segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Don't Look Now - Daphne du Maurier (Parte 5)




Atravessou a Piazza San Marco agora repleta de turistas nos cafés, três orquestras indo a todo vapor em rivalidade harmoniosa, enquanto o policial manteve um discreto dois passos para a esquerda e nunca disse uma palavra.

Chegaram à delegacia e subiram a escada para a mesma sala onde ele tinha estado antes. Viu imediatamente que não era o oficial que conhecera antes, mas um outro que estava sentado atrás da mesa, um indivíduo de rosto pálido com uma expressão azeda, enquanto as duas irmãs estavam sentadas em cadeiras, com alguns subalternos por trás delas. A escolta de John imediatamente dirigiu-se ao oficial falando em italiano, enquanto o próprio John, depois de um momento de hesitação, avançou para as irmãs.

— Houve um erro terrível. Eu não sei como me desculpar com vocês. É tudo culpa minha, inteiramente.



A irmã mais ativa, nervosa, não se conteve.

— Nós não entendemos — disse com forte sotaque escocês. — Nós demos boa noite para sua esposa ontem à noite no jantar, e não a vimos desde então. A polícia veio a nossa pensão e nos disse que sua esposa estava desaparecida e que o senhor tinha apresentado uma queixa contra nós. Minha irmã é frágil e ficou consideravelmente perturbada.

— Um erro! Um erro terrível!

Ele se virou para o policial que estava se dirigindo a ele. Seu inglês era muito inferior ao do oficial anterior. Tinha a declaração de John sobre a mesa a frente dele, e bateu-a com um lápis.

— A declaração é uma mentira? Você não fala verdade?

— Eu acreditava que fosse verdade naquele momento. Eu poderia ter jurado em um tribunal que vi minha esposa com estas duas senhoras em um vaporetto no Grande Canal, esta tarde. Agora percebo que eu estava enganado.

— Nós não estivemos perto do Grande Canal durante todo o dia — protestou a irmã. — Nem mesmo a pé. Fizemos algumas compras no Merceria esta manhã e ficamos dentro de casa durante toda a tarde. Minha irmã estava um pouco indisposta. Eu disse ao polícial uma dúzia de vezes, e as pessoas na pensão corroboraram a nossa história. Ele se recusou a ouvir.

— E a signora? O que aconteceu com a signora? — Perguntou o policial furioso.

— A signora, minha esposa está segura na Inglaterra — explicou pacientemente. — Eu falei com ela
ao telefone logo após as sete. Está hospedada com amigos.

— Então, quem você viu no vaporetto de casaco vermelho?

— Meus olhos me enganaram. Achei ter visto minha esposa e essas senhoras, mas não, não foi assim. Minha esposa estava no avião e estas senhoras na pensão.
Era como falar chinês.

O policial ergueu os olhos aos céus e bateu na mesa. — Então, todo esse trabalho por nada! Hotéis e pensões procurando uma inglese signora perdida, enquanto nós temos muitas outras coisas a fazer.

Você errou! Você talvez teve demasiado vino no mezzo giorno e viu centenas de signore em casacos vermelhos em cem vaporettos! E a signorine? Quer fazer queixa contra essa pessoa?

Ele estava se dirigindo a irmã mais ativa.

— Oh, não, não mesmo! Foi tudo um engano. Nosso único desejo é retornar imediatamente para a pensão.

O policial resmungou e em seguida apontou para John.

— Você é homem de muita sorte. Estas signorine poderiam abrir queixa contra você, assunto muito sério!

— Tenho certeza que sim...

— Por favor, não pense nisso — exclamou a irmã horrorizada. — Nós não queremos saber de uma coisa dessas.

Era a sua vez dela pedir desculpas ao policial. — Espero que não precisemos tomar mais do seu precioso tempo.

Ele acenou com a mão despedindo-se e falou em italiano para o subalterno.

— Este homem acompanhará vocês até a pensão. Buona sera, signorina — e ignorando John,
sentou-se novamente em sua mesa.

— Eu vou com vocês — disse John. — Quero explicar exatamente o que aconteceu.

Desceram as escadas, a irmã cega uma vez fora, voltou seus olhos cegos para John.




— Você nos viu, e sua esposa também. Mas não hoje. Você nos viu no futuro...

Sua voz era mais suave do que a de sua irmã, mais lenta e com dificuldade.

— Não entendo — respondeu John perplexo.

Ele se virou para a outra irmã e esta balançou a cabeça para ele, franzindo a testa, e pôs o dedo nos lábios.

— Venha querida. Você sabe que está muito cansada, e eu quero te levar para casa. 

Então, virou-se para John dizendo: — Ela é psíquica. Sua esposa lhe disse, eu acredito, mas eu não quero que ela entre em transe aqui na rua.

Deus me livre, pensou John, e a pequena procissão começou a mover-se lentamente ao longo da rua, do lado de fora da sede da polícia, seguindo o canal à esquerda.

O progresso era lento por causa da irmã cega, e havia duas pontes para transpor. John estava completamente perdido após a primeira curva, mas não poderia ter se importado menos. A escolta policial estava com eles, e mesmo assim as irmãs sabiam para onde estavam indo.

— Tenho que me explicar — disse John suavemente. — Minha esposa nunca me perdoaria se eu não o fizesse.

Enquanto caminhava foi desenrolando toda a história inexplicável, mais uma vez, começando com o telegrama recebido na noite anterior e da conversa com a Sra Hill, a decisão de voltar para a Inglaterra no dia seguinte, Laura por via aérea, e o próprio John de carro e trem. Já não parecia tão dramático quanto seu depoimento à polícia, possivelmente por conta de sua convicção de algo estranho estar ocorrendo, a descrição dos dois vaporettos se cruzando no meio do Grande Canal tinha perdido a qualidade sinistra, sugerindo rapto por parte das irmãs, de uma Laura cativa e desnorteada.

Agora que nenhuma das mulheres significava qualquer ameaça para ele, falou com mais naturalidade, mas com grande sinceridade, sentindo pela primeira vez que de alguma forma, nutriam simpatia por ele e iriam entender.

— Vocês entendem — explicou num esforço final — eu realmente acreditava que tinha visto vocês com Laura, e eu pensei que Laura... 

Hesitou porque esta tinha sido sugestão do policial e não dele.

—... Eu pensei que talvez Laura tivesse tido alguma perda súbita de memória, tinha encontrado-as no aeroporto, e vocês a trouxeram de volta a Veneza.

Atravessaram uma grande praça e estavam se aproximando de uma casa com um sinal de pensão acima da porta. Sua escolta parou na entrada.

— É aqui? — Perguntou John.

— Sim — disse a irmã. — Eu sei que não é nada especial, mas é limpa e confortável, e foi recomendada por amigos.

Virou-se para a escolta.  — Grazie, grazie.

O homem acenou com a cabeça brevemente e desejou-lhes boa noite e desapareceu em direção ao caminho antes percorrido por eles.

— Você vai entrar? Estou certa de que podemos encontrar um pouco de café, ou talvez você prefira chá?

— Não. Preciso voltar ao hotel. Partirei amanhã cedo. Só queria ter certeza de que vocês  entenderam o que aconteceu, e que me perdoarão.

— Não há nada a perdoar. É um dos muitos exemplos de segunda visão que minha irmã e eu experimentamos uma ou outra vez, e eu gostaria de registrá-lo para nossos arquivos, se você nos permitir.

— Bem, quanto a isso, é claro que sim, mas acho difícil de entender. Isso nunca aconteceu comigo antes.

— Não conscientemente, talvez, mas muitas coisas acontecem para nós, das quais não temos conhecimento. Minha irmã sentiu que você tinha habilidade psíquica. Ela disse a sua esposa. Ela também disse a sua esposa, ontem à noite no restaurante, que vocês estavam em perigo, que você deveria deixar Veneza. Bem, você não acredita agora que o telegrama era prova disso? Seu filho estava doente, possivelmente perigosamente doente, e por isso era necessário você voltar para casa imediatamente. Graças aos céus sua esposa voltou para estar ao lado dele.

— Sim, é verdade, mas por que eu a vi no vaporetto com você e sua irmã, quando ela estava a caminho da Inglaterra?

— Transferência de pensamento, talvez. Sua esposa pode ter pensando em nós. Nós demos o nosso endereço, se desejasse entrar em contato conosco. Estaremos aqui mais dez dias. E ela sabia que iríamos passar qualquer mensagem que minha irmã pudesse ter sobre seu pequeno no mundo espiritual.

— Sim — disse John desajeitadamente. Teve uma imagem súbita bastante desagradável das duas irmãs. — Olhe, este é o nosso endereço em Londres. Eu sei que Laura terá o prazer de falar com vocês novamente.

Ele rabiscou seu endereço e telefone em uma folha rasgada do diário de bolso e entregou a ela. Ele podia imaginar o resultado. Laura numa noite com as "velhinhas queridas" passando por Londres em seu caminho para a Escócia, e o mínimo que poderia fazer era oferecer-lhes hospitalidade.

Em seguida fariam uma sessão na sala de estar.

— Boa noite e desculpas mais uma vez, por tudo o que aconteceu esta noite.

Apertou a mão da primeira irmã, em seguida, virou-se para a cega.

— Espero que não esteja muito esgotada.

 
Os olhos cegos eram desconcertantes. Ela segurou sua mão rapidamente, não iria deixá-lo ir.





— A criança — disse ela falando com uma voz em staccato — a criança... Eu posso ver a criança...

— Em seguida, para seu espanto, um cordão de espuma apareceu no canto de sua boca e sua cabeça pendeu, e ela meio que desabou nos braços de sua irmã.
 
— Temos de levá-la para dentro — disse a irmã apressadamente. — Está tudo bem, ela não está doente, é o começo do transe.

Ele ajudou levando a irmã, rígida, para dentro de um quarto e colocou-a na cama próxima, com a irmã a apoiá-la. 


— Não se preocupe — disse a irmã. — Eu acho que é melhor você ir.

— Estou terrivelmente arrependido... — John começou a dizer, mas a irmã já tinha virado as costas e com a outra signorina, estava debruçada sobre sua irmão gêmea, de onde sons peculiares, asfixia talvez, partiam. Como um último gesto de cortesia, perguntou se havia alguma coisa que poderia fazer, não recebeu qualquer resposta.

Virou-se e começou a caminhar em frente à praça.

Olhou para trás uma vez, e viu que elas tinham fechado a porta da pensão.

Que final de noite! E tudo culpa dele. Pobres velhinhas, primeiro arrastadas para a sede da polícia e submetidas a um interrogatório, e depois um ataque desses. O mais provável era epilepsia.

Fora isso, onde diabos estava? A praça com a inevitável igrejinha em uma extremidade estava deserta. Não conseguia se lembrar de que maneira tinham vindo da sede da polícia até ali.

Espere um minuto! A igreja tinha uma aparência familiar.

Aproximou-se procurando pelo seu nome que era, por vezes, escrito em avisos na entrada. San Giovanni in Bragora. Ele e Laura tinham adentrado ali uma manhã a observar uma pintura de Conegliano. Certamente era perto da Riva degli Schiavoni e da lagoa San Marco, com todas as luzes brilhantes da civilização e os turistas passeando.

 
Mergulhou por um beco, mas na metade hesitou. Não parecia certo, embora familiar por alguma razão desconhecida. Então percebeu que não era o beco que tinham tomado antes quando visitaram a igreja, mas o que tinham caminhado na noite anterior, só que no sentido oposto. Sim, era isso,
 
 
Seria mais rápido atravessar a pequena ponte sobre o canal estreito, e iria encontrar o Arsenal à sua esquerda e a rua que leva até a Riva degli Schiavoni à sua direita. Mais simples do que refazer seus passos e se perder mais uma vez no labirinto de ruelas.

Ele tinha quase chegado ao final do beco, com a ponte à vista, quando viu a criança.




A mesma menina de capa que tinha saltado entre os barcos amarrados na noite anterior e desaparecera nos degraus de uma das casas. Desta vez ela estava fugindo na direção da igreja do outro lado. Corria como se sua vida dependesse disso, e em um momento ele viu o porquê.

Um homem estava em sua perseguição.

 
A criança veio correndo através da ponte, e John com medo de assustá-la ainda mais, apoiou-se escondendo sob a entrada de uma entrada que dava para um pequeno pátio.

Lembrou-se do grito de bêbado na noite anterior, que tinha vindo de uma das casas perto de onde o homem estava agora.

Com um lampejo de intuição conectou os dois eventos, o terror da criança e os assassinatos relatados nos jornais, supostamente o trabalho de um louco. Podia ser coincidência, uma criança correndo de um parente embriagado, e ainda, e ainda...

  
Seu coração começou a bater forte em seu peito, o instinto advertindo-o para sair dali, agora, voltar para onde ele tinha vindo, mas e quanto a criança?

O que iria acontecer à criança?

Então ouviu passos. Ela desaparecera pela porta aberta de um prédio, presumivelmente uma entrada dos fundos. Estava chorando enquanto corria, não era o som comum de uma criança assustada, mas a ingestão de pânico da respiração de um ser indefeso em desespero. Seus pais em casa iriam protegê-la, mas a quem ele poderia avisar?





Hesitou um instante, depois seguiu-a.




— Olá! Está tudo bem — ele gritou. — Não vou deixar ele te machucar, está tudo bem – disse amaldiçoando sua falta de italiano, mas possivelmente uma voz amiga, mesmo em um idioma estranho para ela, poderia tranquilizá-la. Mas foi inútil. Ela correu soluçando até outro lance de escadas em espiral, que subia ao andar de cima, e já era tarde demais para ele desistir.




Ouviu sons do perseguidor no pátio, alguém gritando em italiano, um cachorro latindo.
É isso, pensou, estamos nisso juntos agora, eu e a criança.


A menos que encontrasse uma porta interna lá encima, e que desse um jeito de trancá-la, ele iria alcançá-los. Subiu as escadas correndo e se lançou em uma sala que conduzia a um pequeno patamar.

Seguiu para dentro e fechou sua porta. Céu Misericordioso!

A criança estava junto da parede.


Se gritasse por ajuda alguém certamente ouviria, alguém viria antes do homem.

O quarto estava vazio, exceto por um colchão em uma velha cama, e um amontoado de trapos em um canto.

— Está tudo bem — disse ofegante. — Está tudo bem!

Estendeu a mão, tentando sorrir. A criança ficou diante dele.


Ele olhou para ela paralisado, tamanha incredulidade e horror.


 Não era uma criança, mas uma pequena anã, cerca de noventa centímetros de altura, com uma grande cabeça adulta quadrada, grande demais para seu corpo, cachos de um cabelo feio, cinzento, caindo nos ombros, e não estava chorando, estava sorrindo para ele, balançando a cabeça para cima e para baixo.

 
Em seguida ouviu passos e o martelar na porta, e um cachorro latindo, e não uma só voz, mas várias.
Gritos.

— Abra! É a polícia!

A criatura se atrapalhou com sua manga ao puxar uma faca e atirou-se sobre ele com uma força medonha, perfurando sua garganta.

 
John tropeçou e caiu. Uma coisa pegajosa cobria suas mãos. A criatura estava balbuciando em seu canto.

E viu o vaporetto com Laura e as duas irmãs atravessando o Grande Canal, não hoje, não amanhã, mas no dia seguinte, e soube que triste finalidade as reunira.

 

As vozes e o cão latindo tornavam-se fracas e, Deus, pensou, que estranha maneira de morrer...



FIM

Don't Look Now - Daphne du Maurier (Parte 4)



Quatro horas, quatro e meia. John procurou a recepção.

— Não posso ficar mais aqui. Mesmo se ela aparecer, nunca chegaremos a Milão esta noite. Ela pode estar com estas senhoras, na Piazza San Marco, em qualquer lugar. Se ela aparecer aqui enquanto eu estiver fora, você fala com ela?

O funcionário estava preocupado.  – Claro que sim. Seria talvez prudente reservar um quarto aqui esta noite?

John fez um gesto, sem poder pensar em mais nada. — Talvez, sim, eu não sei. Talvez...

Saiu e começou a caminhar na direção da Piazza San Marco.



Olhou em todas as lojas, atravessou a praça uma dúzia de vezes, abriu caminho entre as mesas na frente do Florian, do Quadri, sabendo que o casaco vermelho de Laura e a aparência distinta das irmãs gêmeas poderia facilmente ser notada mesmo na multidão, mas não havia nenhum sinal delas.

Juntou-se à multidão de compradores na Merceria, ombro a ombro com ociosos, turistas, sabendo instintivamente que era inútil, elas não estavam ali.

Por que Laura deliberadamente perderia seu voo e retornaria a Veneza? E mesmo se ela tivesse feito isso por algum motivo além de sua imaginação, certamente teria que ir primeiro ao hotel para encontrá-lo.

A única coisa que lhe restava era tentar encontrar as irmãs. Seu hotel poderia ser qualquer um entre as centenas de hotéis e pensões espalhadas por Veneza, ou mesmo do outro lado no Zattere, ou ainda no Giudecca. Estas duas últimas parecia improváveis. Mais provável é que elas se hospedaram em um pequeno hotel ou pensão em algum lugar perto de San Zaccaria, perto do restaurante onde tinham jantado na noite passada. Uma pessoa cega certamente não iria muito longe à noite. Tinha sido um tolo por não ter pensado nisso antes, e caminhou rapidamente para longe da zona comercial brilhantemente iluminada, dirigindo-se a area onde tinham jantado na noite passada.


Encontrou o restaurante sem dificuldade, mas ainda não estava aberto para jantar, e o garçom não era a pessoa que os tinha servido. John pediu para ver o dono, e o garçom desapareceu nos fundos, retornando depois de um minuto ou dois com um senhor um pouco desgrenhado em mangas de camisa, interrompido em seu momento de folga.

— Jantei aqui ontem à noite. Havia duas senhoras sentadas à mesa lá no canto — apontou para lá.

— Deseja reservar a mesa para esta noite? — Perguntou o proprietário.

— Não. Não, tinha duas senhoras lá na noite passada, duas irmãs, sorelle, gêmeas, gemelle, — arriscou a palavra para gêmeos — lembra? Duas senhoras, vecchie sorelle.

— Ah, si, si, signore, la povera signorina — colocou as mãos nos olhos para fingir cegueira. – Sim, eu lembro.

— Você sabe seus nomes? Onde estão hospedados? Preciso encontrá-las.

O proprietário estendeu as mãos num gesto de arrependimento.

— Desculpe signore, eu não sei os nomes das signorine, elas têm aparecido aqui uma vez, duas vezes, talvez para o jantar, não sei dizer onde estavam hospedadas. Talvez hoje à noite eles possam voltar aqui. Gostaria de reservar uma mesa?

Ele apontou, sugerindo uma escolha enorme de mesas que poderia reservar para um jantar em potencial, mas John balançou a cabeça.

— Obrigado, não. Elas podem jantar em outros lugares. Sinto ter lhe incomodado. Se o signorine as vir...  — fez uma pausa. – Volto depois. Não tenho certeza.

O homem caminhou até a entrada. — Em Veneza, o mundo inteiro se reúne — disse sorrindo. — É possível que o signore encontre suas amigas hoje à noite. Arrivederci, signore.

Amigas? John afastou-se. Sequestradoras, isso sim...

A ansiedade se transformou em medo, ao entrar em pânico. Alguma coisa tinha saido terrivelmente errado. Essas mulheres tinham pegado Laura, graças a sua sugestibilidade, induzido-a a ir com elas, para o seu hotel ou outro lugar. E se procurasse o Consulado? Onde ficaria? O que diria?

Começou a andar sem propósito, como haviam feito na noite anterior, em ruas desconhecidas, e de repente ficou diante um edifício alto com a palavra "Questura" acima dele.

 
É isso, pensou. Vou entrar.

Havia um bom número de policiais uniformizados indo e vindo, o lugar estava agitado, e, dirigindo-se a um deles atrás de uma divisória de vidro, perguntou se havia alguém que falasse inglês.

O homem apontou para um lance de escadas e John subiu, entrando em uma porta à direita, onde ele viu outro casal sentado, esperando, e com alívio reconheceu compatriotas, turistas, obviamente um homem e sua esposa, em algum tipo de situação.

— Venha e sente-se — disse o homem. — Esperamos a meia hora, mas pode levar mais tempo. Que país!

John tirou um cigarro do maço oferecido a ele e encontrou uma cadeira ao lado deles.

— Qual o problema? — Perguntou.

— Minha esposa teve a bolsa levada em uma dessas lojas na Merceria. Ela simplesmente colocou-a de lado um segundo para olhar algo, e no segundo seguinte, tinha sumido. Eu digo que foi um ladrão, ela insiste que foi a menina atrás do balcão. Mas quem pode dizer? Esses judeus são todos iguais. De qualquer forma, estou certo de que não vai conseguí-la de volta. O que você perdeu?

— Mala de viagem roubada — John mentiu. – Tinha alguns papéis importantes nela.

Como poderia dizer que tinha perdido sua esposa?

O homem acenou com a cabeça em simpatia.

— Como eu disse, esses judeus são todos iguais. O velho Musso sabia como lidar com eles. Temos comunistas demais hoje em dia. O problema é que não vão se importar conosco com este assassino à solta. Estão todos procurando por ele.

— Assassino?

— Não me diga que não ouviu falar dele? — O homem olhou com surpresa. – Não se fala de mais nada em Veneza. Está em todos os jornais, no rádio, e até mesmo nos jornais ingleses. Uma mulher foi encontrada com a garganta cortada na semana passada,  turista; e um velhote foi descoberto com o mesmo tipo de ferida a faca esta manhã. Parece ser um maníaco, porque age sem qualquer motivo.

Uma coisa muito desagradável para acontecer em Veneza logo na temporada turística.

— Minha esposa e eu nunca lemos os jornais quando estamos de férias — disse John.

— Muito sábio da sua parte — riu o homem. — Pode estragar as férias, especialmente se sua esposa for nervosa. De qualquer forma vamos embora amanhã. Não podemos dizer que estamos preocupados com isso, não é querida? — Ele virou-se para sua esposa. — Veneza está indo para o buraco, desde que estivemos aqui pela última vez. E agora esse roubo da bolsa, é realmente o fim.

A porta da sala se abriu e um oficial da polícia pediu ao homem e sua esposa para que entrassem.

— Aposto que não nos darão qualquer satisfação — murmurou o turista piscando para John, e ele e sua esposa entraram. A porta se fechou atrás deles.

John apagou o cigarro e acendeu outro.

Uma estranha sensação de irrealidade o possuiu. Perguntou-se o que estava fazendo ali? Laura tinha desaparecido, talvez para sempre, com aquelas irmãs diabólicas. Ela nunca seria encontrada. E assim como tinham criado uma história fantástica sobre as gêmeas, quando as viram pela primeira vez em Torcello, com a lógica de um pesadelo, a ficção teria base na realidade; as mulheres eram na realidade bandidos disfarçados, com intenção criminosa, que seduziam pessoas inocentes para um destino terrível. Podiam até serem os assassinos que a polícia procurava. Quem poderia suspeitar de duas mulheres idosas de aparência respeitável, vivendo tranquilamente em alguma pensão de segunda classe? Apagou o cigarro inacabado.

Assim, pensou, é que começa a paranoia. É como as pessoas enlouquecem.

Olhou para o relógio. Seis e meia. Melhor parar com essa busca inútil na polícia e manter o único vínculo de sanidade remanescente. Retornar ao hotel, ligar para a escola preparatória na Inglaterra e perguntar sobre Johnnie. Ele não tinha pensado no pobre Johnnie desde que viu Laura no vaporetto.
No entanto era tarde demais. A porta interna abriu e o casal saiu.

— A mesma lenga-lenga — disse o marido para John.

— Vamos fazer o que pudermos. Não tenham muita esperança. Tantos estrangeiros em Veneza, tantos alvos para os ladrões! Os moradores estão acima de qualquer suspeita. Não iriam roubar clientes. Bem, desejo-lhe a melhor sorte!

Ele balançou a cabeça, sua esposa sorriu e curvou-se, e foram embora.

John seguiu o policial para o interior da sala.

Começaram com as formalidades. Nome, endereço e passaporte. Tempo de permanência em Veneza, etc, etc. Em seguida as perguntas. O suor começou a aparecer em sua testa. O primeiro encontro com as irmãs no restaurante, o estado de sugestionabilidade por causa da morte da filha, o telegrama sobre Johnnie e a decisão de Laura de tomar o vôo fretado, a sua partida, e seu retorno inexplicável.

Quando terminou, se sentia tão exausto como se tivesse dirigido centenas de quilômetros sem parar.
Seu interrogador falava um excelente inglês com um forte sotaque italiano.



— Você disse — ele começou — que sua esposa estava sofrendo os efeitos de pós-choque. Era perceptível durante a sua estadia aqui em Veneza?

— Sim, ela tinha estado bastante doente. A viagem não parecia estar fazendo muito bem a ela. Foi só quando conheceu essas duas mulheres em Torcello que seu humor mudou. A tensão parecia ter ido embora. Ela acreditava que a nossa menina estava junto dela.

— Natural dada as circunstâncias. Mas, sem dúvida, o telegrama na noite passada foi mais um choque para vocês dois?

— De fato sim. Essa foi a razão pela qual decidiu voltar para casa.

— Nenhuma briga entre vocês? Nenhuma diferença de opinião?



— Nada. Estávamos em completo acordo. Meu único arrependimento foi que eu não podia ir com minha esposa neste vôo charter.

O policial assentiu. – Sua senhora poderia muito bem ter tido um súbito ataque de amnésia, e agarrou-se as duas senhoras para apoio. Você descreveu-as com grande precisão, e acho que não deve ser muito difícil de encontrá-las. Enquanto isso sugiro que retorne ao seu hotel, entraremos em contato com você assim que tivermos notícia.

Pelo menos, John pensou, eles acreditaram na sua história. Ele não agiu como se a coisa toda fosse apenas um desperdício de tempo.

— Agradeço. Estou extremamente ansioso. Estas mulheres podem ter algum plano criminoso. Já ouvi falar de coisas assim.

O policial sorriu pela primeira vez. — Por favor, não se preocupe. Estou certo de que haverá alguma explicação satisfatória.

Certo, mas, em nome de Deus, qual seria?

— Sinto muito por ter tomado tanto do seu tempo. Especialmente porque sei que a polícia está no meio da caça um assassino foragido.


— Ah, isso. Esperamos ter o assassino trancado a sete chaves muito em breve.

Seu tom de confiança era tranquilizador.

Assassinos, esposas perdidas, bolsas roubadas, tudo sob controle.

Apertaram as mãos e John foi levado até a porta.

Enquanto caminhava lentamente de volta para o hotel, pensou que o sujeito estava certo. Laura tinha sofrido um súbito ataque de amnésia e as irmãs no aeroporto a trouxeram de volta a Veneza, ao seu próprio hotel, porque Laura não conseguia se lembrar onde ela e John se hospedaram. De qualquer forma ele não podia fazer mais nada.

 
A polícia tinha tudo nas mãos, e, se Deus quiser, viriam com a solução. Tudo o que ele queria fazer agora era cair na cama com um uísque puro, e em seguida ligar para a escola de Johnnie.

No hotel o elevador levou-o ao quarto andar, para um apartamentozinho modesto na parte de trás. Nu, impessoal, as persianas fechadas, com um cheiro de comida flutuando a partir de um pátio abaixo.

— Peça-lhes para mandar pro meu quarto um uísque duplo — ordenou ao telefone.  — E um ginger ale.

Quando sozinho mergulhou seu rosto sob a torneira no lavatório. Atirou de lado seus sapatos, o casaco pendurado no encosto de uma cadeira e se jogou na cama.

Um rádio estava tocando uma velha canção popular, que tinha sido um dos hits favoritos de Laura um par de anos atrás.

“Eu amo você, baby...”

Pegou o telefone e pediu a ligação para a Inglaterra. Em seguida fechou os olhos. A voz insistente persistia, "eu te amo, Baby... Não consigo tirar você da minha mente".

Houve uma batida na porta. Era o garçom com sua bebida. Precisava desesperadamente dela. Engoliu sem o ginger ale e em alguns momentos sentiu-se anestesiado, mesmo que apenas momentaneamente, uma sensação de calma.

O telefone tocou, e pensou, preparando-se para o desastre final, o choque final, Johnnie morrendo ou já morto. Nada mais restara para ele. Vamos Veneza, acabe logo comigo...

O operador disse-lhe que a ligação tinha sido feita, e num instante ouviu a voz da Sra Hill do outro lado da linha. Deviam tê-la avisado que a chamada era de Veneza, pois sabia imediatamente com quem estava falando.

— Alô? Oh! Estou tão feliz que o senhor ligou. Tudo está bem! Johnnie operou, o cirurgião decidiu fazê-lo ao meio-dia em vez de esperar, e saiu tudo bem. Johnnie está bem. Não precisa se preocupar mais, tenha uma noite tranquila.


— Graças a Deus.

— Eu sei, estamos todos aliviados. Agora vou passar para sua esposa...

John ficou atordoado. O que diabos ela queria dizer?


Em seguida, ouviu a voz de Laura.

— Querido? Querido, você está aí?

Não conseguiu responder. Sentiu a mão úmida e fria de suor.

— Aqui — sussurrou.

— A ligação não está boa, mas não importa. Como a senhora Hill disse, está tudo bem. O tal cirurgião é muito agradável e estou feliz com a maneira que ocorreu. Vim direto para cá depois de aterrissar no aeroporto de Gatwick. O vôo foi OK, tão engraçado, depois te conto sobre ele. Johnnie está se recuperando. Meio abatido, é claro, mas feliz em me ver. E os Hill tem sido maravilhosos comigo, tenho um quarto de hóspedes e a  viagem de táxi até o hospital é bem rápida. Irei dormir assim que jantarmos, estou um pouco fatigada por conta do vôo e da ansiedade. Como foi a viagem para Milão? Onde está?



John não reconheceu a voz que respondeu como sua. Soou como a resposta automática de uma máquina.

— Eu não estou em Milão, ainda estou em Veneza.

— Ainda em Veneza?

— Não posso explicar agora. Foi uma espécie de confusão estúpida...

Sentiu-se de repente tão exausto que quase deixou cair o telefone, e, vergonha, podia sentir as lágrimas picando atrás de seus olhos.

— Que tipo de confusão? — A voz dela desconfiada, quase hostil. — Você não se meteu em um acidente, não?

— Não... Não... Nada disso.

Um momento de silêncio, e então ela disse: — Sua voz soa arrastada. Não me diga que você ficou chateado.

Oh, Cristo! Se ela soubesse!

— Eu pensei — disse lentamente, pensei ter visto você em um vaporetto, com aquelas duas irmãs.
Era impossível tentar explicar.

— Como você poderia ter me visto com as irmãs? Você sabia que eu tinha ido para o aeroporto. Realmente, querido, você é um idiota. Você parece ter ficado com as coitadas na cabeça. Espero que não tenha dito nada à senhora Hill.


— Não.

— Bem, o que vai fazer? Você vai pegar o trem amanhã, não vai?

— Sim, claro.

— Ainda não entendo o que manteve você em Veneza. Tudo soa um pouco estranho para mim. Contudo... Graças a Deus Johnnie está bem e eu estou aqui.

— Sim, sim.

Ouviu o som distante do gongo do relógio no salão do diretor.

— É melhor você ir — disse ele. — Meus cumprimentos aos Hill, e um beijo para Johnnie.


— Cuide-se querido, e pelo amor de Deus não perca o trem amanhã, e dirija com cuidado!

Ouviu um clique e ela tinha ido.

Derramou o restante de uísque em seu copo vazio e misturou com ginger ale. Bebeu em um gole só. Levantou-se e atravessando a sala abriu as persianas e inclinou-se para fora. Sentiu-se tonto. A sensação de alívio, enorme, avassaladora, de alguma forma viera misturada com uma curiosa sensação de irrealidade, quase como se a voz com quem falara na Inglaterra não fosse Laura, mas uma farsa, e ela ainda estivesse em Veneza, escondida em alguma pensão furtiva com as duas irmãs.

O ponto era que tinha visto as três no vaporetto. Não era outra mulher em um casaco vermelho. As gêmeas lá, com Laura. Então, qual era a explicação? O que acontecia na sua cabeça? Ou era algo mais sinistro? As irmãs possuiam poderes psíquicos formidáveis, e de alguma forma inexplicável tinham feito com que ele acreditasse ter visto Laura com elas. Mas por que, e para que fim? Não, não fazia sentido. A única explicação era que ele tinha sido enganado, todo o episódio fora uma alucinação. Talvez precisasse de psicanálise, assim como Johnnie tinha precisado de um cirurgião.

E agora? Descer as escadas e dizer ao gerente que tudo tinha sido sua culpa e que acabara de falar com sua esposa na Inglaterra? Calçou os sapatos e correu os dedos pelos cabelos. No relógio faltavam dez minutos para as oito.

Se bebesse um pouco no bar seria mais fácil enfrentar o gerente e admitir o que tinha acontecido. Então, talvez, eles entrassem em contato com a polícia.

Seguiu para o andar térreo e foi direto para o bar, sentindo-se autoconsciente, um homem marcado, imaginando como todo mundo iria olhar para ele pensando, 'Lá vai o marido da esposa desaparecida’. 

Felizmente o bar estava cheio e não foi reconhecido. Até mesmo o camarada atrás do balcão nunca o tinha servido antes. Bebeu uísque e olhou por cima do ombro para o salão da recepção. Vazio. Viu as costas do gerente na porta de uma sala, conversando com alguém do lado de dentro. Num impulso covarde, atravessou o corredor e saiu pela porta principal.

Melhor jantar antes, decidiu, e, em seguida, voltarei para enfrentá-los. Vou me sentir melhor com um pouco de comida dentro de mim.

Foi até o restaurante nas proximidades onde ele e Laura jantaram uma ou duas vezes. Nada importava mais, porque ela estava segura. O pesadelo ficou para trás. Poderia desfrutar de seu jantar, apesar de sua ausência, e pensar nela sentada com os Hill, numa maçante noite tranquila, indo cedo para a cama e na manhã seguinte para o hospital, para ficar junto de Johnnie. Johnnie estava seguro também. Nada mais de problemas, apenas explicações embaraçosas e desculpas para o gerente do hotel.

Havia um anonimato agradável em sentar em uma mesa de canto sozinho no pequeno restaurante.

Pediu vitello alla marsala e meia garrafa de Merlot. Passou o tempo desfrutando de sua comida, em uma espécie de névoa, a sensação de irrealidade ainda persistia, enquanto a conversa de seus vizinhos próximos tinha o mesmo efeito calmante de música de fundo. Quando se levantaram para sair ele viu no relógio na parede que era quase nove e meia. Não importava mais. Tomou seu café, acendeu um cigarro e pagou a conta. Afinal de contas, pensou enquanto caminhava de volta para o hotel, o gerente ficaria muito aliviado em saber que tudo estava bem.

Quando empurrou a porta de vai-e-vem, a primeira coisa que notou foi um homem em uniforme da polícia, que está conversando com o gerente na recepção. O funcionário da recepção estava lá também. Viraram-se quando John se aproximou, e o rosto do gerente iluminou-se com alívio.

— Eccolo! Eu estava certo de que o signore não estaria longe. As coisas estão se movendo, signore.

As senhoras foram encontradas, e, muito gentilmente, concordaram em acompanhar a polícia até a Questura. Este agente di Polizia irá acompanhá-lo.

John corou: — Causei a todos um monte de problemas. Queria dizer-lhe antes de sair para jantar, mas não o encontrei. O fato é que eu consegui encontrar minha esposa. Ela fez o vôo para Londres, e falei com ela ao telefone. Foi tudo um grande engano.

O gerente parecia desnorteado. — A signora está em Londres? — Trocou uma conversa rápida em italiano com o policial. — Parece que as senhoras não sairam durante o dia, exceto para compras rápidas na parte da manhã — disse voltando-se para John. — Então quem foi que o signore viu no vaporetto?

John sacudiu a cabeça.

— Um erro extraordinário da minha parte, e que ainda não entendo. Obviamente eu não vi minha esposa ou as duas senhoras. Eu realmente estou extremamente arrependido.

Mais rápida conversa em italiano. John notou o funcionário observando-o com uma expressão curiosa em seus olhos. O gerente obviamente pedia desculpas em nome de John para o policial, que parecia irritado e o demonstrou com sua voz aumentando de volume. Todo o negócio tinha dado, sem dúvida, um monte de problema para muitas pessoas, e não menos, para as duas infelizes irmãs.

— Olhe — disse John interrompendo-os — diga ao policial que irei com ele e pedirei desculpas pessoalmente tanto para a polícia quanto para as senhoras.

O gerente parecia aliviado. — Naturalmente, as senhoras ficaram angustiadas quando o policial interrogou-as em sua pensão, e se ofereceram para acompanhá-lo a Questura.

John sentiu-se cada vez mais desconfortável. Perguntou-se se havia alguma penalidade por dar informações enganosas à polícia. Seu erro assumia proporções criminosas.