segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Final)


1990:
O afogamento de Ícaro

Nathan Bryce tinha descoberto Thomas Jerome Newton por meio de uma caixa de estalinhos.

Redescobriu-o por meio de uma gravação fonográfica. Deu com a gravação tão acidentalmente como descobrira os estalinhos, mas o que ela significava — pelo menos, em parte — era, de imediato, muito mais evidente do que tinham significado os estalinhos.

Isso aconteceu em Outubro de 1990, numa loja de conveniência em Louisville, a alguns quarteirões de distância do apartamento em que vivia com Betty Jo.



Se passara sete meses depois da declaração de despedida, na televisão.

Tanto Bryce como Betty Jo tinham poupado a maior parte dos seus salários na World Entreprises, e
com isso não precisavam mais trabalhar para viver, pelo menos durante um ou dois anos. Todavia Bryce aceitara um cargo de consultor, numa fábrica de brinquedos científicos — um trabalho que achava certa satisfação, que fazia com que a sua carreira na química encerrasse um círculo.
Certa tarde ao sair do trabalho, parou numa loja no caminho de casa, ao ver um grande cesto com gravações fonográficas, por baixo de um letreiro que dizia ‘Liquidação’.  Mexeu em algumas, brincou por momentos, com uma ou duas, e depois descobriu algo que era o produto de um trabalho amadorístico, e que o espantou por causa do título. Desde os tempos em que as gravações fonográficas se haviam transformado em pequenas bolas de aço, os fabricantes embalavam- nas, em geral em caixinhas de plástico, presas a uma chapa de plástico. A chapa exibia uma imagem pseudo-artística e o comentário, habitualmente ridículo, que os melhores álbuns quadrafónicos costumavam trazer. Mas, a placa onde aquela estava era apenas de cartão e não tinha gravura alguma.
O título da gravação usava o estratagema banal, em letras todas minúsculas, no cartão inteiro. Dizia:
“Poemas do espaço exterior”.

E no verso: “Garantimos-lhe que não vai perceber a língua, mas vai desejar entendê-la! Sete poemas que não são deste mundo, da autoria de um homem a quem chamaremos ‘O visitante’”.
Sem a menor hesitação, Bryce levou a gravação para a cabine onde se podiam ouvir, colocou a bola no canal e acionou o interruptor. A língua que surgiu era estranha, na verdade — triste, fluida, de vogais longas, com agudos, subindo e descendo esquisitamente, completamente ininteligível.

Mas a voz, sem dúvida alguma, era a de T. J. Newton.





Desligou o interruptor. Ao fundo do cartão da gravação estava impresso: Gravada pela Terceira Renascença, Sullivan Street, 23, Nova Iorque.

A Terceira Renascença ficava num sótão. O pessoal de escritório era apenas uma pessoa, um jovem negro garboso, com um bigode enorme. A pessoa em questão estava, felizmente, bem humorada, quando Bryce apareceu no escritório, e explicou com toda a boa vontade, que ‘o visitante’ da gravação era um excêntrico rico, chamado Tom e que vivia no Village. Esse excêntrico, ao que parecia, tinha ele próprio trazido a gravação e pagara o preço da gravação quanto também sua distribuição. Podia-se encontrá-lo num bar e cafeteria na esquina, chamada ‘The Key and Chain’...
The Key and Chain era uma relíquia das velhas cafeterias, que tinham desaparecido nos anos 70. Tal como sucedera a outras, haviam conseguido sobreviver instalando um bar e vendendo bebidas alcoólicas baratas. Não havia anúncios de leitura de poesia, mas existiam quadros amadores nas paredes, mesas de madeira baratas, espalhadas ao acaso, e seus poucos clientes tinham todo o cuidado em se vestirem como maltrapilhos.

Thomas Jerome Newton não se encontrava entre eles.

Bryce pediu um uísque com soda no bar, e bebeu-o devagar, resolvido a esperar, pelo menos, uma hora.

Tinha iniciado a segunda bebida quando Newton entrou.

Primeiro, Bryce não o reconheceu. Newton estava um pouco curvado, e andava com um ar mais pesado que nunca. Trazia os habituais óculos escuros, e também uma bengala, e usava um chapéu de feltro cinzento — o cúmulo do absurdo. Uma gorda enfermeira, fardada, conduzia-o pelo braço.
Levou-o para uma mesa isolada, ao fundo da sala, o fez sentar e partiu.

Newton virou-se para o bar e disse: — Boa tarde, Sr. Elbert.

E o barman respondeu: — Já te atendo, tio.

Depois abriu uma garrafa de gim Gordon's, pôs numa bandeja com outra de angustura, cerveja inglesa e um copo, e levou tudo para a mesa de Newton.
Este tirou uma nota do bolso da camisa, entregou-a, sorriu com ar vago, e disse:

— Guarde o troco.

Bryce observou-o com atenção, do bar, enquanto tateava à procura do copo, o encontrava e o enchia de gim até a metade, acrescentando-lhe uma porção generosa de cerveja. Não se serviu de gelo e não mexeu a bebida, começando a bebê-la. Bryce começou a pensar no que iria dizer a Newton, já que o encontrara. Poderia ir até ele, com o uísque na mão e dizer:

“Mudei de ideia no ano passado. Quero que os antheanos venham, afinal de contas. Tenho lido os jornais e agora quero que os antheanos nos dominem.”

Tudo aquilo parecia tão ridículo, e Newton parecia uma criatura patética!
Aquela conversa de Chicago parecia ter acontecido num sonho, em outro planeta.

Olhou para o antheano, durante um tempo que lhe pareceu enorme, recordando a última vez que tinha visto o Projeto, a nave de Newton, do avião da Força Aérea que o transportara, junto com Betty Jo e mais cinquenta pessoas, tirando-os de Kentucky.

Por momentos, ao pensar nisso, quase esqueceu onde estava. Lembrou-se daquela linda nave, grande e absurda, que tinham construído, rememorou o prazer que tivera ao trabalhar nela, a maneira como, durante um tempo, andara tão absorvido em resolver problemas de metais e cerâmica, de temperatura e pressão, a sensação de que a sua vida estava, realmente, inserida em algo de importante, que valia a pena.

Naquela altura, a nave já tinha enferrujado, se é que o FBI não a tinha enfiado toda em termoplástico, selando, e entregue aos porões do Pentágono.

Então pensou, que diabo, levantou-se, encaminhou-se para a mesa de Newton, sentou-se e disse, com uma voz calma e resoluta: — Olá, Sr. Newton.

A voz de Newton parecia, também, calma: — Nathan Bryce?

— Sim.

Newton acabou a bebida que tinha na mão.





 — Estou feliz que tenha aparecido. Pensei que talvez pudesse aparecer algum dia.

Por uma razão qualquer, o tom da voz de Newton, talvez a casual despreocupação, embaraçou Bryce. Sentiu-se, subitamente, envergonhado.

— Descobri a sua gravação  —  disse. — Os poemas.

Newton sorriu vagamente: — Sim? Gostou deles?

— Não muito. — Tentara apelar para a sua audácia ao dizer aquilo, mas sentiu-se como se, apenas, tivesse bancado o impertinente. Pigarreou: — Por que é que fez aquilo?
Newton continuou a sorrir.

— É espantoso como as pessoas não descobrem as coisas — comentou. — Pelo menos foi o que me disse o homem da CIA. — Começou a arranjar outro gim e Bryce reparou que a mão tremia. Pousou a garrafa, com ar pouco firme. — A gravação não tem nada a ver com poesia antheana. É uma carta.

— Uma carta para quem?



— Para a minha mulher, Sr. Bryce. E para algumas das pessoas inteligentes do meu planeta que me treinaram para... para esta vida. Esperava que fosse transmitida na rádio, em FM. Só o FM transpõe o espaço entre planetas. Mas, tanto quanto sei, não a tocaram.

— O que diz ela?

— Oh ‘Adeus’. ‘Vão pro inferno’. Coisas desse gênero.

Bryce sentia-se cada vez mais incomodado.

Momentaneamente, desejou ter trazido Betty Jo consigo. Betty Jo teria recuperado sua sanidade, para tornar as coisas compreensíveis em suportáveis. Mas Betty Jo acreditara ter estado apaixonada por T.
J. Newton, e isso seria ainda mais incômodo que o que se passava.
Ficou calado, sem saber o que dizer.

— Bem, Nathan, suponho que não se importará que lhe chame de Nathan. Agora que me encontrou, o que quer de mim?

Sorriu por baixo dos óculos e do ridículo chapéu. O sorriso parecia tão velho como a Lua; não era, de modo algum, um sorriso humano.

De súbito, Bryce sentiu-se envergonhado por causa do sorriso, por causa do tom de voz grave, cansado, terrivelmente exausto. Antes de responder, deixou a bebida cair no copo, batendo, sem querer, com o gargalo da garrafa contra ele. Depois bebeu, mal olhando para Newton, para o verde opaco dos óculos de Newton. Agarrou o copo com ambas as mãos, apoiando os cotovelos na mesa, e disse:

— Quero que salve o mundo, Sr. Newton.

O sorriso de Newton não se alterou e a sua resposta foi imediata.

— Vale a pena salvá-lo, Nathan?

Ele não tinha vindo ali para trocar frases irônicas.

— Sim. Acho que vale. Quero viver.

Abruptamente, Newton inclinou-se para diante na cadeira, cm direção ao bar.

— Sr. Elbert — chamou. — Sr. Elbert!

O barman, um homem baixo, com uma cara triste, aflita, saiu do seu devaneio.

— Sim? — Perguntou delicadamente.

— Sr. Elbert, tem consciência de que eu não sou um ser humano? Sabe que sou de outro planeta, que se chama Anthea, e que cheguei aqui numa nave?

O barman encolheu os ombros.

— Ouvi dizer — respondeu.

— Bom, sou mesmo. — Fez uma pausa e Bryce olhou-o chocado, não por aquilo que Newton dissera, mas por uma faceta pueril, adolescente, pateta, que havia na sua voz. O que lhe teriam feito?
Apenas cegado?

Newton chamou outra vez o barman:

— Sr. Elbert, sabe por que motivo eu vim para este mundo?

Daquela vez, o barman nem sequer ergueu os olhos.

— Não, não sei.

— Vim para salvá-los. — A voz de Newton era irônica, existia nela um vestígio de histeria. — Vim para  salvar a todos.

Bryce percebeu que o barman sorria. Depois, atrás do balcão disse:

— E melhor começar já. Precisamos ser salvos, e depressa.

Então Newton deixou pender a cabeça, se por vergonha, desespero ou fadiga, Bryce não saberia.




— Oh, sim. Precisamos ser salvos, e depressa. — Depois levantou o rosto e sorriu para Bryce. — Tem visto a Betty Jo? — Perguntou.

Aquilo o pegou desprevenido.

— Sim...

— Como está? Como está Betty Jo?

— Está bem. Tem saudades suas... Mas, como disse, Sr. Elbert, precisamos ser salvos. Pode fazê-lo?

— Não. Desculpe.

— Não há uma hipótese?

— Não. É claro que não. O governo sabe tudo sobre mim...

— Contou-lhes?

— Podia ter contado; mas não foi preciso. Parece que já sabiam, há muito tempo. Acho que fomos ingênuos.

— Quem? O senhor e eu?

— O senhor. Eu. A minha gente, lá em casa, meus dirigentes... — disse suavemente: — Fomos ingênuos.

Elbert replicou, com a mesma suavidade: — É mesmo.
Parecia genuinamente preocupado, como se acreditasse mesmo, no que Newton estava  afirmando.

— Percorreu um longo caminho.

— Oh, percorri sim. E numa nave pequena... Foi uma viagem muito longa, Nathan, mas li bastante.

— Sim. Mas não me referia a isso. Quero dizer que percorreu um longo caminho desde que chegou. O dinheiro, a nova nave...

— E ganhei muito dinheiro. Ainda ganho. Mais que nunca. Tenho dinheiro em Louisville e dinheiro em Nova Iorque e quinhentos dólares no meu bolso e uma pensão do governo. Agora sou um cidadão, Nathan. Fizeram de mim um cidadão. E talvez possa obter um seguro de desemprego. A World Entreprises é um negócio de sucesso, mesmo sem mim, Nathan. A World Entreprises.
Bryce, intimidado pelo estranho aspecto de Newton, pela sua maneira de falar, sentiu dificuldade em continuar, portanto dirigiu o olhar para a mesa.

— Não pode acabar a nave?

— Acha que deixariam?

— Com todo o seu dinheiro...

— Acha que eu desejo?

Bryce levantou os olhos para ele: — Deseja?

— Não. — Depois, subitamente, Newton reassumiu sua aparência mais antiga, mais composta, mais humana. — Oh, sim, suponho que o desejo, Nathan. Mas não o suficiente. Não o suficiente.

— E a sua gente? A sua família?

Newton fez, outra vez, aquele sorriso que não era terreno.

— Calculo que morrerão todos. Mas talvez ainda vivam mais do que vocês.

— Eles fritaram seu cérebro como fizeram com seus olhos, Sr. Newton?

Bryce ficou surpreendido com as suas próprias palavras, mas a expressão de Newton não se modificou.

— Vocês não sabem nada, absolutamente nada, sobre meu cérebro, Nathan. E isso se deve por serem
humanos.

— Você mudou, Sr. Newton.

Newton riu baixinho: — Em que aspecto, Nathan? Mudei para algo novo, ou voltei a ser algo antigo?
Bryce não soube o que dizer e ficou em silêncio.
Newton pousou o copo na mesa. Depois prosseguiu:

— Este mundo está condenado, tão claro quanto Sodoma e nada posso fazer. — Hesitou. — Sim, uma parte do meu cérebro está destruído.

Bryce, procurando uma maneira de protestar, disse: — A nave...

— A nave é inútil. Tinha que ser acabada a tempo e agora não há mais tempo. Nossos planetas não vão estar suficientemente próximos um do outro, durante mais de sete anos. Já estão afastando-se. E os Estados Unidos nunca me deixariam construí-la. Se a construísse nunca me deixariam lançá-la. E se a lançasse prenderiam os antheanos aqui viessem e iriam cegá-los. E arruinariam os seus cérebros...

Bryce terminou a bebida.

— Você me disse que tinha uma arma.

— Sim. Disse isso. Estava mentindo. Não tenho arma nenhuma.

— Por que mentiria?

Newton inclinou-se pra frente, pousando, cuidadosamente, os cotovelos na mesa.

— Nathan, Nathan. Naquela altura, eu tinha medo de vocês. Tenho medo agora. Sempre tive medo de todas as coisas, cada momento que tenho passado neste planeta, neste planeta monstruoso, belo, aterrorizante, com todas as suas estranhas criaturas e a sua água abundante, e todos os seus habitantes humanos. Tenho medo agora. Tenho medo de morrer aqui.
Calou-se e, como Bryce nada dissesse ainda, recomeçou a falar:

— Nathan, pense em viver com macacos durante seis anos. Ou pense em viver com os insetos, em viver com as formigas, brilhantes, atarefadas e estúpidas.

— Acho que está mentindo. Não somos insetos para você. Talvez no princípio, mas não agora.

— Oh, eu gosto de vocês, sem dúvida. Mas, de qualquer modo, não passam de insetos. Contudo, posso ser mais parecido com vocês do que vocês comigo. — Fez o seu sorriso antigo, esquisito. —
Afinal de contas, são o meu campo de pesquisa, vocês humanos. Estudei vocês durante toda a minha vida.

Bruscamente, o barman falou-lhes: — Amigos, querem mais?

Newton terminou a sua bebida.

— Certamente — disse —, traga-nos dois. Sr. Elbert.

Enquanto Elbert estava limpando a mesa, com um pano laranja, Newton esclareceu:

— Sr. Elbert, resolvi que não vou salvá-los.

— Isso é péssimo — respondeu o outro. Pôs os copos limpos na mesa húmida. — Lamento ouvir isso.

— É uma pena, não? — Tateou procurando a nova garrafa de gim, encontrou-a, e despejou no copo.

Disse: — Vê Betty Jo com frequência, Nathan?

— Sim. Betty Jo e eu vivemos juntos.

Newton bebeu um gole.

— Como amantes?

Bryce riu, baixinho.

— Sim.

A cara de Newton tomou-se impávida, com a impassibilidade que Bryce descobrira ser uma máscara dos seus sentimentos.

— Então a vida continua.

— O que esperava? — Perguntou Bryce. — É claro que a vida continua.

De súbito, Newton desatou a rir. Bryce estava pasmo; nunca o ouvira rir, antes. Então, ainda a tremer, por causa do riso, Newton disse:

— É uma boa coisa. Agora ela não estará mais sozinha. Onde está?

— Em casa, em Louisville, com os seus gatos. Bêbada, provavelmente.

A voz de Newton estava outra vez firme:

— Você a ama?

— É uma boa mulher. Sou feliz com ela.

Newton sorriu, gentil.

— Não leve a mal o meu riso, Nathan. Acho que é uma coisa linda, vocês estarem casados.

— Não estamos, mas tenho pensado nisso.

— Certamente vai casar com ela. Case e vão viajar de lua-de-mel. Precisa de dinheiro?

— Não foi por isso que não casei. Mas posso fazer uso de algum dinheiro, sim. Quer me dar algum?
Newton riu de novo. Parecia satisfeito. Bryce tomou um gole.

— Um milhão de dólares.

— Vou passar um cheque. — Newton tateou o bolso da camisa, tirou um talão de cheques, pousou-o na mesa. Era do Chase Manhattan Bank. — Eu costumava ver na televisão aquele programa, do cheque de um milhão — disse e empurrou o cheque para Bryce. — Preencha que eu assino.
Bryce tirou do bolso sua esferográfica Woolworth, escreveu o seu nome no cheque e depois os algarismos $1.000.000.

A seguir, por extenso: um milhão de dólares. Empurrou o talão para o outro lado da mesa.

— Já está no meu nome — anunciou.

— Tem que me guiar a mão.

Bryce levantou-se, rodeou a mesa, pôs a caneta na mão de Newton e segurou-a, enquanto o antheano escrevia, Thomas Jerome Newton, numa letra clara e firme.
Bryce meteu o cheque na carteira.

— Lembra de um filme — disse Newton — que passou na televisão, chamado ‘A Letter to Three Wives’

— Não.

— Eu aprendi a escrever inglês a partir de uma fotografia dessa carta, há vinte anos, em Anthea. Tínhamos uma recepção bastante clara, em vários canais, desse filme.

— Tem uma letra boa e legível.

—  Claro que tenho. Fazemos tudo muitíssimo bem. Trabalhei a sério para me tornar uma imitação de um ser humano. — Virou-se para Bryce, como se o pudesse realmente ver. — E obtive sucesso.
Bryce, nada dizendo, voltou ao seu lugar. Sentiu que devia mostrar simpatia, fosse o que fosse, mas não sentia nada. Portanto ficou calado.

— Para onde vão viajar? Com o dinheiro?

— Não sei. Talvez até o Pacífico, Taiti. Provavelmente levaremos conosco um aparelho de ar condicionado.

Newton começou a mostrar o sorriso lunar, o sorriso antheano e não terreno.

— E vão embriagar-se.

Bryce sentiu-se incomodado.

— Podemos tentar — respondeu.

Não sabia o que iria fazer com um milhão de dólares. As pessoas costumam perguntar a si mesmas, o que fariam se alguém lhes desse um milhão de dólares, mas nunca o tinha perguntado. Talvez fossem, na verdade, até ao Taiti e se embriagassem numa cabana, se ainda houvesse cabanas em Taiti. Se não, teriam de ficar no Taiti Hilton.

— Bem, desejo uma boa viagem — disse Newton. E depois: — Estou contente por poder fazer qualquer coisa com o dinheiro. Tenho uma quantidade horrorosa dele.
Bryce levantou-se para partir, sentindo-se cansado e um pouco bêbado.

— E não há qualquer hipótese?

Newton sorriu-lhe, de maneira ainda mais estranha que antes; a boca, por baixo dos óculos e do chapéu, era uma linha curva imperfeita, desajeitada, como a de uma criança ao desenhar um sorriso.

— Claro, Nathan, claro que sempre há uma hipótese.

— Bom. Obrigado pelo dinheiro.

Por causa dos óculos escuros, Bryce não podia ver seus olhos.

— A fortuna é caprichosa, Nathan — comentou ele. — A fortuna é caprichosa.

Newton começou a tremer.

Seu corpo anguloso foi-se inclinando para a frente e o chapéu de feltro caiu silenciosamente na mesa, revelando o cabelo branco como giz.

Depois sua cabeça antheana tombou, sobre os magros braços antheanos, e Bryce viu que ele chorava.

Por um instante, ficou paralisado  a olhar. Depois contornou a mesa e, ajoelhando-se, passou os braços em redor do tronco de Newton, e segurou-o gentilmente, sentindo o corpo leve a tremer nas suas mãos, como o de uma ave delicada, palpitante, angustiada.

O barman aproximou-se e, quando Bryce levantou os olhos, ele disse: 

— Acho que o seu camarada precise de ajuda.

— Sim — concordou Bryce. — Acho que precisa. Acho que precisa.

FIM.


O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 15)



IX

Durante mais de um ano tornara-se mais difícil saber o que sentia em relação a muitas coisas.
Não se tratava de uma dificuldade característica do seu povo, mas adquirira-a, fosse como fosse.

No decorrer daqueles quinze anos em que tinha aprendido a falar inglês, a apertar botões, a fazer o nó de uma gravata, a decorar a média de acertos de um jogador de basebol, as marcas dos automóveis, e mais inúmeros pormenores informativos desnecessários, durante todo esse tempo nunca sofrerá por
duvidar de si mesmo, nunca tinha posto em dúvida o plano para o qual fora escolhido.

E, naquele momento, após cinco anos de vida efetiva com seres humanos, era incapaz de saber como se sentia sobre um assunto tão simples como ser liberto da prisão.

Quanto ao plano em si, não sabia o que pensar e, portanto, raramente pensava nele.

Tornara-se muito humano.

De manhã, devolveram seus disfarces. Pareceu estranho tornar a usá-los antes de sair para o mundo, e também parecia tolo, por que e de quem deveria se ocultar? Todavia, sentiu-se satisfeito por estar de posse das lentes de contato, que davam aos olhos uma aparência mais humana. Seus filtros aliviavam-no da  luminosidade que até os óculos escuros, que usava permanentemente, não podiam evitar de todo. E, quando as colocou e se olhou no espelho, ficou aliviado por parecer humano de novo.

Um homem que nunca vira antes foi buscá-lo e o fez percorrer um corredor que estava iluminado por painéis — feitos sob a patente da W. E. Corporation — e guardado por soldados armados. Entraram num elevador.

As luzes do elevador eram opressivamente fortes. Ele pôs os óculos escuros.

— O que têm dito os jornais sobre tudo isto? — perguntou, embora, realmente, não se importasse.

O homem, embora calado até aquele instante, revelou-se, afinal, bastante afável. Era um indivíduo baixo, troncudo, escuro.

— Não é da minha conta — respondeu com ar agradável —, mas acho que disseram que o tinham sob custódia devido a razões de segurança. O seu trabalho é vital para a defesa do país. Coisas desse gênero.

— Teremos repórteres à espera, quando eu sair?

— Acho que não. — O elevador parou. A porta abriu-se para outro corredor com homens armados.

— Vamos tentar sair pela porta dos fundos.

— Agora?

— Daqui a duas horas, mais ou menos. Há certas rotinas a cumprir primeiro. Temos de prepará-lo. E para isso que eu estou aqui. — Continuaram pelo corredor, que era muito comprido e, como o resto do edifício, brilhantemente iluminado. — Me fale, esteve detido por quê?

— Não sabe?

— Essas coisas são mantidas em segredo.

— O Sr. Van Brugh não o informou?

O homem sorriu.

— O Sr. Van Brugh não conta nada a ninguém, talvez com exceção do Presidente, e só diz o que acha que precisa ser dito.

No fim do corredor — ou túnel — havia uma porta que os introduziu no que pareceu um enorme consultório de dentista. Sua limpeza era espantosa e tinha azulejos amarelo-canário. Viu uma cadeira, do tipo dos dentistas, ladeada por várias máquinas, com um ar desconfortavelmente moderno. Duas mulheres e um homem estavam de pé, à espera, sorrindo com delicadeza, e usando batas amarelo-canário, que condiziam com os azulejos.

Estava esperando Van Brugh, não sabia bem por que, mas Van Brugh não se encontrava ali.

O homem que o acompanhava conduziu-o até à cadeira. Fez uma careta.

— Sei que parece horrível, mas não vão fazer nada que o magoe. Só uns testes de rotina, principalmente por motivos de identificação.

— Meu Deus! — exclamou Newton. — Ainda não fizeram testes o suficiente?

— Nós não, Sr. Newton. Desculpe se parece uma repetição do que a CIA tem feito. Mas somos do

FBI, e temos que ter registros seus nos nossos arquivos. São testes do tipo sanguíneo, impressões digitais, um EEG, esse tipo de coisa.

— Muito bem.

Sentou-se na cadeira com ar resignado. De qualquer maneira, não demoraria muito.

Durante algum tempo, picaram-no e examinaram-no com agulhas, equipamento fotográfico e várias engenhocas. Puseram-lhe grampos na cabeça para medir ondas cerebrais, outros nos pulsos para contar batidas cardíacas. Sabia que alguns desses resultados deviam ser surpreendentes, mas eles não mostraram qualquer surpresa. Era tudo, como dissera o homem do FBI, uma questão de rotina.
Depois de quase uma hora, puxaram uma máquina com rodas para perto dele, e pediram para tirar os óculos. A máquina possuía duas lentes, espaçadas como uns olhos, que o examinasse curiosamente.
Ficou imediatamente assustado. Eles desconheciam as peculiaridades dos seus olhos...



— O que vão fazer com isso?

O técnico de bata amarela tirou uma régua pequena do bolso da camisa e atravessou-a contra a ponta do nariz de Newton, obtendo uma medida. Sua voz foi inexpressiva:

— Apenas umas fotografias — explicou. — Não vamos machucá-lo.

Uma das mulheres, com um sorriso profissional, estendeu a mão para os seus óculos escuros.

— Agora, vamos tirar esses...

Ele afastou a cabeça, levantando a mão para proteger-se.

— Só um momento. Que tipo de fotografia?

O homem da máquina hesitou um momento. Depois olhou de relance o indivíduo do FBI, então sentado junto à parede. O do FBI acenou com a cabeça, fazendo, afavelmente, um sinal afirmativo. O técnico da bata amarela disse:

— São dois tipos de imagens, ambas tiradas simultaneamente. Uma é uma foto das suas retinas, para captar a disposição dos vasos sanguíneos. A melhor identificação que se consegue obter. A outra é uma radiografia. Queremos determinar os sulcos no interior do seu occipício, a parte de trás do crânio.

Newton tentou sair da cadeira.

— Não! — gritou. — Não sabem o que fazem!

Mais depressa do que julgou possível, o afável homem do FBI encontrava-se atrás dele, agarrando-o e sentando-o de novo na cadeira. Estava imobilizado.

— Lamento muito, mas temos de fazer estas imagens.

Ele tentou acalmar-se.

— Não os informaram? Não contaram com o que se passa com meus olhos? Com certeza eles sabem.

— O que há com os seus olhos? — perguntou o homem da bata amarela, que parecia impaciente.

— São sensíveis aos raios X. Esse aparelho...

— Não há ninguém que tenha olhos que possam ver raios X. — O homem  obviamente estava irritado. — Ninguém enxerga nessas frequências.

Acenou afirmativamente para a mulher e, sorrindo, esta tirou-lhe os óculos. A luz da sala obrigou-o a pestanejar.

— Eu vejo tudo de uma maneira diferente da de vocês. Deixem-me mostrar como são  meus olhos. Se me largarem eu tiro as lentes de contato.

O sujeito do FBI não o largou.

— Lentes de contato? — perguntou o técnico. Inclinou-se de mais perto, perto dos olhos de Newton durante muito tempo. Depois recuou. — Não está de lentes de contato.
Ele sentiu uma coisa que há muito lhe era desconhecida — pânico.

A claridade da sala tornara-se opressiva, pulsando à sua volta com a regularidade dos batimentos do seu coração.

Falou de uma maneira lenta, embriagada: — São... um tipo novo. Uma membrana e não é de plástico. Se me largarem, só um instante, eu mostro.

O técnico ainda estava de lábios franzidos.

— Isso não existe — declarou. — Tenho experiência com lentes de contato há vinte anos e...

Por detrás dele, o homem do FBI disse algo simpático.

— Deixe-o, Arthur — e soltou-lhe os braços. — Afinal de contas, ele paga seus impostos.

Newton deixou escapar um suspiro. Depois disse: — Preciso de um espelho. — Começou a procurar nos bolsos e, de repente, entrou outra vez em pânico. Não tinha a pinça especial destinada a tirar as membranas... — Desculpe — declarou sem se dirigir a ninguém em especial. — Mas preciso de um instrumento. Talvez no meu quarto...

O homem do FBI sorriu, com ar paciente. — Não vamos ficar aqui o dia todo. E não poderia voltar àquele quarto mesmo que quisesse.

— Muito bem — disse Newton. — Então, têm uma pinça pequena?

O técnico fez uma careta.

— Só um minuto.

Murmurou qualquer coisa e depois foi até uma gaveta. De um momento para o outro tinha reunido um quantidade formidável de pinças — pinças, coisas parecidas com pinças, e instrumentos em forma de pinças, cujo funcionamento não era claro. Arrumou-as na mesa, junto à cadeira de dentista.
Uma das mulheres já tinha entregado a Newton um espelho redondo. Ele tirou da mesa uma pinça pequena sem pontas. Não era muito semelhante àquela que estava habituado a utilizar, mas talvez servisse. Abriu-a e fechou-a, para experimentar algumas vezes. Talvez fosse um pouco grande, mas devia servir.

Depois descobriu que não conseguia manter o espelho estável. Pediu à mulher para o segurar. Ela aproximou-se. O homem de bata amarela começou a bater com o pé no chão. As batidas pareciam andar a compasso com a palpitação das luzes na sala.

Quando levantou a mão, com a pinça, na direção dos olhos, os dedos começaram a tremer-lhe, descontroladamente. Tentou de novo, mas não conseguiu aproximar a pinça dos olhos.

— Desculpem — disse. — Só mais um minuto...

A mão fugiu-lhe, involuntariamente, do olho, com medo do instrumento e das sacudidelas, da tremer dos dedos, sem domínio. A pinça caiu-lhe da mão para o colo. Procurou-a, e então, suspirando, encarou o homem do FBI, cuja cara se mantinha inexpressiva. Por que as luzes precisavam ser tão fortes?

— Posso tomar uma bebida? Gim? — perguntou ele.

De repente o homem riu-se. Mas o riso não parecia afável. Parecia debochado, frio, brutal. E ecoou pela sala de azulejos.

— Vamos em frente! Vamos lá!

Então em desespero, ele agarrou na pinça. Se pudesse desprender parte de uma das membranas, mesmo se prejudicasse o olho, eles poderiam perceber...
Por que é que Van Brugh não aparecia e não lhes dizia? Seria preferível destruir um dos olhos do que submeter ambos àquela máquina.

Bruscamente, as mãos do homem do FBI agarraram seus pulsos e braços — aqueles braços tão débeis quando confrontados com o vigor de um humano — puxando-os para trás das costas e seguros. E, então, alguém lhe pôs um grampo em redor da cabeça, apertando-lhe as têmporas.
— Não! — disse baixinho. — Não façam isso!

Estava incapaz de mover a cabeça.

— Desculpe — disse o técnico. — Mas sua cabeça tem de ficar parada.

Então empurrou a máquina, diante da cara de Newton. Rodou uma maçaneta que fez com que as lentes se aproximassem dos olhos de Newton, como um binóculo.
E Newton, pela segunda vez em dias, fez algo muito humano. Gritou.

— Não sabem que não sou humano? Eu não sou humano!

E, a seguir, houve um lampejo de luz prateada que era mais brilhante para Newton, do que o sol do meio-dia em pleno verão para um humano que tivesse vindo de um quarto às escuras e sido forçado a olhar para cima, de olhos abertos.

Depois sentiu a pressão abandonara-lhe a face e soube que tinham puxado para longe a máquina com rodas.

Só após ter desmaiado duas vezes é que lhe examinaram os olhos e descobriram que estava cego.





X

Mantiveram-no incomunicável durante seis semanas em um hospital do governo, onde os médicos do governo não fizeram nada por ele. As células fotossensíveis das suas retinas tinham sido totalmente danificadas; não eram mais capazes de fazer distinções visuais, como uma chapa fotográfica que tivesse sofrido uma exposição demasiada à luz. Pôde, semanas mais tarde, destrinçar a luz das trevas, e podia dizer, quando um objeto escuro era colocado na sua frente, um objeto grande e escuro. E mais nada, sem cor, nada sobre a forma.

Foi durante esse período que começou a pensar outra vez em Anthea.

Primeiro a recordar pormenores antigos e dispersos, principalmente da infância.

Lembrou-se de certo jogo, parecido com o xadrez, que adorava quando criança — um jogo com
cubos transparentes, num tabuleiro circular — c deparou consigo a evocar as regras complexas pelas quais os cubos verde-pálidos tomavam ascendência sobre os cinzentos, quando se configuravam para formar polígonos.

Rememorou os instrumentos musicais que estudara, os livros que lera, em especial os de história, e o fim automático da sua infância, aos trinta e dois anos de Anthea — ou quarenta e cinco, tal como os humanos os contavam —, quando se casara. Não fora ele a escolher sua esposa, embora às vezes se fizesse isso, mas permitira que a família a escolhesse. O casamento fora eficaz e bastante agradável.

Não existia paixão, mas os antheanos não eram uma raça apaixonada.


 Cego, naquele momento, num hospital dos Estados Unidos, reparou que pensava na mulher com mais afeição do que jamais pensara antes. Tinha saudades dela, e gostaria que estivesse junto dele.

Às vezes chorava.

Como não podia ver televisão, ocasionalmente ouvia rádio.

O governo não conseguira manter em segredo a sua cegueira. Os republicanos estavam a usá-lo na sua campanha. Chamavam o ocorrido de um exemplo de arbitrariedade e irresponsabilidade.

Depois da primeira semana deixou de sentir rancor. Como enfurecer-se contra crianças? Van Brugh pedia-lhe desculpas envergonhadas; tinha sido tudo um erro; ignorava que o FBI não estava informado das peculiaridades de Newton. Tinha absoluta certeza de que Van Brugh não se importava mesmo. Newton assegurou-lhe, exausto, que fora tudo um acidente inevitável. Ninguém tinha culpa — fora um acidente.

Então, um dia, Van Brugh disse-lhe que tinha destruído a gravação. Sempre soubera, que ninguém acreditaria nela, de qualquer forma. Julgariam que se tratava de uma fraude, ou que Newton era louco; fosse o que fosse, menos a verdade.

Newton perguntou se ele acreditava.

— É claro que acredito — afirmou Van Brugh calmamente. — Seis pessoas, pelo menos, sabem dela e acreditam nela. O Presidente é uma dessas pessoas e o mesmo acontece com o Secretário de Estado. Mas destruímos todos os registros.

— Por quê?

— Bem — Van Brugh riu com frieza —, entre outras coisas não queremos entrar na história como o maior grupo de loucos que já governou este país.
Newton pousou o livro no qual andava a praticar Braille.

— Então posso recomeçar o meu trabalho? Em Kentucky?

— Possivelmente. Não sei. Vamos vigiá-lo durante o resto da sua vida. Mas se os republicanos ganharem eu serei substituído. Não sei.

Newton pegou outra vez o livro. Por um momento, interessara-se — era a primeira vez em semanas — pelo que acontecia à sua volta. Mas o interesse desaparecera tão depressa como surgira, sem deixar traços. Riu amavelmente.

— É interessante — comentou.

Quando abandonou o hospital, guiado por uma enfermeira, havia uma multidão esperando por ele na rua.

À luz resplandecente do Sol, podia distinguir silhuetas. Avançaram por uma passagem aberta por entre a gente, talvez graças a polícia, e a enfermeira levou-o até seu carro. Ouviu aplausos fracos.
Tropeçou duas vezes, mas não caiu. A enfermeira guiou-o com perícia; ficaria a seu lado meses, ou anos, todo o tempo que necessitasse. Chamava-se Shirley e, tanto quanto podia dizer, era gorda.
De súbito sentiu que lhe agarravam a mão com suavidade. Uma pessoa avantajada estava na sua frente.

— Que bom tê-lo de volta, Sr. Newton — era a voz de Famsworth.

— Obrigado, Oliver. — Sentiu-se muito cansado. — Temos vários assuntos a discutir.

— Sim. A televisão está filmando-o, sabe, Sr. Newton?

— Oh, não sabia. — Olhou em volta, tentando, sem êxito, descobrir a forma da câmera. — Onde?

— À sua direita — disse Famsworth.

— Vire-me na direção dela, por favor. Alguém pode querer fazer uma pergunta.
Uma voz, de um comentarista televisivo, falou junto ao seu cotovelo.

— Sr. Newton, Duane Whitely da CBS. Pode dizer como se sente por estar outra vez livre?

— Não — replicou Newton. — Ainda não.

O indivíduo não pareceu ficar admirado.

— Quais os seus planos para o futuro? Depois do que acabou de passar...

Newton acabara, finalmente, por descobrir a câmera, e enfrentava-a quase sem consciência alguma da sua audiência humana, tanto em Washington como em todo o país.

Pensava em outra audiência. Sorriu com ar débil. Para os cientistas antheanos? Para sua mulher?

— Eu estava, como sabem — declarou —, num projeto de exploração espacial. A minha empresa estava empenhada num projeto bastante especial, destinado a enviar uma nave para o sistema solar, medindo as radiações que, até agora, tomaram impossível viagens interplanetárias. — Fez uma pausa, para respirar, e percebeu que a cabeça e os ombros lhe doíam. Talvez fosse outra vez a gravidade, depois de tanto tempo passado na cama. — Durante a minha detenção, que não foi de forma alguma desagradável, tive oportunidade de pensar.

— Foi? — perguntou o homem preenchendo a pausa.

— Sim. — Sorriu gentilmente na direção da câmera, na direção do seu lar. — Concluí que o projeto era demasiado ambicioso. Vou abandoná-lo.

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 14)



VIII

Começou outra vez a beber bastante, durante o segundo mês de detenção, e não estava absolutamente certo do motivo. Não era solidão, visto que, naquele momento, confessara para si mesmo, como fizera para Bryce, que não sentia desejo de companhia.

Nem lhe pesava aquela sensação de forte tensão com que trabalhara durante anos, já que os problemas eram poucos e a responsabilidade quase inexistente.
Havia apenas um assunto importante que podia ter servido de desculpa para beber: continuar, ou não, com o plano, desde que o governo o permitisse. Todavia, não se preocupava muitas vezes com isso, bêbado ou sóbrio, já que tal possibilidade parecia remota.

Ainda lia bastante e ganhara novo interesse pela literatura avant-garde em especial no que dizia respeito à difícil poesia, sestinas, villanelles, ballades, que, embora um pouco fracas cm ideias e intuição, eram com frequência, fascinantes, do ponto de vista linguístico. Até tentou escrever um poema, um soneto italiano em alexandrinos, mas achou-se alarmantemente pouco dotado nesse campo, antes de chegar à oitava linha. Pensou que podia tentar depois e em antheano.

Também lia ciências e história. Os seus carcereiros eram mais liberais a forneciam-lhe livros e gim; nunca vira sequer uma sobrancelha franzida, nem havia um dia de adiamento, quando pedia qualquer coisa ao criado encarregado de atendê-lo e limpar o apartamento. Pareciam admiravelmente capazes de satisfazê-lo. Uma vez, apenas para ver o que iria acontecer, pediu a tradução em árabe de ‘E o Vento Levou’, e o criado, sem se desconcertar, trouxe-a em cinco horas. Visto não conseguir ler árabe, e não gostar muito de romances, fosse como fosse, utilizou-o como suporte para livros, numa das suas prateleiras; pois era colossal.

As únicas objeções graves em relação ao confinamento era poder, por vezes, sair ao ar livre, e outras ver Betty Jo, ou Nathan Bryce, as únicas pessoas do planeta a quem poderia chamar de amigos. Sentia qualquer coisa, também por Anthea, mas era uma vaga impressão. Já não pensava, com frequência, no seu lar.
Tornara-se terrestre.

Ao final do segundo mês, parecia terem terminado os testes físicos, deixando-o com algumas recordações desagradáveis e uma dor de cabeça recorrente. Os interrogatórios havia tornando-se repetitivos; parecia terem esgotado o que lhe queriam perguntar. E, todavia, ninguém fizera a mais óbvia das perguntas: ninguém perguntou se ele era de outro planeta.

Achava que suspeitavam disso, mas nunca tinham perguntado cara a cara. Teriam medo começasse a rir deles ou faria parte de uma técnica psicológica? As vezes quase dizia a verdade inteira, na qual não acreditariam, provavelmente. Podia afirmar ser de Marte, ou Vénus, e insistir naquilo até estarem convencidos de que ele era louco.

E então, uma tarde, mudaram bruscamente de técnica.

Surgiu como uma surpresa enorme, e como um alívio por fim.

O interrogatório começara da maneira habitual; o inquisidor, um tal Sr. Bowen, tinha interrogando-o uma vez por semana, desde o princípio. Embora nenhum dos diversos oficiais lhe tivesse dito qual o seu cargo, Bowen sempre o impressionara como sendo uma personagem mais importante que os outros. O seu secretário parecia um pouco mais eficiente, a sua roupa um pouco mais cara, as suas olheiras um pouco mais escuras. Talvez fosse um subsecretário, ou algo irrelevante na CIA. Era também, à primeira vista, um homem com uma inteligência notável.

Quando entrou saudou Newton cordialmente, sentou-se numa poltrona e acendeu um cigarro. Newton não apreciava o cheiro dos cigarros, mas já não protestava. Além disso, o quarto tinha ar condicionado.
O secretário sentou-se à mesa. Felizmente, ele não fumava.

Newton cumprimentou os dois, com bastante afabilidade; contudo, não fez menção de se levantar quando entraram no quarto. Havia, reconhecia-o, uma espécie de jogo de gato e rato; mas não estava disposto a jogar.
Em geral, Bowen ia direto ao assunto.







— Tenho que confessar, Sr. Newton, que cada vez consegue nos iludir ainda mais. Ainda não sabemos quem é nem de onde veio.

— Sou Thomas Jerome Newton, de Iddle Creeck, Kentucky. Um mutante, do ponto de vista físico.
Viu o meu registro de nascimento no tribunal de Bassett Country. Nasci em 1918.

— Se assim fosse teria setenta anos. Parece ter quarenta.
Newton encolheu os ombros.

— Tal como disse, sou um monstro, um mutante. Possivelmente, uma espécie nova. Acho que não é ilegal, ou é?

Tudo aquilo já fora dito antes; mas não se importava de dizer tudo de novo.

— Não é ilegal. Mas achamos que o seu registo de nascimento é forjado, que você é um ilegal.

— Pode provar?

— Talvez não. O que o senhor atua muito bem, Sr. Newton. Se conseguiu inventar os filmes Worldcolor, calculo que poderia arranjar facilmente um registo falso. É claro que um de 1918 seria difícil de verificar. Já não há ninguém vivo para testemunhar. Mas não somos capazes de localizar qualquer registro seu de infância. E ainda mais estranho, não conseguimos descobrir ninguém que o conheça há mais de cinco anos. — Bowen esmagou o cigarro e depois coçou o ouvido, como se estivesse pensando outra coisa. — É capaz de explicar o porquê, Sr. Newton?

Newton pensou, com indolência, se os inquisidores frequentariam escolas especiais onde aprendessem as técnicas, como a de  coçar o ouvido, ou se aprendiam esses detalhes do cinema.
Deu a mesma resposta que já dera antes.

— Porque sou um monstro, Sr. Bowen. A minha mãe quase não deixava ninguém me ver. Como já deve ter reparado não sou do gênero de me preocupar, quando estou confinado.

— Nem esconder uma criança era tão difícil naquela época. Principalmente em Kentucky. Nunca foi à escola?

— Nunca.

— Contudo, é uma das pessoas mais inteligentes que conheci. — E depois, antes que pudesse replicar: — Sim, eu sei, também tem a mente de um monstro.

Bowen sufocou um bocejo. Parecia aborrecido.
—  Sim, tenho.

— E escondeu-se em uma torre de marfim, em Kentucky, até ter sessenta e cinco anos, e nunca ninguém o viu, nem ouviu falar?

Bowen sorriu com um ar cansado.

A ideia era absurda, evidentemente, mas nada podia fazer a respeito daquilo.
Ninguém, a não ser um idiota, acreditaria naquela história, mas ele tinha de ter uma. Podia ter se dado a mais incômodos para arranjar alguns documentos e para subornar alguns burocratas que lhe inventassem um passado mais convincente; mas a decisão, tomada muito antes dele deixar Anthea, fora a de não se arriscar mais que o necessário. Mesmo conseguir um especialista para forjar um documento que provasse o seu nascimento, já havia sido um difícil e perigoso.

— E certo — sorriu. — Ninguém ouviu nunca falar de mim até aos sessenta e cinco anos, exceto algumas pessoas de família, falecidas há bastante tempo.
Do nada, Bowen lançou uma nova evidência:

— E então, resolveu começar a vender anéis, de cidade em cidade? — A sua voz tomou-se áspera. — Fez, sem a ajuda de ninguém, calculo, cerca de cem anéis de ouro, todos perfeitamente iguais. E decidiu, de repente, aos sessenta e cinco anos, tornar-se vendedor ambulante?

Aquilo foi uma surpresa; ainda não tinham falado nos anéis, se bem que ele partisse do princípio que saberiam da sua existência. Newton sorriu ao pensar na explicação absurda que ia dar àquela história.

— É verdade — confirmou.

— E creio que cavou no quintal de sua casa, até encontrar o ouro, e depois fez os anéis com o seu conjunto de química juvenil, e gravou-os o senhor mesmo com a ponta de um alfinete?! Tudo isso para vender as joias, por menos do que valiam, a pequenas joalherias?
Newton não conseguiu deixar de se sentir divertido.

— Sou um excêntrico, também, Sr. Bowen.

— Não é assim tão excêntrico. Ninguém é excêntrico a esse ponto.

— Bem, então como explicaria?

Bowen fez uma pausa e acendeu outro cigarro. Após tudo isso, estava com a mão perfeitamente firme.

— Creio que trouxe os anéis consigo numa nave espacial. — Levantou ligeiramente as sobrancelhas.

— O que acha disso como palpite?
Newton não foi capaz de conter-se, mas conseguiu impedir que notasse.

— Interessante.

— Sim, é sim. E ainda mais quando se pensa que descobrimos restos de uma nave peculiar, a cerca de dez quilômetros da cidade onde vendeu o primeiro anel. Pode não saber disto, Sr. Newton, mas aquele casco que abandonou ainda tem radioatividade. Passou pelo cinturão de Van Allen.

— Não faço ideia do que está dizendo — arriscou Newton.
Não havia mais nada para dizer. O FBI saíra-se muito bem. Houve uma longa pausa. Depois, acrescentou:

 — Se eu tivesse aterrissado aqui numa nave espacial, não teria uma maneira melhor de arranjar dinheiro do que vender anéis?

— O que faria — perguntou Bowen —, se tivesse vindo de Vénus, digamos, e precisasse de dinheiro?
Newton teve dificuldade em manter a voz firme; uma das poucas vezes na sua vida em que tal ocorrera.

— Se os venusianos pudessem construir naves espaciais, suponho que poderiam falsificar dinheiro.

— E onde encontrariam, em Vénus, uma nota de dez dólares para copiar?
Newton não respondeu, e Bowen procurou no bolso do casaco, tirou um objeto pequeno e pousou-o na mesa, a seu lado. O secretário levantou os olhos, por instantes, esperando que alguém dissesse qualquer coisa. Newton pestanejou.
A caixa para guardar aspirinas.

— Dinheiro falso leva-nos a outra coisa, Sr. Newton.

Ele sabia do que Bowen ia falar e, praticamente, nada podia fazer quanto àquilo.

— Onde arranjou isso? — perguntou.— Um dos meus homens tropeçou nisso quando fez uma busca no seu quarto de hotel, em Louisville. Há dois anos, antes de partir a perna no elevador.

— Durante quanto tempo andaram a revistar meus quartos?

— Durante muito tempo, Mr. Newton.

— Então deve ter tido razões para me prender antes. Por que não o fez?

— Bem — disse Bowen —, é natural que quiséssemos descobrir primeiro o que tencionava fazer. Com aquela nave que anda a construir no Kentucky. E deve saber, perfeitamente, que tudo aquilo é muito suspeito. Tomou-se um indivíduo muito rico, e não podemos andar por aí a prender milionários se fazemos parte de um governo com sanidade mental, tendo como acusação o fato do indivíduo ser de Vénus, por exemplo. — Inclinou-se a frente, baixando a voz. — Você é de Vénus, Sr. Newton?
Newton sorriu. Novas informações não tinham alterado o quadro geral.

— Nunca disse que era, a não ser de Iddle Creeck, Kentucky.
Bowen olhou pensativamente a caixinha. Pegou-a e sentiu o peso na palma da mão. E disse:

— Como estou certo de que já sabe, esta caixa é de platina, o que tem de admitir que é espantoso. E também espantoso que, considerando a qualidade do material e a mão-de-obra, como se diria, seja uma imitação muito mal feita de uma caixa de aspirinas da Bayer. Por exemplo, tem um quarto de polegada de tamanho a mais, e as cores estão desbotadas. Além disso, a dobradiça não está feita da mesma maneira que o pessoal da Bayer as faz. — Olhou para Newton. — Nem sequer é uma boa dobradiça, é apenas diferente. — Sorriu de novo. — Mas talvez o mais espantoso desta caixa é não ter o emblema da firma, Sr. Newton...

Newton sentiu-se incomodado, e furioso consigo mesmo, por não se ter lembrado de destruir a caixa.

— E a que conclusão chegou, depois disto tudo?

— Concluímos que alguém falsificou a caixa, o melhor possível, a partir de uma imagem vista num anúncio de televisão. — Soltou um riso breve. — A partir de uma televisão muito diferente.

— Iddle Creeck — declarou Newton — tudo é diferente lá.

— O mesmo que Vénus. E vendem-se caixas de aspirina da Bayer, com comprimidos e tudo, nas lojas de conveniência de Iddle Creeck, por um dólar. Não há qualquer maneira das pessoas as fazerem em Iddle Creeck.

— Nem se se for, por acaso, um monstro excêntrico, com obsessões muito esquisitas?

Bowen ainda parecia divertido — possivelmente com ele mesmo.

— Não é muito provável. De fato eu podia perfeitamente acabar com todo este jogo argumentivo. Uma das coisas fascinantes sobre isso é uma... uma pessoa tão inteligente como o senhor poder cometer tantos erros. Por que acha que resolvemos prendê-lo quando ainda estava em Chicago? Já teve dois meses para pensar.

— Não faço ideia — confessou Newton.

— Era o que eu queria dizer. Aparentemente vocês, os antheanos, não estão nada habituados a pensar como nós. Acredito que qualquer leitor de revistas de detetives, um humano comum, teria calculado que seríamos obrigados a colocar um microfone no seu quarto, em Chicago, quando estava confessando ao Dr. Bryce.

Ele ficou durante um minuto inteirinho, surpreso. Depois, disse, por fim:

— Não, Mr. Bowen, aparentemente os antheanos não pensam como vocês. Mas também não trancamos uma pessoa, durante dois meses, de forma a podermos fazer-lhe perguntas para as quais já sabemos as respostas.

Bowen encolheu os ombros.

— Os governos modernos agem de maneiras misteriosas. Todavia, prendê-lo não foi ideia minha, foi do FBI. Alguém lá encima entrou em pânico. Têm receio que vá fazer explodir o mundo com aquela sua nave.  Na realidade, essa tem sido a teoria deles, desde o princípio. Os executivos encheram relatórios a cerca do projeto, e os diretores assistentes tentaram adivinhar quando ia lançar a nave contra Washington, ou Nova Iorque. — Sacudiu a cabeça. — Desde Edgar Hoover temos uma equipe ocupada com esta preocupação apocalíptica.

Newton levantou-se, bruscamente, e foi buscar uma bebida. Bowen pediu três. Então, levantou-se, também.

Entregando os copos a Bowen e ao secretário — o secretário evitava olhar em seus olhos, enquanto tomava a bebida — Newton pensou numa coisa:

— Já que o FBI ouviu a gravação, creio que fez uma gravação, devem ter mudado de ideia sobre meus objetivos.

Bowen bebericou.

— De fato, Sr. Newton, nunca deixamos que o FBI soubesse da gravação. Apenas demos ordens para  prendê-lo. A gravação nunca saiu do meu gabinete.
Aquilo era outra surpresa. Mas as surpresas estavam a suceder-se com rapidez.

— Como pôde impedi-los de ouvir a gravação?

— Bem — explicou Bowen —, já deve saber que tenho a sorte de ser o diretor da CIA. Portanto, estou acima do FBI.

— Então você deve ser... como é o nome, Van Brugh?

— Somos um bando ardiloso, dentro da CIA — esclareceu Bowen ou Van Brugh. — De qualquer maneira, uma vez de posse da gravação, sabíamos o que queríamos sobre você. E também a partir da sua confissão, determinamos que, uma vez que o FBI o capturasse, o que estavam prestes a fazer, qual seria a história a ser contada para eles. Não confiamos no FBI. São tempos perigosos, Sr. Newton; podiam ter resolvido o problema matando-o.

— E vocês não pensam em me matar?

— Claro que isso nos ocorreu. Mas nunca estive de acordo com isso, pois, por mais perigoso que o senhor fosse, seria matar a galinha dos ovos de ouro.
Newton acabou a bebida e encheu o copo.

— O que isso quer dizer? — perguntou.

— Temos uma grande quantidade de projetos de armas baseadas em dados que tiramos do seu arquivo privado, há três anos. Como sabe, atravessamos tempos perigosos; existem diversas maneiras de utilizar seus serviços. Calculo que vocês, os antheanos, saibam muito de armamento.
Newton fez uma longa pausa, contemplando a bebida. Depois disse calmamente:

— Se ouviu a conversa com o Bryce sabe o que nós, antheanos, fizemos a nós mesmos, com as nossas armas. Não tenho qualquer intenção de fazer dos Estados Unidos uma nação onipotente. Nem poderia, mesmo que desejasse. Não sou um cientista. Fui escolhido para a viagem devido ao meu vigor físico, não aos por meus conhecimentos. Sei muito pouco sobre armas, menos do que o senhor, imagino.

— Deve ter visto armas em Anthea, ou ouvido falar delas.

Newton, talvez devido ao álcool, já não se sentia na defensiva.

— O senhor tem visto automóveis, Sr. Van Brugh. Pode explicar um selvagem africano como fabricar um? Apenas com os materiais à disposição?

— Não. Mas poderia explicar sobre a combustão interna para um selvagem. Se pudesse encontrar um, na África moderna. E, se fosse um selvagem esperto, talvez fosse capaz de fazer qualquer coisa com o que lhe explicasse.

— Provavelmente matar a si próprio — comentou Newton. — Em qualquer caso, não tenciono contar-lhe nada neste aspecto, por mais valor que possa ter para você. — Acabou a outra bebida. — Suponho que podem tentar torturar-me.

— Uma perda de tempo, receio — foi a resposta de Van Brugh. — Uma razão para termos feito perguntas estúpidas, durante dois meses, foi estabelecer uma espécie de estudo de psicanálise. Temos câmeras registrando  a quantidade de vezes que pisca, e coisas do gênero. Já concluímos que tortura não funcionaria. Ficaria louco facilmente, se sofresse dores; e não podemos aprender o suficiente da sua psicologia, culpa e ansiedades e coisas assim, para lhe aplicarmos uma espécie de lavagem cerebral. Também o enchemos de drogas, hipnóticos, narcóticos, e não deram resultado.

— Então o que me vão fazer? Me dar um tiro?

— Não. Nem isso podemos fazer, sem a permissão do Presidente pelo menos, e ele não daria. —

Depois sorriu, com tristeza. — Bem, percebe Sr. Newton, depois de todos os fatores, o derradeiro é, afinal, uma questão de política prática, humana.

— Política?

— Estamos em 1988, ano de eleições. O presidente encaminha-se para o segundo mandato, e está numa posição muito boa, já que Watergate não alterou nada, e o presidente nos utiliza, a CIA, para espiar o outro partido.

De repente, inesperadamente, Newton começou a rir.

— Se me derem um tiro, o Presidente pode perder as eleições?

— Os republicanos têm os seus amigos industrialistas na Associação Nacional de Produtores, já bastante excitadinhos. Esses cavalheiros, como provavelmente sabe, detêm uma enorme influência.
Também protegem a si mesmos.

Newton continuava a rir. Era a primeira vez na vida que ria de verdade. Não se tratava só de dar gargalhadinhas; ria alto, e descontroladamente. Por fim disse:

— Então vocês vão me liberar?

Van Brugh sorriu, mas sem relaxar: — Amanhã pela manhã.

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 13)



VI

Newton pousou o livro.

O médico devia aparecer dentro de poucos minutos, e não sentia vontade de ler.
Nas duas semanas da sua detenção pouco fizera além de ler. Isso quando não estava sendo interrogado ou examinado pelos especialistas — médicos, antropólogos, psiquiatras — ou ainda por homens enfiados em ternos conservadores que deviam ser funcionários do governo, embora nunca lhe dissessem quem eram, quando perguntava.

Tinha relido Spinoza, Hegel, Spengler, Keats, o Novo Testamento e, agora dedicava a atenção a algumas obras sobre linguística. Eles lhe traziam tudo o que pedia, com muita rapidez e cortesia.

Também tinha um leitor de cassetes, que raramente usava, uma filmoteca, um conjunto televisivo da World Enterprises, e um bar, mas não havia janelas para poder ver Washington. Haviam dito que estava perto da cidade, se bem que não especificassem a que distância se encontrava.

Via televisão à noite, em parte por uma espécie de nostalgia, às vezes por curiosidade. De vez em quando, mencionava-se o seu nome — porque era impossível um homem tão rico como ele estar preso sem um pouco de publicidade. Mas as referências eram sempre vagas, vinham de fontes oficiais cujo nome não era citado e empregavam palavras como ‘suspeita’. A ideia era a de que se tratava de um ‘estrangeiro não registado’, mas nenhuma fonte governamental esclarecera com clareza de onde ele era, ou de onde pensavam que seria.

Um comentarista televisivo, célebre pelo seu humor cáustico, dissera com ar petulante:
“Por aquilo que se diz em Washington, entende-se que Sr. Newton, agora sob vigilância e custódia, é um visitante ou da Mongólia ou do espaço.”

Ele sabia também, que aquelas transmissões estariam sendo vigiadas pelos seus superiores em Anthea e sentia-se relativamente divertido com a consternação daqueles, ao saberem da sua posição, e na sua curiosidade em descobrirem o que havia acontecido na verdade.

Bom, ele também ignorava o que estava realmente acontecendo.

Ao que parecia, o governo desconfiava dele, devido às informações que Brinnarde lhes devia ter fornecido durante o ano e meio em que fora seu secretário. E Brinnarde, que tinha sido o seu braço-direito no projeto, com certeza teria colocado alguns bons espiões em todas as áreas da organização, de forma que o governo devia ter nas mãos boa quantidade de pormenores acerca das suas atividades e do projeto em si. Mas havia coisas que tinha ocultado a Brinnarde, coisas que eram muito improváveis que ele soubesse. Mesmo assim, tomava-se impossível determinar as intenções dos outros.

Por vezes pensava no que aconteceria se contasse aos seus inquisidores:"Realmente sou do espaço exterior, e tenciono conquistar o planeta”. Devia dar origem a reações interessantes. Mas acreditar, dificilmente seria uma dessas reações.

As vezes pensava no que estaria acontecendo com a World Enterprises, naquela altura em que se encontrava absolutamente fora de comunicação com a empresa. Famsworth tomaria a frente dela? Newton não podia receber correspondência, nem telefonemas. Existia um telefone na sua sala de estar, mas nunca tocava, e estava proibido de fazer chamadas para fora. O aparelho azul-bebé estava sobre uma mesa de mogno. Tentara utilizá-lo várias vezes, mas uma voz gravada dizia: “Lamentamos, mas o uso deste telefone é restrito”.

A voz era agradável, feminina, artificial. Nunca explicara o porquê de ser restrito. De vez em quando, ao encontrar-se só ou um pouco embriagado — não bebia tanto como antes, porque fora aliviado da tensão —, pegava no auscultador só para ouvir a voz dizer: “Lamentamos, mas o uso deste telefone é restrito”.

A voz era muito suave; sugeria uma delicadeza infinita e um tipo vago de eletrônica.

O médico foi pontual, como sempre: o guarda deixou-o entrar as onze horas. Trazia a sua mala e vinha acompanhado por uma enfermeira, com uma cara impassível — o tipo de cara que parecia dizer: “Não me importo nada com o motivo por que vai morrer, sou eficiente no papel que vou desempenhar nisso”.

Tratava-se de uma loira e, pelos padrões humanos, era bonita. O médico chamava-se Martinez; era um fisiologista.

— Bom dia, doutor — disse Newton. — Em que posso ser-lhe útil?

O médico sorriu com um ar casual, da prática.


— Outro teste, Sr. Newton. Outro testezinho.

Falava com um leve sotaque espanhol. Newton quase gostava dele; era menos formal que a maior parte das pessoas com quem tivera de lidar.

— Julguei que já sabiam tudo que poderiam desejar — replicou Newton. — Já me tiraram radiografias, amostras de sangue e de linfa, já me registraram as ondas cerebrais, mediram e me tiraram amostras dos ossos, fígado e rins. É difícil supor que ainda possa haver mais para aprender sobre mim.

O médico abanou a cabeça e brindou Newton com um sorriso penetrante.

— Deus sabe como o achamos... interessante. Tem uma série de órgãos nunca vistos.

— Sou um monstro, doutor.





O médico riu-se outra vez; mas era um riso tenso.

— Não sei o que faríamos se tivesse uma apendicite, ou qualquer outra coisa. Mal sabemos onde procurar.
Newton sorriu-lhe.

— Não precisa se preocupar. Não tenho apêndice. Mas calculo que me operariam, de qualquer forma. Provavelmente, ficariam encantados por me abrirem e verem o que poderiam descobrir.

— Oh, não sei. Uma das primeiras coisas que aprendemos a cerca de você, depois de lhe contarmos os dedos, é claro, foi que não tinha apêndice. Na realidade há muitas coisas que lhe faltam. Temos utilizado equipamento bastante avançado. — Depois voltou-se para a enfermeira. — Pode dar o Nembucaine ao Sr. Newton, Miss Griggs?
Newton estremeceu.

— Doutor — declarou —, já lhe disse que os anestésicos não têm qualquer efeito no meu sistema nervoso, exceto provocarem dor de cabeça. Se vai fazer qualquer coisa que cause dor não há motivo para o tomar ainda mais doloroso.

A enfermeira, ignorando-o totalmente, começou a preparar a seringa hipodérmica. Martinez dedicou-lhe o sorriso paternalista reservado, como era evidente, para os esforços habilidosos dos pacientes quando tentavam entender os ritos da medicina.

— Talvez não esteja consciente de como podemos machucá-lo, se não usássemos anestésicos.
Newton começava a ficar exasperado. A sua sensação de ser um ser humano inteligente, maltratado por macacos curiosos e pomposos, tinha se tornado intensa durante as últimas semanas. Só que, é claro, quem estava na jaula era ele, enquanto os macacos entravam e saíam, tentando parecer sábios.

— Doutor — disse ele —, não viu os resultados dos testes de inteligência?

O médico abrira a pasta, em cima do aparador, e tirava algumas folhas. Cada folha tinha “CONFIDENCIAL” impresso.

— Testes de inteligência não fazem parte da minha especialidade, Sr. Newton. E, como deve saber, talvez, todas estas informações sejam altamente confidenciais.

— Sim. Mas o senhor sabe.

O médico pigarreou. Estava preenchendo um dos formulários. Data, tipo de teste.

— Bom, tem havido alguns boatos.

Newton estava novamente furioso.

— Imagino que sim. Também imagino de que percebe que a minha inteligência é cerca do dobro da sua. Pode acreditar em mim quando digo que sei que as anestesias locais surtem, ou não, efeito.

— Temos estudado exaustivamente a estrutura do seu sistema nervoso. Parece não haver motivo para
que o Nembucaine não faça efeito... como faz em todo mundo.

— Talvez não saiba tanto sobre sistemas nervosos como julga saber.

— Pode ser. — O médico acabara de preencher o formulário e pousara o lápis, enquanto pegava num peso de papéis. Um peso de papéis desnecessário, visto não haver janelas, nem vento. — Pode ser. Mas, repito, não é a minha especialidade.

Newton olhou de relance para a enfermeira, que já tinha a agulha pronta. Parecia esforçar-se em fingir que não ouvia a conversa. Pensou como fariam para que aquela gente se calasse sobre o seu curioso prisioneiro, mantendo afastados dos repórteres. Talvez o governo condenasse ao isolamento todos os que trabalhavam com ele. Mas seria difícil. Achava quase divertido que tivesse de ser o motivo de algumas especulações apaixonadas entre as poucas pessoas que estavam a par das suas ‘peculiaridades’.

— Qual é a sua especialidade, doutor?

O médico encolheu os ombros.

— Principalmente ossos e músculos.

— Isso parece agradável.

A enfermeira veio com a seringa e Newton, resignando-se, começou a arregaçar a manga da camisa.

— Poderia tirar a camisa — sugeriu o médico. — Vamos trabalhar nas suas costas desta vez.

Não protestou e começou a desabotoar a camisa. Quando estava quase, ouviu a enfermeira suspender a respiração, discretamente. Ergueu os olhos. Era óbvio que não lhe tinham dito grande coisa, visto que tentava, com todo o cuidado, não olhar para o seu peito, sem pelos e sem mamilos.

Eles tinham, claro, retirado os elementos do seu disfarce. Pensou qual seria a reação da enfermeira quando se aproximasse o suficiente para reparar nas suas pupilas.

Depois de tirar a camisa, a enfermeira injetou-lhe os músculos de ambos os lados da espinha. Tentou não lhe fazer doer, mas foi bastante doloroso. A seguir, perguntou:

— Agora, o que vai fazer?

O médico escreveu a hora da injeção no seu formulário. Depois disse:

— Primeiro, vou esperar vinte minutos, enquanto o Nembucaine... faz efeito. Depois, vou tirar
amostras da sua medula espinhal.

Newton não disse palavra. Mas acabou por proferir:

— Ainda não lhe disseram? Meus ossos não têm medula. São ocos.

O médico pestanejou.

— Deve haver medula. Os corpúsculos do sangue...

Newton não estava habituado a interromper as pessoas, mas, daquela vez, interrompeu.

— Não quero saber nada de corpúsculos vermelhos, nem de medula. Provavelmente, sei tanto de fisiologia quanto o senhor. Mas não existe medula nos meus ossos. E não posso dizer-lhe que vou adorar sujeitar-me a qualquer sondagem penosa da sua parte, de forma que o senhor, ou os seus superiores, sejam lá quem forem, possam satisfazer a curiosidade a cerca das minhas... singularidades. Já lhe expliquei uma dúzia de vezes, que sou um mutante, um monstro. Não pode acreditar na minha palavra?

— Desculpe — disse o médico parecendo lamentar aquilo tudo.

Newton olhou para além dele, por instantes, observando uma má reprodução da ‘Mulher de Aries’, de Van Gogh. O que teria o governo dos Estados Unidos a ver com uma mulher de Aries?

— Um dia gostaria de conhecer seus superiores — declarou. — E, enquanto espero que o seu inútil Nembucaine faça efeito, gostaria de experimentar um anestésico que prefiro.

A cara do médico estava pálida.

— Gim — disse Newton. — Gim com água. Gostaria de me acompanhar?
O médico sorriu, automaticamente. Todos os médicos sorriem perante as piadas de seus pacientes.

— Desculpe — disse. — Estou a serviço.

— Tenho a certeza de que o senhor é um clínico muito caro na sua... especialidade, com um bar imitação de mogno no gabinete. Juro que não lhe darei álcool suficiente para fazer sua mão tremer, enquanto sonda a minha espinha.

— Não tenho gabinete — replicou o outro. — Trabalho num laboratório. Geralmente, não bebemos quando estamos trabalhando.

— Não, creio que não. Regulamentos. — Depois se levantou e sorriu-lhe do alto da sua estrutura. — Vou beber sozinho.

Era agradável ser mais alto do que eles. Foi até ao bar no canto, e encheu um copo de gim. Decidiu pôr a água a parte, visto que, enquanto ele falava, a enfermeira estivera dispondo uma série de instrumentos num lençol que estendera sobre a mesa. Havia várias agulhas, um bisturi pequeno e alguns tipos de grampos, tudo de aço inoxidável. Tinham um brilho lindo...

Depois do médico e a enfermeira terem partido, ficou de bruços na cama, durante mais de uma hora. Não vestira novamente a camisa e tinha as costas nuas, excetuando as ligaduras. Sentia um pouco de frio — uma coisa incomum —, mas não fez qualquer esforço para se cobrir. A dor fora muito intensa durante vários minutos e, embora já tivesse cessado, exaurira-o, bem como o medo. Sempre o assustara pensar de antemão na dor, mesmo quando criança.


Poderiam saber as dores que estavam provocando nele? Estariam torturando-o por qualquer processo mal-intencionado de lavagem cerebral, na esperança que fraquejasse mentalmente? O pensamento era particularmente assustador, porque, se fosse assim, tinham apenas começado. Mas era muito pouco provável. Apesar da desculpa da perpétua guerra-fria, e apesar da tirania muito genuína que se tolerava naqueles tempos ‘democráticos’, seria demasiado difícil continuarem. Era ano de eleições.

Os discursos de campanhas, protestando contra a arbitrariedade do partido atualmente no poder já tinham iniciado. A expressão ‘encobrir’ já fora usada muitas vezes.

A única razão lógica para o submeterem a testes penosos devia ser um tipo qualquer de curiosidade burocrática. Provavelmente, a justificação seria o desejo de provarem, de maneira conclusiva, que ele não era humano, provarem que, na verdade, era o que deviam ter suspeitado que era — suspeitado, mas sem o conseguirem admitir devido ao absurdo da ideia.

Se era assim que pensavam, estavam a cometer um erro óbvio desde o início. Porque, fossem quais fossem os atributos não humanos que descobrissem, seria sempre mais plausível que constituísse um desvio físico humano, uma mutação, um espécime aleijão, do que alguém de outro planeta.
Mas pareciam não se aperceber da dificuldade. O que poderiam esperar descobrir em pormenor, que já não soubessem na generalidade? E que provariam? E, para terminar, se fosse provado para além de qualquer dúvida, o que poderiam fazer?

Mas não preocupava com o que descobrissem sobre ele, nem sequer se preocupava com o que acontecesse aquele plano, concebido vinte anos atrás, em outra parte do sistema solar. Supunha, sem aprofundar muito a questão, que já estava tudo acabado, de qualquer forma, e sentia-se mais do que aliviado.

O que o aborrecia era o que iriam fazer com aquelas experiências e testes e perguntas infernais e queria que o deixassem em paz.

Estar preso não constituía problema — em muitos aspectos, era uma forma mais aproximada da sua vida nativa e mais satisfatória do que a liberdade.




VII

O FBI era bastante delicado e amável, mas, dois dias depois de perguntas sem sentido, Bryce sentia-se muito cansado, incapaz de se zangar perante o desprezo que sentia por trás da cortesia.
Se não o tivessem libertado no terceiro dia, achava que teria ficado muito mal.
Contudo, pareciam considerá-lo quase insignificante.

Na terceira manhã o homem apareceu, como de costume, na YMCA para levá-lo a quatro quarteirões de distância, onde se encontrava o prédio do FBI de Cincinnati. A YMCA tinha sido um fator para o seu cansaço. Se tivesse atribuído ao FBI imaginação suficiente, poderia considerar sua estada na YMCA como uma tentativa propositada de o deprimir com a jovialidade esfarrapada que enchia as salas públicas, juntamente com a sombria mobília de carvalho e os incontáveis panfletos sobre o cristianismo; que ninguém lia.

Daquela vez o homem levou-o a uma sala desconhecida, parecida com o consultório de um dentista, onde um técnico lhe espetou agulhas hipodérmicas, lhe mediu as batidas cardíacas e a pressão arterial e até lhe tirou radiografias do crânio. Aquelas coisas eram feitas, como explicou alguém, devido a um ‘procedimento de identificação rotineiro’.

Bryce não conseguiu entender o que teriam as suas batidas cardíacas a ver com a identificação; mas sabia que era melhor não fazer perguntas. Então, pararam sem mais nem menos, e o homem lhe disse que, ao que dizia respeito ao FBI, estava livre.

Bryce olhou para o relógio. Eram dez e meia da manhã.

Quando abandonou a sala e desceu o corredor em direção da entrada principal, teve outro choque ao se deparar com Betty Jo, bem à sua frente, que sorriu, mas nada disse.
Apesar da fadiga sentiu uma excitação que lhe vinha do estômago, uma espécie de deleite, ao ver aquela pessoa de cara franca e roliça, naquele corredor absurdo, carregado de severidade.
Fora do prédio sentou-se nos degraus, ao sol frio de Dezembro. Ela se sentou, pesada e envergonhadamente, a seu lado. Ao ar frio o seu perfume parecia quente, forte e doce.

Um jovem com uma pasta de executivo, subiu as escadas correndo, e fingiu não os ver ali sentados.
Bryce voltou-se para Betty Jo e ficou admirado ao reparar que tinha os olhos inchados, como se tivesse acabado de chorar.

— Onde eles a prenderam?

— Na YWCA. — Estremeceu.

Era lógico que a teriam  mantido lá, mas não pensara no assunto.

— Eu tenho estado na outra. Como a trataram? O FBI, quero dizer.
Era estúpido usar todas aquelas iniciais... YMCA, FBI.

— Acho que me trataram bem. — Sacudiu a cabeça e depois umedeceu os lábios. Bryce apreciou o gesto, ela tinha uns lábios cheios, sem batom, então vermelhos por causa do frio. — Fizeram um monte de perguntas sobre Tommy.

De certo modo, a referência a Newton incomodou-o. Naquele momento não queria falar do antheano.
Betty Jo pareceu pressentir o seu embaraço — ou partilhá-lo. Após uma pausa, perguntou:

— Quer ir almoçar?

— E uma boa ideia.

Levantou-se e pôs o sobretudo nas costas. Depois curvou-se, para ajuda-la a erguer-se, tomando-lhe ambas as mãos nas suas.

Por sorte encontraram um restaurante agradável, tranquilo, e comeram bem. Era comida natural, sem sintéticos, e havia até café de verdade, embora custasse trinta e cinco centavos a caneca.
Pouco se falaram durante o almoço e não tocaram no nome de Newton.





Ele perguntou-lhe quais eram os seus planos e descobriu que ela não tinha nenhuns.
Quando acabaram de comer, ele perguntou: — O que fazemos, agora?
Betty Jo já parecia melhor, mais sob controle e alegre.

— Por que não vamos ao Jardim Zoológico? 

— Por que não? -— Parecia boa ideia. — Podemos tomar um táxi.

Talvez por ainda serem férias de Natal, havia pouca gente no jardim. Os animais estavam todos recolhidos e ambos vaguearam de jaula para jaula. Ele gostava dos felinos grandes, insolentes, em especial das panteras, e ela apreciava os pássaros, os de plumagem brilhante. Bryce ficou contente que ela não gostasse dos macacos, ele os achava umas criaturinhas obscenas e teria ficado desanimado se ela, como tantas mulheres, os achasse divertidos. Nunca via nada de divertido nos macacos.

Também ficou satisfeito por descobrir que podia comprar cerveja à entrada do aquário. Levaram as cervejas para dentro, embora uma tabuleta o proibisse em absoluto, e sentaram-se à luz difusa, em frente de um grande tanque com uma enorme lampreia. A lampreia era uma criatura bonita, vigorosa, de aspecto plácido, com bigodes de mandarim e uma pele cinzenta, paquidérmica. Olhou-os lúgubre, enquanto bebiam as cervejas.

Depois de estarem sentados, em silêncio, durante um bocado, observando a lampreia, Betty Jo disse:

— O que acha que vão fazer ao Tommy?

Bryce percebeu que tinha estado à espera que ela trouxesse o assunto à tona.

— Não sei — respondeu. — Não creio que o magoem, ou coisa do gênero.
Betty Jo bebeu um golinho.

— Disseram que ele não era... não era um americano, Dr.Bryce.

Tencionava dizer-lhe para chama-lo de Nathan, mas não lhe pareceu correto fazê-lo, justamente naquela altura.

— Suponho que eles têm razão — respondeu, perguntando-se como eles poderiam deportá-lo, se tivessem descoberto.

— Acha que vão prendê-lo por muito tempo?

Bryce lembrou-se daquela radiografia do esqueleto de Newton e da meticulosidade do FBI ao submetê-lo a testes no consultório do dentista, e compreendeu para que houvessem feito os testes com ele.

Queriam ter a certeza de que não era, também, um antheano.

— Sim — replicou. — Acho que provavelmente, vão mantê-lo lá por muito tempo. O máximo que puderem.

Não recebeu resposta e olhou-a. Segurava o recipiente no colo, com ambas as mãos, e fitava-o como se contemplasse o interior de um poço. A luz uniforme, difusa, do tanque da lampreia não lhe sombreava a face, e a simplicidade das suas feições, sem maquilhagem, bem como a sua postura calma, no banco, faziam com que parecesse uma estátua bonita e consistente.

Olhou-a, silenciosamente, durante o que lhe pareceu um longo tempo. Então, Betty Jo levantou os olhos para ele e tornou-se óbvio porque havia chorado antes.

— Tem saudades dele, acho. — E acabou a cerveja.

A expressão dela não mudou. A voz era suave.

— Não há dúvida de que tenho. Vamos ver o resto dos peixes.

Andaram visitando os outros animais, mas nenhum deles pareceu tão belo como a velha lampreia.
Quando foram ao ponto de táxi para voltarem à cidade, ele compreendeu que não tinha uma indicação para morar, que não existia qualquer lugar para onde ir. Olhou para Betty Jo, de pé, a seu lado, à luz do Sol.

— Onde vai ficar? — perguntou.

— Não sei — respondeu. — Não tenho ninguém em Cincinatti.

— Podia voltar para a sua família em... onde mesmo?

— Em Irvine. Não é muito longe. Mas não quero ir. Nunca nos demos bem.
Bryce disse, sem pensar: — Quer ficar comigo? Talvez num hotel? E depois, se quiser, podíamos procurar um apartamento.

Ela pareceu, momentaneamente, surpresa e Bryce temeu que ela não gostasse da proposta. Mas deu um passo, aproximando-se dele, e disse:
— Meu Deus! Sim. Acho que devíamos ficar juntos, Dr. Bryce!