domingo, 1 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 2)



Apesar de familiaridade com os procedimentos e da repetição constante, Norris levou vários minutos para preparar-se para ir lá fora. Avançando pesadamente sob 30 quilos de roupa extra, tomou caminho da porta. O vento martelou seu rosto quando ele puxou a porta externa. Instintivamente, separou os lábios de modo que a saliva na boca não congelasse-os juntos. Partículas de gelo cobriram seus óculos de neve.
Talvez Bennings estivesse certo. Parecia que conforme subia as escadas, que o vento tinha diminuido um pouco. A sensação térmica variava rapidamente, de fatal para meramente intimidante. É claro que eles ainda não tinham experimentado uma tempestade de inverno de verdade. Eles ainda estavam se aquecendo no ameno outono.
Seu destino era um barracão cem metros distante, conectado por meio de cordas de guia e um passadiço de madeira. Cem metros a pé na Antártica pareciam uma centena de quilômetros, mesmo quando o caminhante era abençoado com um destino visível.
Da escada do edifício central, começou a seguir ao longo da passarela, com as mãos enluvadas deslizando facilmente na aspereza familiar da corda-guia. Alguns pingentes pendiam dela e interrompiam o deslizar dos dedos. Utilizava a corda não só para orientar a si mesmo, mas para puxar seu peso. Aqui os braços tinham que ajudar as pernas, que tinham uma tendência a entrar em greve, mesmo após uma breve exposição ao frio intenso.

Era confortavelmente quente dentro do barracão de paredes duplas e com aquecimento elétrico. Macready mantinha a temperatura tão tropical quanto o regulamento permitia. Ele odiava o frio, odiava ainda mais do que Sanders. Quanto a solidão, ele não se importava. O fator atenuante era o pagamento.
Pegou alguns cubos de gelo do pequeno frigorífico e deixou-os cair no copo. O líquido âmbar altamente alcóolico agitou-se em torno dos cubos.


— Bispo para cavalo quatro —  disse uma voz calma que não era dele.
Tomou um gole do uísque e caminhou até a mesa de jogo. O grande, alegre e colorido sombreiro Vera Cruz pendurado em seu pescoço, balançava às suas costas. Inclinou-se para evitar a única lâmpada pendurada no teto.
O espaço interno era limitado, individual e decorado com o descaso contemporâneo. Garry chamava de chiqueiro. Macready preferia a descrição "habitável". Era um ponto que o gerente da estação não incomodava. Macready fazia o seu trabalho. Geralmente.
Vários enormes cartazes de lugares quentes, davam vida ao interior. Nápoles, Rio de Janeiro, Jamaica, Acapulco, uma loira,  duas ruivas. Era quente o suficiente para fazer você suar.
O tabuleiro de xadrez eletrônico em cima da mesa era maior do que o modelo comum. Macready sentou-se e riu sobre a má jogada do adversário.
— Pobre filho da puta. Você está começando a se perder, não é?
Ele pensou por um momento e, em seguida fez seu movimento. A resposta da máquina foi imediata.
— Peão toma a rainha.
Peças eletronicamente manipuladas tremeram ligeiramente à medida que se arrastaram em linha.
O sorriso de Macready lentamente desapareceu enquanto ele examinava o novo alinhamento. Alguém estava batendo em sua porta. Ignorou o barulho enquanto meditava sobre seu próximo movimento, e finalmente digitou-o.
Novamente as peças moveram-se. — Torre para cavalo seis —  disse a voz implacável pelo alto-falante interno — Xeque.
As batidas estavam ficando insistentes. Os dentes de Macready cerrados, enquanto olhava para o tabuleiro.
Inclinou-se para frente e abriu uma pequena aba na lateral do tabuleiro de jogo. Despejou os restos de sua bebida em cima dos circuitos impressos. A máquina estalou e chiou em um flash de faíscas e um pouco de fumaça.
— Bispo três torre rainha cinco rei bispo dois peão seis sete peão peão oito nove peão peão pezzzzfissstt...
Macready escutou até a tagarelice cessar, então se levantou e cambaleou em direção à porta, murmurando enojado consigo mesmo.
—...bastardo ladrão... maldita programação... melhor pegar meu dinheiro de volta...
Cuidadosamente abriu a porta. O calor foi sugado por ela, em direção ao pólo sul. Norris empurrou e passou por ele em uma onda de neve, como uma rêmora branca.
— Estava se masturbando ou apenas de saco cheio? —  o geofísico rosnou, batendo-se para retirar a neve — Por que diabo você não  abriu?
Macready não disse nada, mas fez um gesto na direção da máquina ainda fumegando.
— Temos módulos de reposição para essas coisas?
— Como diabos eu vou saber? Pegue seu equipamento de voo!
O jogo de xadrez foi subitamente esquecido. Macready olhava para o visitante com súbita desconfiança.
— Para que?
— O que você acha?
— Oh, não, — e começou a recuar — de jeito nenhum. Sem chance...
— Garry disse...
— Eu não dou a mínima para o que Garry diz!
Lá fora, o vento uivava. Para Macready soava faminto.



Childs manuseava uma daquelas grandes tochas, mantendo-a perto de seu corpo enquanto derretia o gelo dos rotores do helicóptero e do capô do motor. De todos os trabalhos externos, este era um dos mais agradáveis. Pelo menos você poderia manter-se descongelado junto com o equipamento.
O vento uivava em torno dele enquanto trabalhava. Olhou para o céu. Apesar das garantias de Bennings, não invejava quem teria que pilotar o helicóptero. Ninguém, a não ser Cooper, insistia naquilo. Childs sorriu para si mesmo. O bode velho Cooper normalmente tem razão. Uma vez que ele propõe algo, nenhum dos outros machões podia voltar atrás sem fazer o papel de bobo.
Voltou sua atenção para o helicóptero quase degelado, derretendo a água congelada em seu trem de pouso.
Um pequeno grupo de homens fortemente vestidos se assemelhava a um grupo de ursos migrando através do corredor estreito que levava em direção ao heliporto. Já estavam começando a suar, apesar da roupa interior térmica de absorção especial. As roupas que usavam eram projetadas para serem confortáveis abaixo de zero, não acima.
O Dr. Copper carregava uma mochila médica. Era feita de metal e forrada de plástico de alto impacto e podia acomodar qualquer coisa, incluindo instrumentos de cirurgia portátil. Sua cor padrão era amarela, mas Cooper tinha pessoalmente, pintado-a de preto. Ele era um pouco tradicional neste aspecto.
Macready estudava um gráfico de voo impresso em uma folha de plástico, resmungando sem parar. Seu mecanismo mental já voava sobre a rota pretendida.
— Loucura... maldito louco... Eu não sei se posso encontrar este lugar mesmo em tempo claro...
— Pare de se queixar, Macready— Garry ordenou. — Quanto mais cedo chegar lá, mais cedo você está de volta.
— Se chegarmos! — bufou o piloto. — É contra os regulamentos subir nesta época do ano, eu não teria que voar de novo até a primavera. Vou registrar um protesto! O regulamento diz que eu não tenho que ir para cima neste clima!
— Dane-se o regulamento! — Copper disse a ele. — Os registros indicam seis caras nessa estação norueguesa. Dois loucos de seis, talvez quatro rapazes rastejando sobre suas barrigas orando por ajuda. A Antártica é como o oceano, Mac. A primeira lei do mar diz para ajudar um companheiro marinheiro em apuros, antes de pensar em qualquer outra coisa.
— Eu não me importo em ajudá-los— Macready insistiu. — Só não quero acabar rastejando com eles.
Garry olhou para ele. — Se você não está pronto para fazer um voo de risco ocasional, então por que diabo você foi voluntário para este posto?
Macready sorriu, esfregando o polegar e o dedo juntos. — Pela mesma razão que muitos de nós o fizemos. Mas eu não posso gastar se eu estiver morto.
— Olha Macready, se você continuar a reclamar, Palmer já se ofereceu para levar o doutor.
Macready ficou boquiaberto com o gerente da estação, incrédulo. — O que você está falando? Palmer? Ele teve talvez dois meses de treinamento! E treinamento em tempo bom.
— Quatro! — Palmer corrigiu da parte traseira do aparelho. — Um pouco de agitação não me incomoda.
— Um pouco de agitação — Macready balançou a cabeça. — Claro que, quando você está chapado, Palmer, nem o fim do mundo o incomoda. Mas talvez o doutor não esteja interessado em morrer como você, seu maconheiro!
— Então você vai levá-lo e calar a boca — Palmer disparou de volta.
— Ahhhhh! — Macready fez um gesto rude e se virou para Bennings. — Como está lá encima, afinal? Quarenta e cinco nós?
— Dezesseis — disse o meteorologista.
— Dezesseis por quanto tempo? Você não pode garantir, nesta época do ano. Em cinco minutos pode ser cinquenta.
Bennings acenou concordando. — É possível.
— Então o que devo fazer? —  Cooper ficou parado ao lado da porta, do lado de fora.
O rugido do vento penetrava a barreira de espessura dupla com isolamento.
— Abra a porta! — Macready rosnou sem argumentos. — "A menos que você queira tentar atravessá-la...
Childs estava esperando por eles, e deu uma mão para Cooper entrar na cabine do helicóptero.
O médico cuidadosamente pousou sua bolsa no banco de trás.
Fora da bolha de acrílico, a neve soprada já começava a limitar a visão.
Macready deslizou ao lado dele e começou pressionando interruptores e examinando leituras no console. A única leitura que ele não se preocupou em verificar foi a da temperatura exterior. Depois que caia abaixo de zero, ele não se importava mais com o que dizia. E já que estava sempre abaixo de zero, era o instrumento que ele normalmente ignorava.


Apertou a corda do sombreiro debaixo de seu queixo e pendurou sua parka polar. Childs tinha ativado o preaquecimento. Bom mecânico o Childs. Macready confiava nele. O motor estava aquecendo já há trinta minutos e estava pronto para voar.
Bateu na ignição. Por um momento, os rotores relutantes tossiram gelo fresco. Então começaram a girar. O motor acelerou com firmeza reconfortante.
— Segure-se aí, doutor — disse ao seu passageiro. — Isto não é a Disneylândia.





Puxou firme o controle e o helicóptero ergueu-se do chão, virou de lado por um instante e em seguida, começou uma escalada constante para o céu, enquanto tomavam rumo nordeste sobre a paisagem branca. O aparelho deslizava lutando contra o vento forte como um salmão contra a correnteza. Macready estava muito envolvido para vomitar. Ele não podia. Não na frente do sereno Cooper.
O médico relaxou em seu assento, checando o cinto de segurança e o arnês e estudou o terreno abaixo. Parecia estar se divertindo. Macready amaldiçoou-o em silêncio.




Vários pares de olhos observavam pelas janelas embaçadas da sala de recreação quando o helicóptero desapareceu ao longe. Clark descansou as palmas das mãos contra o vidro enquanto olhava. Entre a pele e o exterior haviam três camadas de vidro grosso especial e duas camadas intermediárias de ar, e, ainda assim, estava frio ao toque.
— Mac realmente conseguiu, né?
Bennings estava sentindo a perna, tendo que esforçar-se para não coçar o machucado. — O Cooper se ofereceu para verificar o acampamento norueguês e Garry concordou.
— Poderíamos ter usado os cachorros — disse Clark um pouco magoado que ele ainda não tinha sido considerado para a tarefa. — Teria sido mais seguro neste tempo.
— Seguro, sim — concordou Bennings — mas dez vezes mais lento. Podemos ter uma grande tempestade aqui a qualquer momento. Desta forma, eles estarão de volta em algumas horas.
Com um curativo grosso no quadril do animal, onde a bala tinha entrado, e o husky trotou para a sala. Acomodou-se alegremente entre as mesas e as cadeiras, mancando apenas um pouco.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Diga...