domingo, 1 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 4)



O uivo melódico e afiado penetrava no complexo americano, chegando até a sala de recreação através de corredores de ligação.
Embaixo de uma das mesas de carteado, o husky ferido alinhou suas orelhas. O uivo degenerou em algo que teria a ver com lobisomens em Londres. Uma vez que o uivo havia sido metamorfoseado em fala humana, o cão dirigiu sua atenção para outro lugar.
Perto dali, uma bola de luz dançava através de uma tela de vídeo, desafiando jogadores a manipulá-la. Não havia jogadores na sala naquele momento só o cão desinteressado.
O uivo era mais alto na cozinha, a partir de um leitor de cassetes vibrando em uma prateleira acima do fogão.



Nauls passou patinando chutando a porta do congelador com as rodas de aço. O grande pedaço de carne em lata que tinha extraído do congelador jazia no bloco de cortar carne. Tachos e panelas cozinhando o ar e o aroma enchendo a sala de pimenta e folhas de louro.
Nauls rolou facilmente de um canto para outro, mantendo o tempo da música. Usou uma colher para provar o conteúdo de um caldeirão, franziu o cenho, acrescentou algo e em seguida provou novamente. Desta vez sorriu.
Ele tinha orgulho de seu trabalho. A estação pode funcionar sem os cientistas, sem os pilotos de helicóptero ou mecânicos, sem Garry, mas não sem os talentos de Nauls. Não senhor. Nauls podia insultar todos no acampamento com impunidade. Sua cozinha compensava os delitos cometidos por sua boca.
Ainda assim, objeções ocasionais a sua irreverência sempre surgiam.
Garry olhou através da porta aberta, fazendo uma careta.
— Desligue essa porcaria, Nauls! Você pode ouvi-la em todo o acampamento.
— Desligue os alto-falantes dos corredores e da sala de recreação.
— Mais trabalho do que vale a pena — argumentou o gerente da estação. — Ouça então este lixo, mas abaixe!
Nauls fungou com desdém. — Algumas pessoas não têm apreço pela cultura.
As unhas de Garry bateram no batente da porta.
— Warren Zevon não é cultura, Nauls. Beethoven é cultura. Janácek é cultura. Vaughan Williams é cultura.
— É? Se eu ouvir a sinfonia ‘Antarctica’ tocando no seu quarto mais uma vez, acho que vou enlouquecer! Se quiser ouvir coisas assim, tudo que você tem a fazer é abrir a sua janela. Cultura só depende do seu ponto de vista.
— Bem, surdez não. Então abaixe!
— Oui, mon senhor.
Patinou até o aparelho de som e abaixou o volume. Ligeiramente.
Garry balançou a cabeça e continuou sua ronda.



A sala de comunicações era a próxima da sua ronda. Sem nenhuma surpresa, encontrou Sanders no seu posto. Também não era surpresa, o operador estava recostado na cadeira, dormindo profundamente. Seus fones de ouvido ainda estavam no lugar.
Garry na ponta dos pés deu a volta na cadeira e estudou o console brevemente, antes de selecionar um seletor dos controles. Ele virou-o todo a direita.
Uma explosão de estática sacudiu o operador de rádio, que agarrou as orelhas, arrancando os fones de ouvido.
— Ei, cara!
Quando viu que se tratava do gerente da estação, sua indignação diminuiu um pouco. — Você pode ensurdecer alguém assim.
— Não é mais alto do que qualquer aparelho de som do Nauls.
— Eu sou sensível pra cacete, chefe.
— É? Não captou ninguém ainda?
Sanders explicou como se estivesse falando com uma criança:
— Estamos a milhares de quilômetros de qualquer outra pessoa, cara. Você não pode escolher com aquela porcaria lá fora. Se Bennings estiver certo, vai ficar muitíssimo pior antes de melhorar. Agora, se tivéssemos um satélite geoestacionário seria fácil.
— Bem, nós não temos — Garry lembrou-o.
Não havia muita necessidade de um satélite de comunicações estacionado na vizinhança espacial do pólo sul. Ele suspirou resignado. — Continue tentando. Avise-me quando encontrar McMurdo ou qualquer outro lugar.
— É? Mesmo os russos?
— Qualquer um. Temos que relatar o que está acontecendo aqui.




Os habitáculos individuais se localizavam no mesmo corredor, uma passagem mais ampla do que a maioria no complexo.
O husky trotou curioso pelo corredor vazio, com a língua pendurada preguiçosamente de sua boca.
Uma única porta estava aberta à sua esquerda. O cão parou e olhou para dentro. A luz era fraca e não havia qualquer som.
Casualmente o animal olhou para trás pelo corredor ainda vazio. O mesmo para a passarela em frente. Virou-se e caminhou para dentro do quarto. Uma voz indistinta e surpresa cumprimentou-o.
— Olá, rapaz.
Houve uma pausa, em seguida o som inesperado de vidro quebrando. Sons abafados emitidos a partir do quarto, como se alguém estivesse brigando. A porta foi fechada.
Em seguida a tranquilidade voltou ao corredor novamente.


Fuchs era doido.
A maioria dos outros teriam atestado. O assistente biólogo era sensível, preocupado, amigável e despretensioso.
Mas doido.
Ninguém escolheria correr na Antártica. Você pode correr em Los Angeles, apesar da poluição, nas montanhas ao redor de Denver, apesar da altitude, ao longo da praia ao sul de Miami, mesmo no Central Park de Nova York. Mas não na Antártida.
Bem, Fuchs tinha corrido toda a sua vida adulta e não seria um pouco de mau tempo que iria quebrar a rotina de uma vida.
Assim, todas as manhãs, antes de começar a trabalhar, ele colocava os óculos de neve e corria ao redor do acampamento, usando as cordas de guia sempre que disponíveis. Garry havia pensado em proibir a prática, mas Fuchs foi inflexível. E o gerente da estação, foi forçado a admitir que não havia nada nos regulamentos que proibisse isso.
— Isso me energiza — Fuchs continuou a insistir, apesar das vaias irônicas de seus companheiros. — Mantêm o sangue fluindo.
— Para todos os lugares, menos para o seu cérebro — Palmer brincou.
Garry não conseguiu encontrar um motivo verdadeiro para pedir o biólogo para parar. Havia pouco entretenimento no acampamento. Se Fuchs queria divertir-se tentando congelar até a morte todas as manhãs, bem, isso era sua prerrogativa.
A única concessão à realidade que o biólogo assistente fez, foi a substituição por botas de inverno, ao invés dos sapatos de corrida. Elas diminuíam o ritmo, não o seu entusiasmo.
Parou ofegante, a respiração congelando na frente de seu rosto. O ar quente passava por um tubo de ventilação nas proximidades. Ele estava de pé sobre a cozinha. A maioria das estruturas permanentes do campo estavam enterradas sob a neve, acima do solo congelado. As escadas desciam para o interior da base.
Fuchs destravou a entrada do telhado, olhou ao redor e em seguida desceu escada abaixo. O corredor estava vazio, ninguém estava observando-o. Assumiu uma pose confiante.
— Mergulhar, mergulhar! — murmurou fazendo sons de alarme e começou a descer a escada rapidamente, puxando a escotilha atrás dele.
Seguiu o corredor em direção ao complexo central. À sua direita, viu Clark saindo de uma das salas de abastecimento, empurrando um carrinho de mão cheio com o que pareciam seixos marrons.
O adestrador de cães acenou alegremente para o biólogo,deixando alimento seco em seu rastro.
O canil subterrâneo era perto.
Enquanto Fuchs sumia na distância, Clark destravou a porta do canil. Rolou o carrinho de mão para dentro, sete cães começaram a pular em suas pernas, chutando o alimento seco em todas as direções. Eles latiam ansiosamente.



Os cães de trenó tinham péssimos modos à mesa. Comeriam tudo se deixasse e ele precisava mostrar-se no papel dominante. Às vezes Nauls dava restos de cozinha e Clark misturava com a comida seca. As coisas realmente eram barulhentas no canil.
— Acalmem-se, vão com calma!  — Gritou para eles. — Deus, que bando de cachorros famintos!
Ele os inspecionados certificando-se de que não havia sinais de infecção ou doença, verificando os dentes se haviam quebras ou placa acumulada.
Os homens com quem trabalhava eram ok, mas seus cães eram melhores. Sempre carinhosos, faziam seu trabalho sem hesitação quando necessário, e raramente discutiam com ele. Em contrapartida, os cães de trenó tinham grande respeito por Clark. Eles pensavam nele como sendo um dos seus.
Ele era o cão líder.
Além do que, era ele que trazia a comida.

A seção de armazenamento, que guardava os tanques de combustível, era mais antiga do que o resto das instalações.
Os suportes de madeira e metal que sustentavam o telhado estavam começando a parecer frágeis. A Antártica colocava pressão sobre metal e madeira assim como o fazia sobre os homens que tinham que sobreviver lá.
Blocos de tubos e de concreto foram empilhados ordenadamente nas proximidades. O concreto era especialmente, projetado para suportar o frio sem rachaduras. Os blocos tinham ranhuras para que pudessem ser encaixados sem argamassa.
Portas seladas separavam outras salas menores cheias de equipamentos eletrônicos reservas, material de canalização, tudo duplicado. Não havia loja de ferragens a uma ou duas quadras da base 31. Os homens tinham seis meses de inverno polar à frente deles. Tinham que estar prontos para substituir qualquer coisa que quebrasse sem ajuda externa.
 Childs cantarolava para si mesmo quando entrou na área de armazenamento principal. Parou em frente a uma porta que estava perto dos enormes tanques de combustível horizontais. Havia seis fechaduras de vários tipos na porta. Algumas necessitavam de uma combinação sequencial de números, outras de chaves, e uma de um cartão magnético. Ele abriu cuidadosamente cada uma delas.
O pequeno quarto atrás da porta estava excepcionalmente quente. O calor fluía de um pequeno aquecedor. Lâmpadas fluorescentes brilhantes que tornavam ligeiramente arroxeadas as vigas do teto. O quarto cheirava como as terras agrícolas de Wisconsin e a costa de Mendocino
Childs sorriu paternalmente enquanto inspecionava as fileiras de plantas que cresciam nos tanques hidropônicos. Elas tinham folhas verdes estreitas com bordas serrilhadas. Algumas eram quase tão altas quanto o mecânico.
Ele conversou com elas e acrescentou nutrientes dos tanques de metal, despejando o material de uma jarra de plástico.
— Como vão hoje meus irmãos e minhas irmãs? Parece que todos estão muito bem.
Ajoelhou-se para verificar os medidores que monitoravam a umidade do solo e pH, verificado o termômetro na parede e então ajustou o controle de calor ligeiramente. O zumbido do aquecedor aumentou, aquecendo o rosto do mecânico. Pouca luz vinha através da pequena claraboia.
Virando-se para um gravador K7, selecionou uma fita da pilha ao lado dele e ligou.
— O que as minhas filhas acham de um bom Al Green?
Apertou o botão ‘ON’.
Uma voz alta, em lamento, encheu a pequena sala.
Que desperdício, que aquele homem passasse os dias em pregação, Childs pensou tristemente. Lembrou-se de vê-lo em Los Angeles no Centro de Música, no Dorothy Chandler Pavilion, cantando no mesmo palco normalmente ocupado pela filarmônica.
Mas, bem, quando você recebe o chamado, você tem que responder.
Mas como cantava aquele homem. Que pena.
Um novo som chegou até ele acima da música, um arfar constante.
Ele virou-se para o novo visitante, o cão que os noruegueses loucos tinham tentado matar.
Um pensamento fez franzir a testa do mecânico, o animal inclinou a cabeça para um lado e olhou-o queixoso. A bandagem se fora de seu quadril. Provavelmente raspara contra uma parede ou peça de mobiliário, Childs pensou. Cães tinha uma tendência a fazer coisas estúpidas desse tipo. Eles também tinham uma tendência a fazer outra coisa, é por isso que o mecânico estava franzindo a testa. Avançou em direção ao cão, fazendo movimentos com as duas mãos.
— Vamos, saia daqui vira-lata! Não vai fazer nada aqui! Fora! — Deu um soco no focinho molhado.
O cão olhou-o com ar de reprovação, então se virou e correu para fora. Childs voltou-se para seu jardim, resmungando baixinho.
— Onde já se viu... fazer xixi em meus bebês. Droga de cachorros, você não se livra da sujeira deles mesmo aqui!
Fechou a porta cuidadosamente atrás dele e inclinou-se sobre as plantas florescentes.
Esse é o meu bebê.
Al Green iniciava outra canção.
— Vão ter crescido muito em breve. Verdes e saudáveis. Então vamos ter uma bela fumaça...

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