fiquem bravos, não briguem. Basta vigiar. Fui claro? Então, vamos!

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