sábado, 14 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 17)


Sanders considerou o apelo de Garry e a Magnum apontada para sua cabeça.
Tinha que fazer alguma coisa.


De repente o operador de rádio virou-se e cuidadosamente apoiou a arma contra a parede. Ficou lá por mais um momento, e finalmente, caiu em prantos. Nauls patinou até ele e tentou reconfortá-lo.
Os outros observavam Garry baixando lentamente a pistola, colocando-a de volta no coldre. Ele respirou fundo e virou-se para enfrentá-los. Seu tom era intenso.
— Eu não sei sobre Cooper. Mas eu não cheguei perto do freezer. Como todos vocês sabem, eu não uso nada mais forte do que aspirina.
— Mas o médico disse que viu você na enfermaria várias vezes antes — Childs lembrou.
Garry virou um pouco beligerante e respondeu ao grande mecânico.
— Claro que eu estive lá. Estive também no galpão de manutenção, mesmo que não sendo um mecânico. Estive na sala de telecomunicações, apesar de não trabalhar com Sanders. Estive em cada corredor e quarto deste acampamento. Assim como a maioria de vocês. E daí? Isso não prova nada.
Ninguém se viu apto para contradizê-lo.
— Mas acho que vai ficar mais fácil se outra pessoa estiver no comando, por um tempo...



Tirou a arma do coldre e avaliou o círculo de rostos ansiosos em torno dele. Finalmente escolheu um.
— Não consigo ver ninguém contestando você, Norris.
— Desculpe, chefe. Respeitosamente vou declinar —  sorriu com tristeza e bateu no peito. — Não acho que eu seria ele. E não estou me sentindo muito bem ultimamente. Vocês sabem sobre a minha condição cardíaca. Acho que você deve nomear alguém capaz de lidar com serenidade sob tensão, se for preciso.
Childs estendeu a mão para a arma. — Deixe comigo...
Macready alcançou a arma antes dele.
— Sem ofensa Childs, mas Norris está correto quanto a serenidade. Talvez devesse ser alguém um pouco mais controlado.
Childs olhou feio para ele, mas não discutiu.
Macready olhou seus companheiros. — Alguma objeção?
Fuchs baixou os olhos. Macready cutucou-o.
— Se você tem algo a dizer, diga. Este não é o momento para poupar os sentimentos de ninguém.
Fuchs falou hesitante.
— Primeiro Childs pegou a arma, então você, Mac. Ambos estiveram longe do acampamento. E você teve contato com esta coisa. Bennings não voltou... Como sabemos que a coisa não chegou até você?
— Não saberão. Ninguém sabe muita coisa agora. Nem vai, até que possamos encontrar uma maneira de testar esta coisa... de alguma forma. Bem, vou insistir, no entanto. Alguém tem alguma sugestão melhor? Sou todo ouvidos.
Olhos incertos percorreram o grupo, cada um deles suspeito de seu vizinho. Todos sob escrutínio.
— Eu acho você tão seguro quanto qualquer um — Fuchs finalmente admitiu e arriscou um sorriso conciliador. — Sinto muito, Mac. Eu tinha que dizer isso.
— Sem ressentimentos. Sei bem como você se sente.
— Ok, e agora? — Norris perguntou.
Macready disse depois de pensar por um segundo.
— Vamos ficar todos juntos. Vamos voltar à sala de recreação e tentar conversar. Todos. E vamos tentar manter nossas emoções sob controle.
Medo desenfreado dos próprios amigos e vizinhos, não contribuía para uma atmosfera alegre.
Se reuniram em torno da mesa do centro. Mas pelo menos ninguém estava apontando uma espingarda ou Magnum para alguém.
— Pelo que sabemos — Macready foi falando — essa coisa gosta de pegar um por vez. Lembre-se o que Blair disse sobre isso. Ele gosta de ficar em paz para que possa trabalhar em particular.
Lembre-se o que aconteceu com Bennings — Childs lembrou ao piloto. — Ele estava mudando enquanto observávamos, e levou minutos, não uma hora.
— Sim, mas era um trabalho apressado, e a coisa nunca se libertaria dele — rebateu Macready. — Ele pode fazer uma bagunça em poucos minutos, mas para fazê-lo direito é mais demorado.
Childs concordou balançando a cabeça lentamente.
— Então, vamos ficar juntos — continuou Macready — tanto quanto possível até que tenhamos a certeza de que é seguro. Ninguém vai a qualquer lugar para fazer qualquer coisa, incluindo a manutenção diária da estação, a menos que esteja acompanhado por alguém. Fazemos tudo em pares e trios, sempre que possível. Se tivermos que nos dividir, deve ser apenas por um curto período de tempo e devem pelo menos, ficar dentro da vista e alcance da voz do outro.
Childs apontou para um canto onde Garry, Clark, e o médico tinham se isolado.
— Eu concordo com isso, Mac. Mas o que vamos fazer com aqueles três?
— Temos morfina, não? — Macready olhou para Fuchs.
— Mais uma vez, isso não é o meu departamento, mas eu acho que sim.
— Tudo bem. Nós mantê-los dopados. Amarre-os aqui na sala de recreação com as luzes acesas durante todo o dia, e não tire os olhos deles.
Palmer foi subitamente quem deu o alerta.
— Morfina?
Seus dentes superiores tocaram sobre o lábio inferior. — Vocês sabem, eu estive muito próximo ao cão também.
Macready e o resto o ignoraram.
— Deveríamos dormir em turnos — Norris sugeriu.
— Boa ideia — concordou o piloto — metade de nós acordado o tempo todo. Não deve ser muito difícil. É noite 24 horas por dia, de qualquer maneira.
Graças à conversa tranquilizadora de Nauls, Sanders tinha se acalmado consideravelmente.
— Como vamos tentar descobrir quem é... você sabe. Quem é quem?
— Essa é a grande questão — Macready olhou para Fuchs. — Você é o nosso elo restante com a biologia. Você pode pensar em qualquer outro teste que poderíamos tentar? Talvez algo que não teria pensado em primeiro lugar, como ele fez com o negócio do soro?
Fuchs refletiu. — Posso fazer uma tentativa. Eu poderia usar a ajuda de Cooper, no entanto.
— Só você cara — disse Childs bruscamente. — Pelo menos até descobrirmos o que houve com o freezer.
— Além disso, — Macready arrematou — quando isso se transforma, é lentamente no início. Demora um tempo para o metâmero... mertamo...
— Metamorfose — completou Fuchs.
— Obrigado. Sim, quando ele passa por esse processo, leva algum tempo para terminar.
Olhou para Childs — Lembre-se de quando ele estava tentando tornar-se si mesmo e Bennings, ao mesmo tempo?
Childs encontrou a lembrança da luta no cânon.
— Sim, eu me lembro. Ele estava torcendo e pulando por todo o lugar.
— Tentando voltar a sua própria forma — disse Macready. — Tenho um pressentimento de que o que Childs e eu vimos era a coisa, na sua forma natural, muitíssimo maior do que qualquer cão ou homem. Mas é preciso tempo para mudar. Enquanto ele ainda está no processo, acho que nós podemos lidar com isso. Childs e eu conseguimos.



— Bennings não — murmurou Norris.
— Aquilo nos surpreendeu! — Macready bateu na mesa. — Este é o nosso acampamento. Não vai ser tão fácil de surpreender-nos aqui. Mas se ele nunca chegou a plena maturidade e força total...  com base no que eu vi do posto avançado norueguês...o metal rasgado, vigas arrebentados pela metade... não sei. Se ele precisa de uma hora para possuir algo maior, ele provavelmente precisa alcançar a maturidade. Portanto, não importa o que alguém estiver fazendo, precisamos conferir uns aos outros a cada vinte minutos. Mais tempo do que isso, podem matá-lo.
— Uma decisão meio extrema, não é? — Manifestou-se Norris.
Macready olhou para ele com raiva.
— Não há nenhuma razão para qualquer um esquecer esse prazo.
Mesmo Sanders concordou com a cabeça, depois de ter se recuperado.
— É melhor ninguém ficar na privada muito tempo — conseguiu ironizar. — Seria um péssimo lugar para morrer.
Houve algumas risadas fracas.
— Ok, então — Macready se virou para sair. — Ainda temos coisas para fazer. Este posto não vai funcionar sozinho. Nenhuma razão pela qual não devemos cuidar dele, até Fuchs descobrir outro teste.

Palmer trabalhava sofregamente no motor do helicóptero. Ocasionalmente dava uma espiada nervosa por cima do ombro, para a movimentação distante. Sanders e Macready eram formas sombrias que se deslocam no local de despejo de lixo.
Voltou-se para o motor e, em seguida, para a pilha de peças próxima.
— Bem,... onde está o magneto? Não consigo encontrar nada aqui.
Cooper, Clark e Garry sentados lado a lado no sofá grande da sala de recreação. Norris na mesa de carteado, desajeitadamente tentava preparar três injeções. Ele era novo no negócio, não tinha feito primeiros socorros desde o Exército, e isso fora há muito tempo atrás.
Fuchs não poderia ajudar-lhe. O assistente biólogo estava no laboratório, tentando pensar em um novo teste. Era prioridade. Não que ele teria sido de muita utilidade. Ele era bom com hipoglicemias em culturas e lâminas, e não furando veias. Norris teria de se virar por si mesmo.
Cooper ajeitou as costas nas almofadas e sorriu agradavelmente. — Eu faço isso, se quiser — disse ao geofísico — você pode quebrar a agulha no meu braço, ou perder a veia.
Childs gesticulou em direção a ele com a tocha. — Não se importe, doutor. Vai dar tudo certo. Ele está fazendo um bom trabalho — sorriu, encorajando Norris.
— Eu não tenho certeza... — o homem mais velho começou a dizer, hesitante.
— Basta fazer o seu melhor, cara — o mecânico aconselhou. — Você vai conseguir —  e esboçou um sorriso para os três no sofá.
Cooper olhou para ele.
O vento assobiava em torno de Macready, aquecido em seu casaco parka. A única luz vinha das lanternas dele e de Sanders. O fraco brilho das lâmpadas exteriores do complexo mal alcançava o depósito de lixo. Podiam ouvir Palmer martelando alguma coisa energicamente.
Virou um amontoado de papelão úmido e o chutou. — Procure por sapatos também — disse a seu companheiro. — Qualquer roupa que não esteja gasta.



 Tendo finalmente conseguiu aplicar as injeções, com um mínimo de desconforto para os três, Norris tinha se mudado para a sala de telecomunicações. Ele sabia mais sobre eletrônicos do que de medicina e estava contente com a oportunidade de trabalhar em algo que não iria reclamar se ele cometesse um erro.
Desligou o fone de ouvido inútil e esfregou seu peito. Ocasionalmente Childs gritava para ele, que tinha que responder.
Pegou a pequena garrafa de plástico do bolso da camisa e colocou um par de pequenas pílulas brancas na língua. A dor no peito fora embora. Voltou a trabalhar no rádio.
Nauls estava patinando pelo labirinto de corredores, verificando as lixeiras individuais, bem como prateleiras, armários, e em qualquer outro lugar onde se poderiam esconder coisas. Regularmente verificava Childs ou Fuchs.
Macready passou por ele, vindo de fora. O cozinheiro lhe deu um olhar aborrecido.
— Essa coisa é inteligente demais para jogar fora as roupas onde poderíamos encontrá-las, Macready.
— Apenas continue procurando.
— Sim, por que não? É divertido.
— Quer trocar de lugar? Eu procuro aqui e você pode ir lá fora, com o lixo congelado.
— Obrigado, mas eu tenho que manter um olho na janta — e patinou em direção à cozinha.
Fuchs estava sentado à mesa de laboratório, derramado sobre um livro aberto. Vários outros volumes estavam nas proximidades, abertos como mariscos cozidos. A luz suave da luminária iluminava as páginas abertas, mas não seus pensamentos, repletos de confusão e preocupação.
Macready enfiou a cabeça no laboratório.
— Alguma coisa, Fuchs?
— Nada ainda. Mas uma coisa me ocorreu. Se os cães mudaram foi porque algo que engoliram assumiu o controle deles de dentro para fora, é melhor fazer com que todos preparem sua própria comida. Não se trata de não confiar em Nauls, mas qualquer um poderia chegar a uma panela de cozido.
— Boa ideia, Fuchs. Vamos fazer assim.
— Certo — o piloto desapareceu e Fuchs voltou ao seu trabalho.

A sirene gritou acima do vento, do lado de fora do complexo, sinalizando o término de um período de trabalho de vinte minutos. Sanders começou a se afastar do depósito de lixo. Pelo menos, não fedia. Era frio demais pra isso.
Palmer se juntou a ele e se dirigiram para a entrada juntos. Ele estava carregando uma parte do motor.
Sanders olhou para a maquinaria com curiosidade. — O que é isso, cara? Você vai trabalhar nele lá dentro?
— Não. Exatamente o contrário — Palmer disse. Resmungou, tentando ajeitar o peso em seus braços. — É uma ideia de Macready. Assim ninguém vai precisar sair para passeios não autorizados.
— Oh — o operador de rádio assentiu sabiamente.
Macready estava esperando por eles. Segurou a porta aberta enquanto os dois homens cambaleavam para o corredor flanqueando as principais salas de abastecimento. Childs estava trabalhando ao chão numa alteração para a tocha.
Palmer cambaleou até o mecânico e descarregou a seção do motor.
— Caramba! Isso pesa uma tonelada! Ei, Childs? Cadê o magneto do helicóptero um?
Childs olhou para cima. — Não está por aí?
Uma mão tocou seu ombro. — Mexam-se, ou vamos nos atrasar — Macready lembrou.
Norris chegou e jogou peças de rádio ao lado da seção de motor. Macready trancou a porta.
— Ouvi você e Childs falando — disse Macready para Palmer. — Alguma coisa está faltando?
— Ahhh... deixa pra lá. Não é nada importante — empurrou para trás o capuz de seu casaco. — Estou morrendo de fome. O que tem para o jantar?
— Tudo o que puder absorver.
Palmer fez uma careta para ele. — Não gosto de como isso soa.
— Você provavelmente não pensa muito no gosto, também. É a nossa nova política de jantar. Sirva-se e salva-se.
— Salvar o quê?
— Você mesmo. Comeremos conservas até Fuchs descobrir um teste infalível para detectarmos aquela coisa. A menos que você queira acabar como os cães.
— Ah, sim, entendi — respondeu Palmer, mas a perspectiva de viver de alimentos enlatados ao invés das refeições saborosas ​​de Nauls por um período indeterminado de tempo, era apenas mais um acréscimo à miséria geral do posto avançado.
— Sinto muito pessoal — Nauls patinou até o fogão lotado de latas de várias cores e tamanhos aquecendo. — Ordens de Macready.
— Está tudo bem, Nauls — Fuchs assegurou. — É para o bem de todos.
— Sim, eu sei disso, mas odeio ver todo mundo chafurdando nestes enlatados em vez da minha comida.
Childs fez uma expressão de apreciação após mastigar uma colherada de sua própria refeição e, em seguida, disse pensativo:
— Na verdade, eu não notei muita diferença.
 O cozinheiro saltou para ele, rindo com bom humor.

Nauls ainda tinha trabalho a fazer. Preparou a bandeja com a refeição de Blair, com um cuidado maior que o habitual, já que era tudo o que tinha para fazer agora, além de assegurar que ninguém se queimasse no fogão ou se cortasse com um abridor de latas. Além do que, se sentia um pouco culpado por Blair. A maioria estava começando a se sentir assim. O biólogo poderia ficar louco, pois mesmo que sua cabeça estivesse no lugar errado, seu coração não.
Preparou nacos de carne com batatas e ervilhas inglesas e pão com manteiga. Os outros que brincavam com suas latas, observaram com inveja quando Nauls tampou a bandeja e fechou-a em um recipiente de polietileno isolante. Vestiu seu equipamento para exterior e patinou em direção à saída mais próxima, somente parando lá para tirar as rodas, em seguida abriu a porta e colocou a cabeça para fora, na direção do vento.
Era sua segunda temporada na Antártida, mas mesmo os homens que tinham passado três vezes este tempo, lhe garantiam que nunca se acostumaram com o inverno polar. Uma coisa era ir para a cama enquanto ainda lá fora era um dia brilhante e ensolarado de verão. Isso era fácil de lidar. Mas ele não gostava de acordar para a escuridão total. Fazia você pensar que o mundo tinha morrido.
Ao se aproximar da cabana, pensou ouvir um som diferente ao vento, um bater distante.
— Acalme-se, homem — murmurou para o galpão. A necessidade de ir ao galpão, tinha matado toda compaixão que sentira para com Blair. Estava muito frio.
— Blair, trouxe seu presente! O velho Nauls não te esqueceu. Cara, você não sabe a sorte que tem, todo mundo está comendo das latas, e você tem seu próprio chef!
Ele parou do lado de fora da porta. O bater que vinha de dentro era muito alto. Fez uma pausa, hesitante, em seguida espiou pela pequena janela na porta.
Blair estava fazendo o barulho, tudo bem, mas com um martelo em vez de seus punhos. O martelo era um modelo pequeno, para tarefas leves. Não era forte o suficiente para romper as placas espessas que haviam sido instaladas sobre as janelas.
Mas Blair não estava tentando sair. Ele estava pregando novas placas sobre a porta pelo lado de dentro, e apesar de sua experiência médica ser limitada, Nauls podia dizer pela expressão no rosto do biólogo que ele estava longe de estar curado.
— Ei — ele gritou — o que você está fazendo, cara?
— Ninguém entra! — Blair gritou histericamente. — Ninguém. Pode dizer-lhes isso!
Nauls balançou a cabeça tristemente e levantou a portinhola articulada que havia sido cortada na base da porta. Empurrou o recipiente pela abertura.
— Bem, quem diabos você acha que gostaria de entrar aí com você? Eu não, cara.
O recipiente foi atirado de volta para fora. Deslizou através do caminho aberto na neve e gelo e tombou. A bandeja de comida veio voando depois, manchando a roupa de Nauls.
— Olha o que você fez!
— Não quero mais comida com sedativos! — Blair gritou. — Sei o que você está fazendo. Não pense que eu não sei. Você é tudo menos inteligente. E se alguém tentar entrar aqui... Eu tenho uma corda. Vou me enforcar!
— É mesmo? Promete?

Nauls virou-se e pegou a bandeja.
Começou a voltar para o complexo, resmungando baixinho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Diga...