sexta-feira, 20 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 22)




O corpo de Norris arqueou na mesa, quase jogando o médico longe.
Como um caubói montando um touro, saltando loucamente no corpo arfante do geofísico.

Um som crepitante encheu a sala, e não era do desfibrilador. O esterno de Norris rachou como um lago no Saara. A pele descascada em tiras carnudas. A máscara de oxigênio foi atirada ao teto, e Palmer recuou, fugindo do cadáver que se contorcia.
Um som pavoroso saiu da boca de Norris, mas não era produzido pelo homem que fora conhecido como Norris. Era um horrível miado de raiva.
Cooper foi atirado para o lado, caindo duro no chão. Ninguém se moveu para lhe dar uma mão. Estavam todos hipnotizados pela transformação repentina do geofísico.
Sanders tinha abandonado o desfibrilador e apertava-se contra a parede mais próxima.

— Madre de dios...

A coisa que tinha sido Norris estava mudando na frente de seus olhos e não igual como ocorrera no canil escuro, ou naquela noite horrível no gelo distante. As luzes da enfermaria eram eficientes. Claramente eles puderam ver cada detalhe da perniciosa metamorfose.
As roupas se rasgaram, a matéria orgânica inchou vencendo a contenção do tecido de poliéster. Um sapato partiu-se como um melão. Algo único tornou-se visível de dentro da expansão maleável, apêndices rapidamente começaram a tomar forma, uma variedade horrível de ganchos e entumecidos órgãos nodoso, sem nada semelhante em desenvolvimento a evolução terrena.
Por reflexo, Macready tinha colocado a dinamite no chão, empunhando o lança-chamas, empurrou os outros para os lados.
— Saiam da minha frente!
Um rio de fogo jorrou, dançando em cima da mesa enfermaria.



O corpo parecia incapaz de esquivar-se, talvez por que a descarga do desfibrilador inibira suas habilidades.
Macready não saberia dizer, e não dava a mínima. O fogo se espalhou pela mesa, queimando tudo.
Chiados e assobios, e os restos mal reconhecíveis do corpo de Norris foram ao chão da enfermaria.
Macready recuou um passo, continuou a apontar o bico na direção deles.
De alguma forma, a massa flamejante indistinta de protoplasma conseguira endireitar-se, e elevou-se por um momento, depois se virou e cambaleou para a porta com coisas que não eram pernas. Lama preta e amarela explodiu através das calças rasgadas e esguichou por todo o chão. Macready metodicamente largou fogo sobre ela.
A monstruosidade cambaleou para trás e caiu sobre o desfibrilador, ficando ali, contorcendo-se, a horrível vida alienígena, queimando furiosamente.
Os homens observavam Mac, enquanto derretia a massa fundida de protoplasma. A queima era intensa e lembrou Macready, a combustão de magnésio, ou bombas de fósforo branco, usadas ocasionalmente pelos militares no Vietnã.
Extintores de incêndio foram retirados de seus lugares e colocados em ação. O desfibrilador chamuscado e enegrecido tinha as placas de plástico derretidas. A mesa da enfermaria não estava em melhor condição.
Enquanto apagavam o fogo, tinham que evitar as minúsculas poças negras que ainda queimavam ao chão, torcendo-se agitadas em agonia. Também morreriam eventualmente, seus gemidos desaparecendo em silêncio.



Todos os olhos se voltaram para Macready, que estava novamente de posse da caixa de dinamite. A chama tinha se extinguido, mas ainda empunha o bico, pronto para usá-lo.
— Todo mundo para a sala de recreação! — Disse quebrando o silêncio. — Ninguém sai da vista de ninguém, entenderam? Tive uma ideia.
Arrastaram-se para fora. Ninguém disse nada ou se opôs à ordem de Macready.
A raiva inicial para com o piloto tinha sido substituída pelo medo, após o desmascaramento de Norris.
Macready esperou até que todos passassem da enfermaria para a sala de recreação. Então, mantendo sempre as costas contra uma parede, colocou a caixa de dinamite no chão, e usou a mão livre para puxar a Magnum de Garry do bolso da jaqueta.
— O que você tem em mente, Macready? — Clark perguntou em voz alta. — É melhor que seja bom!
— Não é nada muito elaborado — o piloto sorriu para ele. — Só um pequeno teste. Às vezes, a experiência pode ser mais esclarecedora do que um PhD.


— Do que diabos você está falando, Macready? — Cooper murmurou desconsoladamente.
— Você vai ver, Doutor, assim como todo mundo.
Cuidadosamente ajustou a abertura do bico que estava segurando, definindo-o para uma chama curta.
— Que tipo de teste? — Perguntou Palmer. Estava subjugado após o episódio na enfermaria. Uma espécie de desespero tinha se apoderado dos homens. Não era desesperança. Não ainda. Era mais uma sensação de ter finalmente perdido todo o controle sobre suas chances de sobrevivência, que seu destino estava nas mãos de algo que não era humano.
Só Macready parecia ainda desafiador e inconformado. Dada a suspeita ainda pairando sobre ele, isso só deixava os outros mais desanimados do que nunca.
— Que tipo de teste?" —  Repetiu Mac severamente. — Tenho certeza que alguns de vocês já imaginam.
Havia muita corda na sala, de comprimento variável, que tinha sido usada para manter juntos Clark, Garry e Cooper. Macready chutou o carretel até parar aos pés do homem mais jovem.
— Palmer, você e Copper, amarrem todos! Bem apertado. Estarei observando!
— Para quê?
Childs pensou em pular no piloto, mas a proximidade da dinamite com o lança-chamas o contiveram. Alguém iria ter que fazer algo muito em breve.
— Para a sua saúde — o piloto disse sem querer soar sarcástico.
Garry olhou para os outros. — Vamos pegá-lo! Ele não vai nos explodir.
— Quem disse que não vou?
Childs deu um passo adiante. — Você não vai me amarrar.
— Então eu vou ter que te matar.
Childs olhou de volta para o outro homem, balançando a cabeça. — Então me mate.
Macready levantou o cano da.44, apontando diretamente para a testa de Childs. — Eu não quero fazer isso.
O clique do martelo da .44 sendo puxado soou alto na sala.
— Acho que quer sim — disse calmamente Childs.
O piloto hesitou, trouxe o dedo ao gatilho. Houve um movimento no canto do olho. Um instante, seu cérebro registrou simultaneamente vários eventos.
Clark, brilho de metal, bisturi...
Mac girou e disparou duas vezes. A força do poderoso Magnum fez o adestrador recuar com o impacto.
Clark agarrou a si mesmo, ricocheteou numa cadeira próxima e caiu inerte.
Quase tão rapidamente, Macready virou a arma contra o resto.
A chama pairava perigosamente sobre a dinamite.
— Não!
Alguns homens tinham dado passos na direção dele.
— Palmer, comece a amarrá-los!
O assistente de piloto pegou a corda e depois de um olhar incrédulo começou a trabalhar. Era um processo lento e ele pedia desculpas a cada um deles, enquanto fazia nós apertados. Cooper fazia o mesmo, mas em silêncio.
— Concluído — os dois homens finalmente anunciaram.
— Ainda não.
Com um gesto da Magnum, Macready disse. — Amarre-se Cooper, e depois Clark.
Palmer fez uma careta para o adestrador de cães. Clark permanecia onde  tinha caído, sangrando.
— Pra quê? Ele está morto!
Macready balançou a cabeça.
— Você esquece rápido, não é, Palmer? Norris parecia morto também. Balas não matam essas coisas, somente os incomodam. Amarre-o!
Quando finalmente a tarefa foi concluída por Palmer, Mas fez um gesto e sorriu para os outros.
— Não tentem nada. Voltamos já! Em menos de uma hora.
Os dois homens foram embora por alguns minutos. Na volta Palmer trouxe mais uma caixa de dinamite, colocando-a sobre a mesa. Ficou aguardando novas ordens.
— Ok, agora desamarre o doutor.
Palmer o fez. O doutor levantou-se, esfregando os pulsos onde a corda tinha machucado.
— Desculpe, Doutor, acho que você está limpo. Você estragou o disfarce de Norris, fez a coisa se revelar. Não acho que você teria usado o desfibrilador se fosse um deles. Mas não estou cem por cento certo disso. Ainda não.
Cooper sorriu palidamente, aproximou-se e olhou com curiosidade para a pequena caixa que o piloto tinha colocado ao lado das caixas de explosivo. Enquanto olhava, Mac tirou um bico de Bunsen da caixa e seu tubo de borracha longo, ligado a uma saída de gás. Usou um maçarico para acender o queimador. Sanders fechou os olhos pois o fogo estava perto da dinamite. Macready parecia não se importar.
Deixando de lado a Magnum, usou um canivete para cortar a extremidade de um fio elétrico. Sem o isolamento, o fio ficou exposto. Isso foi feito, ainda mantendo o maçarico debaixo de um braço, deu um olhar atento ao resto deles.
Instruiu Cooper para amarrar Palmer.
— Nós deveríamos ter dado cabo dele! — Childs estava zangado consigo mesmo.
— Talvez — murmurou Sanders. — Agora é tarde demais!
Macready terminou seu trabalho. O bico de Bunsen assobiou.
— O que você está fazendo, Mac? — Palmer parecia desconfortável. Provavelmente as cordas estavam machucando lhe.
— Vamos tirar um pouco de sangue de todo mundo.
Nauls soltou uma forte risada sem graça. — Certo. E o que você vai fazer com ele, beber?
Macready ignorou-o.
— Observando o que aconteceu com Norris, mais o que eu me lembro da noite no gelo, quando uma dessas coisas matou Bennings, tive a impressão de que todas as partes desses desgraçados sejam um só. Cada qual é autossuficiente, pode agir em caso de necessidade, independentemente. Mas é só animal. Quando um homem sangra, é apenas perda de líquidos, mas o sangue de uma destas coisas não está adormecido... Lembrem o que Blair disse sobre cada célula sendo alterada de forma independente? Cada uma se torna uma forma de vida única, com o habitual desejo de proteger-se. Lembrem-se daqueles pequenos pedaços de Norris, como se mexiam e faziam barulho? Quando atacados, pareciam que até mesmo o menor fragmento de uma dessas coisas, tentava sobreviver da melhor maneira possível. Mesmo uma pequena gota de seu sangue. Claro, sem um sistema nervoso superior, sem cérebro para suprimir o instinto natural, as células têm de agir instintivamente, de forma inteligente para se proteger do congelamento, ou da incineração. Ou de uma agulha quente, por exemplo.



Virou-se para enfrentar o médico.
— Cooper, você fará as honras da casa.
— Você disse que achava que eu estava limpo, por causa do que tinha acontecido na enfermaria.
Macready acenou afirmativamente. — Sei o que disse. Eu quero ter certeza.
Cooper observou que o bico do maçarico tinha sido focado em sua barriga desde que amarrara Palmer, mas não disse nada sobre isso. Obviamente Macready não tinha intenção de confiar nele, até ter executado seu pequeno teste. Não havia ponto em discutir com ele.
— Tudo bem, vou fazer o que você pedir, Mac.
Pegou o bisturi que Clark deixara cair e foi até uma cadeira.
— Desculpe, Sanders. Não tive escolha.
— Tudo bem, Doutor.
O operador fez uma careta quando Cooper pressionou suavemente a lâmina contra seu dedo indicador. O sangue pingou na placa de Petri, que o médico colocara sob o corte. Os outros olhavam.
— Agora os outros — disse Macready impaciente.
A caixa que ele tinha trazido com o bico de Bunsen também continha uma placa para todos na sala.
Cooper moveu-se entre eles, tirando uma pequena quantidade de sangue de cada e retornando as amostras para a mesa onde Mac rotulava cada um com uma caneta de marcação.
O doutor deixara Garry para o final.  — Esse é o último.
— Não é bem assim — disse Macready deslizando uma placa para o médico. — Agora você!
Cooper gentilmente cortou o polegar e observou enquanto o sangue escorria no vidro.
— Me dê aqui — Macready ordenou sem paciência. O médico fez como ordenado.
— Agora um passo para trás. Fique lá com os outros!
O suor começava a escorrer de sua testa. Quase tropeçou nos pés de Childs.
— E finalmente...
Macready utilizou o bisturi em seu próprio polegar, recolhendo o sangue em um último recipiente. Sem esperar, colocou o fio de cobre nu sob a chama do queimador de Bunsen.


Os homens observavam atentamente enquanto a ponta do fio começava a aquecer. Macready segurava-o firme, na parte mais azul da chama, ainda segurando o lança-chamas na direção do médico. Ambos estavam transpirando bastante agora.
Quando a extremidade ficou incandescente, o piloto levou o arame para a placa mais próxima, que continha a amostra de sangue de Cooper. Seus olhos estavam olhando fixo o médico e o dedo estava tenso no gatilho.
Um silvo suave veio da placa de Petri.
Macready reaqueceu o fio e repetiu a experiência. Novamente o assobio, e foi tudo.
O sangue no prato tinha reagido normalmente. Ambos soltaram um suspiro de alívio.
— Acho que você está ok.
O alívio de Cooper era palpável e sua resposta foi bem humorada. — Muito obrigado.
— Como eu disse — Macready reiterou. — Não acho que você teria usado o desfibrilador no corpo de Norris, se fosse um deles. 
O homem mais velho deu um sorriso fraco.
— É bom saber com certeza que alguém é nada mais do que é suposto ser.
Mac entregou-lhe um maçarico. — Observe-os. E não se esqueça da dinamite.
Cooper assentiu resolutamente, enquanto Macready mudou-se para a borda da mesa, onde todos pudessem vê-lo claramente.
— Agora eu vou mostrar o que eu já sei, e o que vocês não conseguem acreditar.
Aqueceu o fio e enfiou a ponta na amostra de seu sangue. O mesmo assobio inofensivo.
 Tal como aconteceu com Cooper, repetiu a ação. O mesmo resultado.
Childs virou-se, incapaz de encarar o olhar do piloto.
— O que não quer dizer nada. É tudo besteira!
— É? Veremos. — Estudou as amostras e escolheu outra. — Vamos tentar Clark.
Aqueceu o fio de novo, colocou na lâmina. Um ‘xiii’ fraco... e nada mais.
Childs olhou para ele.
— Então, de acordo com suas descobertas, isso significa que Clark era humano, certo? Isso faz de você um assassino.
Macready olhou para o grupo.
— Palmer agora.
Puxou a amostra respectiva e colocar o fio na chama do queimador.
Garry estava mexendo-se desconfortavelmente no sofá. Como se sofrendo com cólicas.
— É pura bobagem, como Childs diz. Não prova nada!
Macready deu ao gerente um sorriso desagradável.
— Achei que você ia se sentir assim, Garry. Você era o único que poderia ter chegado ao sangue na enfermaria. Deixaremos você para o final.
Colocou o fio na placa com o sangue de Palmer.

Um grito inesperado e terrível encheu a sala.

O grito veio do líquido vermelho na placa de Petri, que agora estava se contorcendo e rastejando até as bordas de vidro...


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