domingo, 1 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 5)



O olhar de Blair estava fixo no documento que estava carregando enquanto passeava pelo corredor. Preocupado, ele quase caiu quando seus pés se enroscaram em algo invisível.
— Mas o que...? — Inclinou-se e pegou um pedaço rasgado de bandagem manchada.— Que merda! — Murmurou olhando em volta, procurando seu dono. Mas o husky não estava por perto.
Tenho que falar com Clark,  pensou e retomou sua caminhada. O cachorro vai sangrar por todo lugar. Contudo, não estava muito preocupado. Era improvável que a ferida exposta fosse infeccionar. Germes não duram muito tempo no interior do complexo, e aqueles que se fixam aos homens morriam rapidamente, uma vez expostos ao exterior.
A Antártida era um lugar difícil de ficar doente, desde que você tivesse cuidado para não pegar um resfriado.
 
O gerador gemia no andar mais abaixo, mantendo homens e equipamentos em condições de funcionamento, lutando contra o frio, devido a necessidade constante de luz e calor.
Palmer estava verificando seus mecanismos, tentando localizar possíveis pontos de falha antes que ocorressem. Manutenção de rotina.
Um gemido o fez franzir a testa, até que reconheceu o som que vinha de fora.
Helicóptero!




Um estrondo soou e as chaves de fenda foram ao chão, quando a caixa de ferramentas bateu contra as tábuas.
O husky saltou para a mesa de trabalho de Palmer. O cão estava ofegante em cima da mesa, tentando olhar para fora da janela estreita, as patas dianteiras descansando na borda. Palmer amaldiçoou baixinho e ficou de joelhos, começando a recolher suas ferramentas, repondo-as cuidadosamente na caixa. Gritou em direção à porta aberta.
— Ei, Clark! Será que você pode prender no canil este cão maldito? Se ele está saudável o suficiente para saltar em cima das mesas, com certeza é saudável o suficiente para se juntar aos seus primos!
Como não teve resposta, pegou uma chave e começou a bater contra um cano que ia em direção ao canil.
— Clark!




Arranhando ainda a janela, o cão ignorou-o, vendo o helicóptero aproximar-se.
O helicóptero balançou vacilante ao vento, finalmente aquietou-se firme perto do trator de neve. Childs e Sanders estavam esperando por ele e assim que o vup-vup constante dos rotores tinha abrandado suficientemente foram correndo em direção a ele, inclinando-se contra o vento, puxando os cabos de atracação. Childs prendeu um gancho à cauda, enquanto Sanders fez o mesmo perto ao cockpit. Macready rapidamente já estava ajudando-os.



— O que vocês acharam? — Childs gritou para ele através do vendaval. O vento estava aumentando novamente e mordia as bochechas expostas no rosto do mecânico.
Macready pareceu não ouvi-lo. Childs ocupava-se com outro cabo. Ele gritou no vento enquanto se aproximava do piloto.
— Ei, Mac. Perguntei o que...
Parou de insistir quando Macready virou-se para encará-lo. A expressão angustiada do piloto era eloquente o bastante para Childs.
— Mais tarde — Macready murmurou.
Childs olhou para o rosto de seu amigo e apenas balançou a cabeça.



A equipe de ciência lotara as dependências de Garry. O quarto do gerente da estação era um pouco maior do que dos outros, mas a atmosfera ainda era claustrofóbica.
Havia uma grande preocupação inicial de que a fita de vídeo norueguesa não iria servir nos aparelhos da estação, por causa da diferença de padrões usados por estações norte-americanas e europeias. A preocupação acabara por ser bem fundamentada.
Na primeira tentativa a tela apresentou somente estática visual. Mas Sanders foi capaz de copiar a fita através do equipamento de vídeo da estação e assim possibilitar que a aparelhagem conseguisse ler.
O resultado não ficou perfeito, mas ao menos era visível. A imagem era granulada e fraca e não havia nenhum som. Ninguém comentou sobre a qualidade do vídeo.
Quem quer que tivesse operado a câmera de vídeo não era Victor Seastrom, o pioneiro cineasta sueco. A imagem inclinava, ocasionalmente e turva por exposição excessiva e escurecida. Não que eles dessem grande importância.
Haviam várias cenas da equipe norueguesa no trabalho, uma longa sequência deles jogando futebol no gelo, do cozinheiro preparando as refeições, homens jogando xadrez, coisas do dia-a-dia. O que significava dizer, longos trechos de fita chatos de se ver.



Norris mal prestava atenção ao monitor. Estava dedicando sua atenção ao grosso maço de notas que Dr. Copper havia trazido ao acampamento.
— Parece que eles estavam passando muito tempo em um lugar a seis quilômetros a nordeste do acampamento.
Blair olhou interrogativamente para ele. — E quando você começou a ler norueguês?
Norris lançou-lhe um sorriso. — No mesmo instante que eu dominei o grego — bateu na parte de cima do papel. — Há mapas aqui. As anotações são em norueguês, mas as características topográficas, uma linha de contorno é uma linha de contorno em qualquer idioma. E, claro, a matemática é a mesma, uma vez que você converte as métricas.
— Ok, ok— disse Blair cedendo.
— Qualquer indicação no que eles estavam envolvidos? — Perguntou o gerente.
Macready estava brincando com o monitor de vídeo, tentando melhorar a imagem e falhando miseravelmente.
— Muitos manuais e fotos espalhadas por todo o lugar — disse Norris. — Indicações de perfuração no gelo, sismologia, glaciologia, biologia microbiana. A mesma merda que fazemos.
Fragmentos de uma canção barulhenta explodiram repentina do alto-falante do monitor, quando a cena mudou de alguém trabalhando em uma bancada de laboratório para a imagem instável de um bando de noruegueses nus segurando uma placa em frente de suas genitais do lado de fora de seu acampamento em um ambiente super-congelante. Vários artefatos comuns a todas as culturas contemporâneas, embora a marca de cerveja fosse desconhecida para os espectadores. Enfim, não continha nada de valor científico.
Bennings afastou-se da TV, murmurando com desgosto. — Quanto mais dessa porcaria veremos?
— Se Sanders estiver certo — Macready disse — cerca de nove horas mais.
O meteorologista balançou a cabeça. Estava quente e lotado no quarto e ele tinha um trabalho importante a fazer.
— Não vamos conseguir coisa alguma com isso.
Cooper assentiu relutante. — Você provavelmente está certo. Maníacos não costumam pensar em filmar a si mesmos, enquanto estão enlouquecendo.
— Tudo bem, Mac, basta!
O piloto desligou os aparelhos e desconectou os cabos. Garry olhou de volta para o médico.
— Vocês dois encontraram mais alguma coisa?
— Talvez — respondeu Cooper e acenou para Macready, que tirou o pequeno toca-fitas do bolso e entregou-o ao médico.
— Macready e eu estávamos ouvindo alguns desses cassetes no voo de volta do acampamento norueguês. Eu gostaria que o resto dos senhores ouvisse este em particular.
Premiu o ‘PLAY’.
Uma voz escandinava encheu a sala. Ele era plana, calma, metódica; tediosa, até mesmo em um idioma diferente.
Norris soltou um suspiro entediado. — Parece que o equivalente verbal da fita que estivemos vendo. Horas de anotações e um disparate.
— O que você quer de nós? — Bennings queria saber.
Macready gesticulou para serem pacientes. — Basta ouvir. Primeiro pensamos o mesmo que vocês...
Cooper apertou o controle de avanço rápido, de olho no contador de fita. Em cinco-zero-um ele parou a cassete e premiu ‘PLAY’ uma segunda vez.
A voz calma foi ouvida novamente.
Então algo soou alto e feio, como se uma explosão distante tivesse ocorrido. O microfone omnidirecional interno do aparelho não era grande coisa, mas não havia dúvida quanto ao som. Em seguida à explosão, houve gritos, alguns perto, alguns distantes. Então ecos de confusão, de equipamento que está sendo destruído, de vidro quebrando. Passos reverberando alto, desaparecendo à medida que seus donos se afastavam do gravador.
O volume intensificou-se, como se o gravador tivesse sido atingido ou jogado contra algo duro. Mais passos batendo nas pranchas de madeira. Um murmúrio violento subiu acima da cacofonia geral, em seguida, um assobio alto como uma caldeira de vapor sendo desligada. Homens gritavam em norueguês.
Em seguida um grito penetrante que fez o cabelo no pescoço de Norris ficar ereto. Várias explosões próximas, como o disparo de canhão na distância, misturado com os gritos de desesperados, homens em pânico.
Cooper observou as expressões sombrias nos rostos das pessoas se reuniram em torno dele. Não sentiu nenhuma satisfação do efeito da fita tinha sobre eles. Logo o som se foi. A fita tinha chegado ao seu fim.
— Só isso?  — Fuchs perguntou suavemente.
Cooper balançou a cabeça.
— Não. É um gravador com retrocesso automático. Ela continua assim desde o início do segundo lado por um bom tempo.
Deixou que eles pensassem, antes de perguntar: — O que os senhores acham disso? Nem Macready, nem eu, conseguimos entender.
— Pode ser qualquer coisa — Garry sugeriu. — Homens em isolamento estão sujeitos a pressões que os psicólogos nem imaginam, pode ter sido uma discussão que perdeu o controle, como uma bola de neve. Uma discussão sobre uma pontuação de futebol, a posse de uma revista...não temos como saber. Ou outra coisa também — acrescentou especulativamente. — Esses caras não estavam aqui há muito tempo. Normalmente diferenças psicológicas graves entre equipes aparecem no primeiro par de meses ou esperaram até o último dia.
— Sim — concordou Cooper — mas diferenças deste gênero não costumam terminar em homicídio.
— Talvez não fosse apenas mental — Norris arriscou. — Talvez todo o acampamento foi afetado por outra causa. Algo que comeram, talvez—  olhou para Cooper. — Pode ter sido isso, doutor? Poderia algum tipo de intoxicação alimentar fazê-los enlouquecer?
O médico refletia sobre a teoria de Norris.
— Não é impossível.
Seus olhos voltaram para o gravador em repouso. Lembrou os gritos, a sensação de pânico gravado.
— Muitos homens brincar com alucinógenos leves durante seus passeios de serviço. É um bom momento para experimentar. Não há ninguém por perto para prendê-los. Nós mesmos fazemos. Veja Palmer, por exemplo.
Fuchs defendeu o piloto ausente.
— Palmer é esquisito por conta dos ácidos que usou na década de sessenta. Hoje ele não toca em nada mais forte do que marijuana. Pelo menos até onde eu sei.
— Eu sei que não — disse o médico calmamente. — Seus exames mensais mostram isso. Nenhum de nós mexe com coisas perigosas. Mas só porque nós não usamos não significa que estes noruegueses não pegaram pesado. Se você tiver tempo e disposição e um pouco de conhecimento de química, pode criar todo tipo de coisas no laboratório.
— Como o quê? — Perguntou Norris com um entusiasmo fingido. Ele tirou algumas risadas de seus vizinhos.
Cooper sorriu com eles, mas só por um momento. Seu semblante sombrio rapidamente se transformou novamente.
— Tem mais uma coisa que quero que vocês vejam.
Saiu dos aposentos de Garry, com os outros se arrastando curiosamente atrás.
A mesa cirúrgica portátil brilhava no meio da enfermaria. Macready e Cooper foram para um canto e levantaram um saco plástico bastante pesado. O conteúdo foi despejado sem cerimônia sobre a mesa.
— Além dos documentos, das fitas de vídeo e cassetes, também encontramos isso.




A bagunça em cima da mesa tinha sido um homem. Fora gravemente queimado e quebrado, mas não foi isso que chamou a atenção imediata de todos. O que restava das calças e sapatos, rasgados longitudinalmente e divididos em pedaços, como se as pernas e os pés de repente crescessem, estourando as costuras por dentro. A parte superior do tronco era uma massa deformada quase irreconhecível.
Não haviam braços visíveis, apenas pedaços de gosma escura e carne flanqueando a região do peito. A cabeça era estranhamente desfigurada e parecia maior do que o normal. Sua localização era muito mais desconcertante do que a sua aparência. Parecia estar crescendo para fora do estômago. Não havia nada acima dos ombros, ou onde os ombros deveriam estar.
Apêndices que se assemelhavam a peculiares tendões soltos estavam envolvidos em torno da carcaça, como uma corda branca.
As extremidades presas em ângulos estranhos, duro como o plástico. Lembravam Cooper de braços de vinha escalando as paredes de uma estufa. Uma circulava em torno do pé esquerdo do corpo. Outra embrulhada em volta do crânio extraviado.
Espalhados e coloridos em meio ao pântano da área do peito estavam rasgados fragmentos de uma camisa.
Fuchs se afastou por um momento, mas ninguém vomitou. Nenhum deles, nem mesmo Garry, normalmente imperturbável, deixou de ser afetado pelo espetáculo grotesco-viscoso, mas o cadáver estava muito longe da humanidade para afetá-los intimamente. Era um espécime, como as amostras de rochas de Norris ou tubos que Blair enchia com bactérias. Era bizarro demais, muito distorcida para se assemelhar com qualquer um dos sorridentes beberrões de cerveja que tinham visto nas fotografias recuperadas.





— Eu sei que está muito queimado — Cooper finalmente murmurou no silêncio de horror. — Mas um incêndio poderia ter feito tudo isso? Em altas temperaturas os corpos humanos simplesmente queimam. Eles não...derretem.
Enojado, mas fascinado, Blair cutucou os tendões de aparência asfáltica. Um líquido manchou seus dedos e ele rapidamente limpou-os na perna da calça.
— Curioso, não? — Cooper perguntou.
Blair fez uma careta. — Não sei o que dizer. Nunca vi nada como isso, e espero nunca ver de novo.
— Eu gostaria que você e Fuchs me ajudassem com as autópsias deste, e do homem em que Garry teve que atirar esta manhã.
— Se você insiste, doutor — o biólogo sênior parecia infeliz. — Mas não sou voluntário.
— Não precisa ser voluntário — Garry informou secamente. — Eu vou torná-lo oficial.
Acenou com a cabeça em direção à carcaça. — Este é o seu departamento.
— Eu não estou certo de que este é o departamento de alguém — o biólogo respondeu ainda limpando os dedos em suas calças.
O material tinha a maldita tenacidade de uma cola preta. Virou-se para começar os preparativos necessários.
Havia auxiliado Cooper antes, o posto 31 não era grande o suficiente para poder ter uma enfermeira, mas dessa vez ele se sentia doente.
— Se serve de consolo, Blair — disse o médico — também não estou ansioso por isso. Mas tem que ser feito.
— Sim, eu sei.
Blair estava removendo potes de um armário. — Então vamos parar de falar sobre isso e fazê-lo. Quanto mais cedo começar, mais cedo  vamos acabar com isso.
Fuchs foi o único que se ofereceu para ajudar. Ele estava examinando o corpo com cuidado, com um crescente interesse substituindo o seu mal-estar inicial.


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