sábado, 14 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 14)


Um grande buraco na neve servia ao acampamento como depósito de lixo para resíduos não biológicos. Era bem afastado e protegido sob uma coberta de madeira para evitar que alguém acidentalmente caísse nele.
Subprodutos humanos eram tratados de forma diferente, por necessidade e experiência de uma geração de exploração no Ártico moderno, eram tratados quimicamente e depois armazenados em tambores para o enterro longe do acampamento.
Em climas mais hostis de terreno, simples fossas sépticas serviriam para tal material, mas não na Antártida. Não em um lugar em que tudo congela e se recusa a biodegradar. Você tinha que ter cuidado com o que você faz com o lixo, ou ele iria assombrá-lo.

Não havia muita luz do dia neste extremo sul, Bennings pensou ao virar o recipiente de lixo. Usava de um carrinho de mão montado sobre lâminas, em vez de rodas. Apoiou o carro longe do buraco e chutou a cobertura, esfregando as mãos enluvadas enquanto estudava o céu.
Logo o inverno iria tomar posse do continente sul e começaria realmente a ficar frio. Os homens teriam que se enterrar permanentemente para esperar o retorno do sol.

Palmer e Childs trabalhavam intensamente sobre o menos mutilado dos helicópteros. Garry ainda tinha alguma esperança de que um deles poderia ser reparado a tempo de fazer uma corrida até McMurdo, onde seu piloto obteria informações, reforços, obteria suprimentos, conselhos de especialistas, e, no mínimo, um novo rádio.

O antigo era agora uma pilha de destroços na sala de telecomunicações. Qualquer pensamento de reparar seria fora de questão. Tentar ligar dezenas de chips e outros componentes, era uma tarefa para alguém que combinava os talentos de um instrutor dos laboratórios da Bell e um mestre de quebra-cabeças. Sanders não era nenhum dos dois. Além disso, sua cabeça ainda doía. Ajustou o grande curativo enrolado em sua testa, tentando ver algum sentido na carnificina. De vez em quando a sua visão ficava embaçada. Os componentes não ajudavam, dado o tamanho minúsculo de alguns deles. Aqueles que tinham sobrevivido à fúria de Blair estava em um belo monte sobre a mesa à sua frente  parecendo pedaços de doces de açúcar. Cada um tinha um número estampado. As placas de circuito foram dispostos ao redor da pilha em um semicírculo. As placas também traziam números impressos sobre elas.  Tudo o que tinha a fazer era combinar os números sobre os módulos de substituição com aqueles sobre as placas. Fácil.


— Eu vou ver o que posso fazer — Sanders estava dizendo para Norris. — Eu disse a Garry que iria tentar. Mas a maioria dessas unidades — e ele fez um gesto largo que abrangeu a maioria dos equipamentos em ruínas — é projetada para o reparo na fábrica. Eu não tenho nenhum equipamento para consertar microcircuitos.
Uma lupa estava perto da sua mão direita. Sanders pegou-a sem entusiasmo e começou a procurar o local onde uma peça era para estar ligada com outra.
— Eles não me ensinaram muito sobre como consertar essas coisas na escola de rádio.
Norris sorriu e acariciou-o suavemente no ombro. — Está tudo bem.  Eles também não te ensinaram muito sobre o trabalho.
Sanders respondeu com alguma coisa em espanhol, que Norris não consegui entender. Mas achou não ser nada técnico.


Na escuridão persistente do inverno antártico, a manhã era reduzida a uma lembrança abstrata de um outro mundo. Seu corpo funcionava de acordo com um cronograma pré-determinado, e se confundia com os impulsos naturais.
Como o café da manhã que você devia ingerir sem a chegada reconfortante de um nascer do sol. Nauls fazia o seu melhor para compensar a ausência, com um buffet de ovos, bacon, torradas, geleias e manteiga, batatas fritas e cereais quentes ou frios.
O banquete era necessário, e bem-vindo. Abaixo de sessenta graus de latitude, calorias desapareciam tão rápido quanto à civilização. Não havia pesquisadores ou trabalhadores gordos em qualquer uma das muitas estações internacionais espalhados por todo o continente. Mesmo se você tivesse tido excesso de peso por toda a sua vida, a estada de um ano na Antártica iria derreter o seu excedente rapidamente. Era um fenômeno que até mesmo os primeiros exploradores tinham notado.
Os únicos que mantinham o peso na Antártida eram as focas e as baleias.
A maioria dos homens e mulheres que peregrinaram perto do Polo Sul concordavam que havia maneiras mais fáceis de perder peso, no entanto.
O refeitório era uma sala longa e estreita, não muito maior do que os corredores de acesso que o ligavam ao resto do acampamento. No momento estava enchendo-se de homens semiacordados famintos.

Cooper interceptou Nauls quando o cozinheiro passava com outra carga de torradas e biscoitos.
O médico colocou uma cápsula azul de aparência inócua na bandeja.
Nauls estudou-a e sorriu para o doutor. — Ei, eu já tomei minhas vitaminas hoje.
vNão é para você — disse-lhe em voz baixa. — Coloque isso no suco de Blair.
— Você acha que ele ainda é perigoso?
— Espero que não. Mas ele precisa de mais de uma noite para esfriar, tanto emocional como fisicamente. Isso vai ajudá-lo a relaxar. Ele cutucou a pílula.
Nauls encolheu os ombros. — Você é o médico.
Colocava a pílula no bolso quando Clark entrou na sala. Todos se viraram para olhar para o adestrador pálido e sem fôlego.
A conversa cessou.
— Os cães... — engasgou. Sem elaborar ou esperar uma resposta, ele girou e disparou de volta pelo corredor.
— Merda, e agora? — Alguém murmurou enquanto ovos e café eram abandonados.
O canil estava vazio. O alimento seco estava intocado na calha de metal. A grande lata de água estava cheia até a borda. Não havia sinal de qualquer perturbação. Na outra extremidade do canil ficava a porta externa que levava a uma rampa estreita que subia para a superfície. Clark usava para levar os cães para o lado de fora, quando era hora de exercitá-los, então não teria que levá-los pelo corredor através do acampamento. O vento assobiava nas bordas da porta.
Clark e Garry examinaram o trinco que normalmente mantinha a porta fechada. Fora cuidadosamente projetado para que nenhum cão pudesse acidentalmente abri-lo.
— Está quebrado? — Gary falou em voz baixa, e tocou o apoio de metal.
— Não, — Clark bateu no trinco — quando cheguei esta manhã, eu sei que tranquei. Sempre verifico antes de ir para a cama.
O olhar de Garry foi para o teto. — Vamos nos vestir. Vamos lá pra cima dar uma olhada ao redor.

Deveres diários foram momentaneamente colocados de lado enquanto os homens se metiam em roupas pesadas.
Podia-se ver do lado de fora, mas apenas um pouco. A neve obscurecia o brilho amarelo e áspero das lâmpadas de argônio do complexo. A neve era leve e os rastros dos cães eram claramente visíveis no solo acima do canil. Iam da rampa para a escuridão. Os homens reunidos em torno de Clark se inclinaram sobre eles.


— Três conjuntos de pegadas — anunciou ele indicando com sua luva. — Não há dúvida sobre isso. Todos os três escaparam juntos.
Macready escrevia em um bloco, aparentemente sem prestar atenção.
Cooper estava olhando para noroeste, para os últimos raios de luz remanescentes, protegendo os olhos das partículas de gelo.
Há quanto tempo você acha que eles foram embora?
Clark ponderou sobre a questão. — Não os vejo desde a verificação de ontem à noite. Poderia ser dez, ou até doze horas atrás.
A expressão no rosto de MacReady era sombria quando seguiu o olhar de Cooper.
— Eles não podem ter ido muito longe com este tempo. Provavelmente pararam em algum lugar para passar a noite.
Vários dos homens se viraram para o piloto.
— Você não está pensando em ir atrás deles, né? Sei que te pressionei a voar com mau tempo, Mac, mas...
— Pode apostar que vou atrás deles.


— Mas por quê? — Norris olhou para o piloto como se Macready estivesse propondo uma viagem desnecessária até o sétimo nível do Inferno de Dante.
Norris continuou. — Mesmo se Blair estiver certo e um deles não for... não for um cão mais, eles vão morrer lá fora. Não há comida, nem mesmo um pinguim solitário. Nem mesmo uma maldita aranha. Eles estão  a milhares de quilômetros de qualquer coisa, é só gelo e rocha.
— Além do que — Palmer colocou com rara lucidez — os helicópteros não estarão prontos hoje, ou nunca.
Macready ignorou os dois e entregou para Bennings a lista que estava preparando.
— Consiga estas coisas, e eu me viro com a moto de neve.
Garry olhou incrédulo para o piloto.
— Você não vai alcançá-los em uma daquelas coisas com a vantagem que eles têm.
— Como eu disse, provavelmente eles passaram a maior parte da noite amontoados em algum lugar. Eles não são morcegos, caramba. E não sabemos se saíram a dez ou doze horas.
Olhou atentamente para seu assistente. — Palmer, quanto tempo você levaria para colocar os grandes carburadores de quatro cilindros nas motos?
— Que po... ah, entendi.
Sorriu, saboreando a oportunidade. Sempre quisera tentar isso com as motos, mas ambos Garry e Mac tinham proibido-o. Agora era a chance. Não é o mesmo que envenenar um Corvette, mas seria divertido.
— Então, comece a se mexer!
O jovem virou-se e correu em direção ao grande galpão de manutenção. — Childs, você vem comigo. Temos trabalho a fazer.
Macready colocou o braço em torno do grande mecânico e os dois avançaram para a neve, conversando animadamente.
Ligeiramente desnorteados, o resto dos homens assistiu-os sumir em meio ao gelo e a neve rodopiando em torno deles.
Garry gritou para o piloto. — O que você vai fazer quando alcançá-los?
Bennings estava lendo a lista que Macready tinha entregue a ele.
— Puta merda — murmurou em voz alta.
O gerente da estação olhou para ele. — O que tem aí?
Bennings comentou. — O que ele está planejando fazer,... ele não está de brincadeira.
Garry estudou a lista, em seguida, olhou para cima e para longe à esquerda, mas os dois homens já estavam fora de vista, engolidos pela escuridão.

Childs trabalhou rápido. Estava familiarizado com o equipamento que Macready havia requisitado, além do que ele tinha usado alguns deles recentemente. Os ajustes que estava fazendo não eram complicados, apenas altamente ilegais. Mas Garry sabia sobre eles, e não tinha levantado qualquer objeção. Ainda não.
Provavelmente seria nosso funeral, o mecânico pensou apertando um parafuso. E provavelmente estava certo. Mas para Childs, Macready estava certo. De certa maneira, Childs não via outra escolha. Se esses cães eram coisas agora, e não cães, e se eles de alguma forma conseguissem alcançar outro campo desavisado...
Childs viera de um bairro onde pessoas tinham morrido porque ninguém queria se envolver, porque ninguém queria arriscar -se para ajudar o vizinho do outro lado da rua. Isso o deixava doente e por isso ele foi embora assim que tinha idade suficiente.
Ele não ia deixar esse tipo de coisa acontecer aqui.
Apertou o parafuso até a última meia volta, em seguida, colocou a chave de fenda de lado e levantou a tocha.
Segurando-a firmemente em sua mão esquerda,  abriu as novas válvulas com a direita.
Houve um breve som Chamas trêmulas jorraram do bico. Ele lentamente puxou a alavanca de metal.
Um rugido súbito irrompeu da parte traseira do galpão e uma língua de fogo de cinco metros disparou sobre o gelo escuro.
Childs fechou o registro, franzindo a testa enquanto escolhia outro instrumento aos seus pés. O arco era muito largo e ele estava perdendo em distância. Teria que reduzi-lo um pouco.
Macready saiu do galpão e veio por trás dele. O mecânico recebeu-o. — Viu aquilo?
O piloto estava olhando para fora através da neve e do gelo. — É. Parece bom.
— Se eu restringir o campo, consigo talvez mais alguns metros.
Macready descansou uma mão no ombro de Childs. — Esqueça. Eu prefiro ter uma cobertura mais ampla.
— Tudo bem. Você é o chefe. Como Palmer está indo?
Macready olhou para trás. — Vai conseguir. Aquele garoto trabalha chapado melhor do que a maioria dos caras conseguem com as ideias em ordem.
— Se alguém aqui tivesse as ideias em ordem — Childs respondeu com raiva — nós não teríamos que estar fazendo isso.
Macready não disse nada.
Palmer estava inclinado sobre o motor. A carenagem estava erguida e não podia se ver sua cabeça, mas podia ouvi-lo trabalhando nas entranhas da máquina. A outra moto estava perto, pronta para ser trabalhada. Seu assento traseiro tinha sido substituído por uma caixa de armazenamento de fibra de vidro.
Um carrinho de mão em patins deslizou para dentro do galpão. Bennings batia as mãos enluvadas, um gesto mais reflexivo do que útil, e fechou a porta atrás dele. Tirou as luvas e passeou para perscrutar sobre as costas arqueadas de Palmer.
— Como está indo?
Palmer olhou para ele. — Pela metade quase.
Graxa escurecia o rosto do mecânico.
A porta dos fundos do galpão aberta deixou adentrar outra rajada de ar frio, juntamente com Childs e Macready.
O grandalhão tinha desligado a tocha de seu tanque e carregava-a devagar.
Macready percebeu a presença do meteorologista imediatamente. — Trouxe tudo, Bennings?
— Garry esperneou um pouco, mas só um pouco — e Indicou o carrinho de mão que tinha trazido.
— Certo.
Macready foi em direção dele, tirando sua jaqueta. Childs dobrou a mangueira fina ligada ao maçarico e embalou-a no recipiente de armazenamento montado na parte traseira do moto de neve à espera.
O piloto abriu a tampa do carrinho de mão, olhou superficialmente para o conteúdo, e, em seguida, trouxe um trenó de reboque para a posição traseira da outra moto. Um cabo flexível ligava o conjunto.
— Verificação final — Bennings anunciou lendo a lista. Era a mesma lista que Macready lhe tinha passado antes.
— Caixa de dinamite já com fusível detonador, caixa de térmite da mesma forma, três espingardas, caixa de sinalizadores, duas pistolas de sinalização, trinta latas de gasolina e uma garrafa de “álcool medicinal”.
Colocou a lista no bolso e olhou para Macready. — Cuidado. Se ficar bêbado, vai acabar explodindo tudo!
Macready que certificava-se do engate de reboque, ignorou o meteorologista.
— Tudo bem. Vamos carregar!

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