sábado, 14 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 15)


O sol não chegava a subir ao céu nesta época do ano nas regiões polares ao sul.
Somente espiava hesitante sobre o gelo e por algumas horas rastejava ao longo do horizonte, até que, aparentemente exausto pelo esforço, desaparecia abruptamente na noite persistente.

As motos de neve roncavam suavemente ao crepúsculo, seus motores vibrando, desacostumados com a potência extra, graças aos carburadores maiores adicionados por Palmer. Bennings pilotava aquela que puxava o trenó, enquanto Macready e Childs dividiam o outro.
De vez em quando paravam para verificar o rastro. A neve assobiava em torno deles, mas os flocos eram pequenos e permaneciam no ar com mais frequência do que se instalavam no chão.
Os cães estiveram correndo muito rápido. Suas pegadas eram espaçadas. Até agora, os rastros tinham permanecido visíveis. Podia não durar para sempre, eles sabiam. Logo o vento e a neve iriam preenchê-los.
Macready usava dos binóculos, os três homens pilotavam em turnos. Agora algo escuro e irregular mostrava-se contra o gelo à frente e um pouco à direita.
Mac bateu nas costas de Childs.
— Tem alguma coisa ali! — Gritou Mac por cima do barulho do motor. — Ali — apontou várias vezes para indicar a direção.
Childs assentiu e inclinou o veículo ligeiramente para a direita. À sua esquerda, Bennings desviara para coincidir com o novo curso.
Em breve poderia vê-los sem binóculos. As duas motos de neve diminuiu à medida que se aproximavam.
Estavam cercados pelas trilhas. As pegadas se repetiam, sinais de breve luta, mas intensa o bastante para marcar a neve.
O ponto escuro eram os restos de um husky devorado. Suas pernas traseiras e parte inferior do corpo tinham sido poupadas.
A metade superior do corpo, a partir do esterno para cima, estava faltando.
Macready deu uma volta lenta, buscando em primeiro lugar com os olhos e, em seguida, através dos binóculos. Não havia nenhum sinal da parte que falta do cão ou de seus dois companheiros.
— O que é isso? — Childs murmurou, olhando com desgosto para o husky mutilado.
Macready colocou os binóculos de volta no seu estojo e desmontou, seguindo a linha de pegadas ainda visíveis. A linha era mais estreita agora.
— Talvez o jantar — murmurou.
O horizonte escuro não mostrava nada além da luz fraca e de um céu sombrio.
— Cães não comem uns aos outros.
Bennings chutou o corpo congelado. — Não sou nenhum expert como Clark, mas eu sei que não. Um cão preferiria morrer de fome a comer sua própria espécie.
— Eu sei — disse Macready suavemente.
Childs havia se afastado do corpo e estava retornando em um semicírculo lento. — Onde está a outra metade?
— Não está por aqui — disse-lhe Macready. — Verifiquei com os binóculos. Provavelmente levaram com eles.
— Para a próxima refeição? — Childs cuspiu na neve.
— Eu acho que sim. Veja, é o que Garry não estava entendendo. Um cão não poderia fazer milhares de quilômetros. Um cão vivendo no exterior...  — deixou o óbvio por dizer. — Muito conveniente, ter um abastecimento alimentar estável que viaja com você com suas próprias pernas.
Ele foi até o trenó, virou a tampa e tirou uma lata de dois litros de gasolina
Tirou a tampa, em seguida, olhou para Bennings.
— Eles ainda estão em linha reta. Para onde estarão indo?
— Para nenhum outro lugar. Em direção ao oceano.
O piloto silenciosamente derramou o conteúdo da lata sobre os restos. Os homens se afastaram. Macready puxou um pedaço de papel amassado do bolso da parca, e o acendeu com o isqueiro, jogando-o em direção aos restos mortais. O osso e pele instantaneamente pegaram fogo com uma chama ao vento constante.
— Vamos.

O entusiasmo inicial foi se dissipando. Já tinham percorrido um longo caminho desde o calor e o conforto do posto avançado. Agora os restos roídos do cão havia novamente lembrando-lhes o quão mortal era o adversário que estavam perseguindo.
— Talvez devêssemos pensar nisso de novo, Mac — Childs murmurou acenando com a cabeça em direção ao horizonte —  eles podem estar horas à frente de nós.
Bennings examinou o sol fraco.
— Vai ficar escuro em breve, também. Vamos ter cinquenta abaixo esta noite.
Macready que subia na moto rebocando o trenó, ignorou a ambos.
— Voltem se quiserem. Eu vou atrás deles.
Seus companheiros trocaram um olhar incerto.
— Ele é louco por querer continuar com isso — Childs murmurou tristemente.
Bennings subiu no assento atrás do mecânico.
— Talvez não. Talvez sejamos os únicos loucos, em pensar em voltar.
— Ah, cala a boca — Childs ligou o motor.
Apenas um leve brilho veio de um sol cor de sorvete quando as motos de neve continuaram a seguir as trilhas. Inesperadamente, a trilha mudou de direção. Macready desacelerou até parar. Childs e Bennings pararam ao lado dele, seus motores em marcha lenta.
— O que há de errado, Mac? — Perguntou o mecânico.
O piloto quebrou a neve de sua barba. As trilhas seguiam agora em direção a uma crista de colinas baixas e topos nevados.
Estava muito frio agora.
— Eles mudaram de direção.
Childs subiu no assento e olhou na direção indicada. — Você acha que podemos chegar lá?
— Enquanto não ficar muito íngreme. Você ainda está comigo?
Childs olhou para Bennings. O meteorologista assentiu.
— Que inferno, é tarde demais para voltar atrás. Poderíamos muito bem continuar até paramos para dormir. Podemos discutir sobre o que fazer amanhã de manhã.
— É justo.

Macready retomou seu lugar e desviou sua máquina em direção às rochas.
O terreno era mais robusto do que o piloto tinha suposto. Altos penhascos de gelo sólido de um
cânon. Uma grande pressão tinha trabalhado ali em tempos antigos, bem como as forças sísmicas. Sentiam-se como uma formiga rastejando-se por um espelho quebrado.
Usavam os faróis da moto desde que entraram no cânon. O sol quase não fornecia luz suficiente para ver seus próprios pés. Mas pelo menos as trilhas se destacavam nitidamente.
As falésias protegiam-os da neve soprada.

Bennings estava desconfortável. Fora das planícies de gelo, algo poderia te pegar de surpresa a qualquer momento. Ele não estava com disposição para surpresas. Não aqui.
O que estou fazendo aqui pensou. Deveria estar no acampamento, fazendo leituras do anemômetro, observando o barômetro, traçando os altos e baixos em gradientes de temperatura. Em vez disso estou congelando até a morte enquanto caçamos um casal de cães que, talvez, não sejam cães, porque seu DNA foi alterado pela invasão de alguma coisa de uma centena de milênios de idade que ficou enterrada no gelo e desenterrada por um bando de desavisados noruegueses que...

As motos de neve foram diminuindo a velocidade. Ele tentou ver em torno de Childs.
Sob a luz dos faróis, havia um único rusky. Bennings não sabia se sentia-se assustado ou gratificado.
O cão não poderia ter se importado menos. Sentado no meio do pequeno cânon, de costas para os homens que se aproximam, despreocupadamente mastigava a metade superior da carcaça do cão que tinham encontrado na planície.
A falta de medo ou qualquer outra reação reconhecível fez Macready duplamente cauteloso.
Ele diminuiu o seu próprio veículo e levantou uma mão.
Childs e Bennings tomaram o lado dele.
Apontou. Pouco mais de vinte metros de distância e ainda nenhum sinal de que ele estava ciente de sua presença.
— O que você acha?
— É o nosso cão, não há dúvida sobre isso. Está terminando de comer o seu companheiro, assim como você disse que faria.
Macready procurou cuidadosamente a borda do cânion, primeiro o lado direito e depois o esquerdo. Nada podia ser visto entre os penhascos. Nada se movia.
— Por que diabo está sentado ali?
— Quem se importa — Bennings estava com muito frio para pensamentos complexos. — Vamos incinerá-lo e seguir em frente.
— Eu não tenho certeza... — Macready começou a dizer.
Bennings interrompeu-o.
— Não vá bancar o inteligente pra cima de mim agora, Mac. Ou vamos terminar este agora, ou eu vou para casa!

Childs já estava ligando a tocha ao tanque. Macready encolheu os ombros, armando-se com uma bomba térmite. Childs estava pronto quando começar a subir as laterais do cânon. Bennings montava guarda nas motos de neve, no caso de o cão tentar correr para lá no último minuto. Conforme Childs e Macready se aproximavam, o cão continuou a ignorá-los, aparentemente concentrado em mastigar seu alimento. Os olhos do mecânico percorreram a paisagem, tentando ver na escuridão além do animal, na área fora do alcance dos faróis.
— Onde está o outro, Mac? Onde diabo está o outro?
Macready gritou de volta para as motos.
— Só tem um aqui, Bennings! Fique de olhos abertos!
O meteorologista gritou confirmando ter entendido, pegou uma lanterna e começou a jogar o feixe sobre as rochas à sua direita.
Macready falou com o cão. Sua voz era tensa.
— Onde está seu amigo, rapaz? Huh? Você pode nos dizer. O melhor amigo do homem lembra? Onde está seu amigo?
Não só o animal não reagiu como continuou a ignorar a sua abordagem.
Macready tirou sua própria lanterna, jogando o facho sobre fendas e possíveis esconderijos nos lados do penhasco. Nada ainda.
— Foda-se! Childs, queima esta coisa! Não deixe nem cinzas. Vamos encontrar o outro mais tarde.
Childs ativou o bico. A ponta da tocha ganhou vida.
A atenção de Bennings estava no penhasco quando algo agarrou seus tornozelos. Olhou para baixo e mal teve tempo de gritar quando seu corpo foi arrancado para baixo da superfície. A lanterna saiu voando. Em segundos apenas a cabeça e os ombros estavam acima do gelo.
Childs e Macready giraram com o grito e correram para acudirem seu companheiro. Apenas sua cabeça era visível agora.
Macready tropeçou, a neve magoou seu rosto quando ele caiu.
Algo fez um barulho atrás dele, e não era o vento. Nunca tinha ouvido nada parecido com esse barulho. Uma crepitação, um estalo de algo que não era de madeira ou de plástico, e sim orgânico. Pensou pele de porco frita sendo quebrada na mão de uma criança.
Rolou. O cão ainda estava de costas para ele, mas não estava mais comendo. Os pelos estavam eriçados como espinhos de um porco-espinho. Enquanto olhava veio o rosnado, um som gutural que um cachorro jamais faria. Ele virou-se para encará-lo. Sua pele estava se dividindo, a boca rasgando como e algo dentro dela lutasse para emergir, como uma borboleta estourando seu casulo.
Só que não havia nada menos atraente que a metamorfose que o husky estava passando.
— Childs!
O mecânico parou, os dedos apertados na tocha, sem saber quem ajudar primeiro. Bennings ainda estava à vista. Além de sua cabeça, ele tinha conseguido colocar um braço para fora e estava arranhando freneticamente a superfície lisa do gelo. Cada vez que seus ombros começavam a surgir algo invisível sob a neve o puxava para baixo.
Childs deu um passo para trás em direção Macready, sua atenção dividida entre seus dois companheiros. O cão continua a se alterar.
Tinha crescido e tornado-se mais escuro. De repente, pulou, embora nenhum cão pudesse saltar seis metros.

Childs reagiu instintivamente quando a coisa atacou Macready caído. Abriu o fluxo da tocha. Um rio de fogo atingiu o cão... a coisa, no meio do salto. A violência da explosão derrubou-o, a cabeça saiu para trás, uma bola de fogo de pele.
O animal estava uivando de dor, fazendo um som que nenhum animal já fez, um guincho estridente que lembrou Macready de unhas arranhando um quadro negro.
Mac ficou de joelhos e ativou o acionador da térmite. Mirando tão cuidadosamente quanto podia em meio à confusão e a pouca luz, atirou o bastão e correu em direção às motos. O cão flamejante...a coisa, explodiu. O fogo foi subitamente envolvido por uma explosão de chamas brancas.
Childs virou-se e encaminhou-se para Bennings.
O gelo sob o meteorologista arfava violentamente.
Macready ficou de pé e alcançou o homem, agarrou-o pelo casaco e tentou puxá-lo de volta.
— Afaste-se! Ele vai levá-lo também.
— Merda! Que merda cara! — Childs meio gemia, meio chorava. Repetiu os xingamentos  mais e mais vezes.
De repente a cabeça de Bennings finalmente desapareceu sob a superfície, seu corpo estremeceu. O gelo ondulava como água fervente, vindo na direção aos dois homens e, em seguida, se afastando deles.
Parte do corpo do infeliz meteorologista veio à superfície e com a mesma rapidez foi sugado novamente.
Macready e Childs observaram esperando que reaparecesse, incapazes de ajudar o companheiro.
— O que vamos fazer? — O frustrado Childs chorava.
— Como diabos eu vou saber.

De repente, a cabeça e os ombros de Bennings explodiram através do gelo perto das motos. Alguma coisa tinha apertado-o ao limite, embora no brilho distante dos faróis não pudessem ver o que. Para Childs parecia com as mandíbulas de um cão, só que nenhum cão que já viveu tinha uma boca daquela largura.
A pesada roupa exterior ​​de Bennings começou a rachar, se expandindo até aos seus limites, como a carne, estourava seus limites naturais. As mandíbulas contorciam-se, transformando o corpo. Uma cobra sempre comprime sua presa, a fim de engolir inteira, a cabeça em primeiro lugar, Macready pensou descontroladamente. O rosto de Bennings desapareceu em meio ao fluído da boca.
Mac correu para o reboque, gritando por cima do ombro enquanto corria.
— Queime-os!
— Mas o Bennings... — Childs protestou.
Macready não teria reconhecido sua própria voz.
— Você não viu que ele já era? Queime-o... enquanto ainda temos chance!
Bennings...porra, Bennings! Bennings está morto, cara. Essa coisa ainda está viva. Ativou a tocha.
A poderosa corrente de fogo atingiu a massa indistinguível dos quais Bennings era agora uma parte, que explodiu em chamas, derretendo o gelo em torno dela.

Um grito lamentoso encheu o ar da noite.

Macready estava trabalhando como um louco no trenó, removendo freneticamente lata após lata de gasolina.
Algo duro como aço emergiu para fora do gelo. Tinha projeções agudas e coisas do tipo, cabelos endurecidos longos. Ele só queria Macready e atravessou o corpo de fibra de vidro do reboque.
Macready se jogou para o lado. Um membro escuro varou a fibra de vidro estilhaçada e agitava-se ao redor em busca de algo para agarrar.
O piloto destampou de uma vez só um par de latas e despejou seu conteúdo sobre aquilo. Em seguida se afastou e começou a derramar o resto para a massa maior que Childs estava queimando.
As chamas subiram como pequenas bombas, tornando ainda mais convulsiva à abominação, em espasmos sobre a neve.
Longe, atrás deles, a coisa-cão continuava a queimar. Gritos e gemidos continuavam, e um choramingar de recém-nascido ecoou terrivelmente das paredes do pequeno cânon, ensurdecendo os dois homens frenéticos.
Macready jogou a última lata na coisa e agarrou o braço de Childs. — Já é o suficiente, cara.
O mecânico não parecia ouvi-lo, de olhos vidrados nas chamas. Childs continuou a despejar o fluxo de fogo sobre a massa já fervendo. Parte do esqueleto queimado de Bennings podia ser visto. Se a outra coisa possuía um esqueleto, Macready não poderia dizê-lo. O inferno no cânion era demasiado brilhante para olhar.
Macready finalmente teve que intervir e agarrar a tocha com as duas mãos.
— Childs, pare! Chega!.
O grandalhão olhou lentamente para ele e piscou.
— Sim, OK, Mac.

Desligou a tocha. Ficaram ali juntos, com os rostos atordoados na luz das chamas que inundava tudo. Quando logo o fogo começou a diminuir, os gritos já haviam quase cessado. Soavam fraco, não ameaçadores e se foi por completo em poucos minutos. Os dois incêndios continuam a arder.
Macready e Childs esperaram até as últimas brasas darem vez a escuridão. Em seguida, o piloto esvaziou mais alguns litros de gasolina e as manchas escuras do chão do cânion e acenderam-se. Quando terminaram, não havia mais nada para queimar, exceto gelo e rocha.
A moto com o trenó estava arruinada. A coisa que tinha chegado tão perto de empalar Macready tinha quebrado não apenas o trenó, mas também um dos esquis de apoio. Macready destravou-o e eles transferiram os demais suprimentos para a caixa de armazenamento montado sobre banco traseiro.
Depois disso, partiram acelerando, deixando o cânon, de volta para a planície glacial e a noite congelada.

Teria sido mais sensato esperar até de manhã, mas nenhum deles tinha qualquer intenção de passar mais tempo naquele lugar, agora assombrado apenas pelos fantasmas de duas terríveis gárgulas que fariam envergonharem-se aquelas, da distante Notre Dame.
Macready e Childs preferiam correr o risco de morrer de frio na planície de gelada.

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