sexta-feira, 20 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 24)

 
Trabalharam com rapidez e eficiência na sala de recreação, enchendo garrafas vazias com gasolina. Os três pequenos maçaricos que sobraram, estavam em algum lugar lá fora, perdidos na neve. Nenhum dos dois tinha qualquer intenção de procurá-los. Os coquetéis Molotov teriam que servir como substitutos.

Garry estava ocupado perto dali, amarrando um fio fino entre dois carregadores de bateria. Sanders tinha assumido a tarefa de preparar os últimos Molotovs. Segurava o funil enquanto esvaziava a última gota de gasolina da última lata dentro da garrafa. A tarefa restituiu-lhe um pouco de coragem.
Coca-Cola dá vida, ele pensou sombriamente, observando a garrafa. Mas não desta vez.
Macready sentou-se à mesa de carteado, brincando com comprimidos gelatinosos vazios que roubara da enfermaria. Uma seringa hipodérmica carregada descansava nas proximidades. Injetou uma parte do conteúdo da seringa em uma cápsula, e passou para a próxima.

Nauls chegou patinando com outra caixa de dinamite. Voltar aos patins ajudava Nauls a se recuperar, tanto quanto preparar os molotovs ajudara Sanders.
Ele colocou a caixa ao lado das outras. Havia explosivo na sala de recreação suficiente para mandar o complexo à Tierra Del Fuego.
Encontrou um ocupado Macready. — O que vamos fazer sobre Childs?
— Esqueça Childs. Ele se foi. — Macready falou sem levantar os olhos de sua tarefa. — Se ele estivesse ainda no controle de si mesmo, teria encontrado o caminho de volta há uma hora.
— Você não sabe ao certo, cara! — O cozinheiro usou uma pequena alavanca para erguer a tampa da caixa de dinamite. — Lembre-se de quanto tempo você ficou preso lá fora, antes de voltar?
— Você quer dizer, antes de me deixarem voltar — Macready lembrou.
Ele balançou a cabeça com pesar, se recusando a reconsiderar o assunto.
— Está há muito tempo fora. Essa coisa lá fora teve tempo bastante para trabalhar com ele. Se foi capaz de encontrá-lo. O vento estava forte. Pode estar a meio caminho do pólo agora.
— Mas nós não sabemos — Nauls argumentou. — Por que deveria se preocupar com ele? Ele está preso lá fora, na neve, sozinho e desarmado. Temos muito tempo para ir à procura dele. Não faria mais sentido ignorá-lo e cuidar de nós em primeiro lugar?
— Como vou saber? — Macready grunhiu rispidamente. — Não acho isso. Mas aposto que você está certo sobre uma coisa.
— O que?
— Ele está se preparando para cuidar de nós. — Garry falou suavemente, alertando os dois com suas palavras.
— Nauls, prepare esses pavios bem curtos. Vamos precisar que façam o serviço bem rápido se for necessário usá-los.
O cozinheiro assentiu, indiferente a Macready. Fez uma careta para este último e voltou sua atenção para os pavios de linho salientes de cada coquetel Molotov.
Garry se levantou e foi garantir que o fio que atravessava a entrada principal para a sala de recreação estivesse plenamente esticado. Os dois geradores postados um de cada lado, fora da vista de quem viesse pelo corredor.
Macready tinha terminado com as cápsulas e estava se esforçando para bloquear uma das portas laterais com um pesado armário.
Sanders colocou a última lata de lado e olhou para a entrada principal e sua barreira de arame quase invisível.
— E se ele não vier?
Macready jogou o ombro contra o armário que teimava em não colaborar. — Vai vir. Ele precisa de nós. Somos as únicas coisas que sobraram para ele se apropriar. Me dá uma mão?
Sanders acrescentou seu peso ao do piloto e assim que o armário ficou no lugar que queriam, começaram a lutar com um dos pesados ​​consoles de videogame levando-o até a segunda porta. O outro console serviu para concluir o trabalho de contenção. Um dos jogos era Space Invaders. Ninguém quis brincar nele.
Macready virou-se para seu ajudante, gesticulando com o polegar em direção a última porta não bloqueada.
— Você e Nauls vão agora bloquear o lado oeste, os quartos de dormir, o refeitório e a cozinha.
Nauls olhou para o piloto, como se tivesse ido além do limite. — Está doido? Ele já está dentro!
— Um risco que devemos correr. Temos que forçá-lo a vir pelo lado leste até a porta que preparamos para ele entrar.
— Por que eu? — Nauls quis saber.
Macready olhou para ele. — Por que não?
— Ok, ok. Não me venha com esse olhar de desconfiança! — E começou a andar até a porta.
Sanders umedeceu os lábios com a língua e tentou pensar em uma falha, qualquer falha, no raciocínio de Macready.
— Ele pode somente esperar-nos lá fora.
Macready balançou a cabeça.
— Uh-uh, acho que não. Ele congelou uma vez. Talvez não esteja tão frio aqui agora, como há cem mil anos atrás, mas aposto que é frio o suficiente. Ele poderia congelar novamente, e, desta vez, seria a última. Então, ele vai querer entrar.
— Tudo bem — respondeu o operador de rádio. — Então ele poderia nos esperar aqui dentro.
Macready sorriu.
— É aí que pegamos ele. Assim que você e Nauls voltarem, vamos explodir o gerador. — Indicou o aparelho de metal retangular em um canto. — Garry e eu traremos todos os aquecedores portáteis para cá. Ou ele tenta entrar aqui, ou vai congelar.
Se virou e empurrou um pequeno sofá para a porta bloqueada pelo console de videogame.
 — Podemos ligar os portáteis neles. — Balançou a cabeça em direção aos geradores ligados pelo fio. — Podemos sentar aqui e esperar o quanto for necessário e sobreviver a ele. Mas não acho que isso vai acontecer. Ele não é estúpido e vai descobrir que suas opções são limitadas Ah, ele virá, com certeza.
Sanders se juntou a Nauls na porta.
— Esperem um segundo! — Macready foi até a mesa onde tinha deixado os comprimidos.
Entregou a cada um deles uma das pílulas vermelhas e brilhantes. Pareciam pílulas comuns contra resfriado.
— É Cianeto de sódio — disse calmamente. — Coloquem entre a bochecha e a gengiva e se o pior acontecer, mordam com força. Essa coisa não pode assumir o que já está morto. Se pudesse Fuchs não estaria decorando a porta no corredor G.
Nauls e Sanders olharam para as pílulas silenciosamente.
— Se ele te pegar, como fez com Cooper, usem-na. Deverá ser rápido e indolor. Me deram algo parecido na guerra, em Nam, mas eu nunca poderia pensar em usá-lo aqui. Agora, andem!
Saíram para o corredor. Macready ouviu o barulho dos patins de Nauls desaparecerem, então se virou para onde Sanders estava trabalhando e começou a verificar os pavios dos Molotovs.
Garry testava a corrente elétrica passando pelo fio que bloqueava a entrada principal. Os geradores cantarolavam, o ar crepitava, e houve uma quantidade satisfatória de fumaça e faíscas.
— Parece bom — Macready o cumprimentou.
— Mil volts. — O gerente da estação, verificou o nível de reserva em um dos geradores. — Deve ser o suficiente. É bem mais do que o Doutor aplicou na coisa-Norris.


Nauls empurrava o fogão portátil. As rodas guinchavam, porém, de qualquer maneira, conseguiu encostá-lo contra a porta da cozinha fechada. Do outro lado da sala, Sanders fazia o mesmo com uma das geladeiras contra a segunda porta. Assim que foi possível, inclinou-se e agarrou uma das facas de açougueiro que estava à vista.
De repente um som chegou até eles. Um ronronar, um ruído borbulhante. Sanders congelou e virou o rosto para Nauls.
— Ouviu isso, cara?
Nauls olhou para ele. — Ouviu o quê?”
De repente, o barulho estava ao seu redor. Um ruído familiar em erupção nos alto-falantes estéreo de ambas as extremidades da cozinha. Guitarra elétrica, bateria, órgão e sintetizador. Alguém ligara o sistema de som do acampamento no volume máximo.
Um não conseguia mais ouvir o outro...


A música enchia os corredores vazios, quartos de dormir, a seção de alimentação e os lavatórios. Penetrava as paredes e sacudia o chão.
Com exceção de Childs, que tinha feito manutenção nele, Nauls conhecia aquele sistema de som, melhor do que ninguém.
Gritou acima do barulho e fez um gesto em direção à sala de recreação.
— Tá no refeitório! — Gritou para o companheiro. — O aparelho de som!
Sanders boquiaberto, esforçava-se para ouvir. — O que disse?
Nauls foi na direção dele.
— A coisa está entre nós e a sala de recreação. Como é que vamos voltar?
Sanders abanou a cabeça, olhou assustado e confuso.
— Não consigo ouvi-lo, cara!


Na sala de recreação Macready arrancava os alto-falantes de seus suportes de parede. Primeiro um e depois outro.
— O que eles estão fazendo lá atrás? — Perguntou ao gerente da estação, apontando para a cozinha.
A música vinha de apenas um alto-falante restante, mas o som continuava a reverberar pelo restante do complexo.
Garry estava perto do fio e espiou pelo corredor. A voz de Nauls distorcida como um lamento.
— O que ele está dizendo? — Macready perguntou depois de arrancar o último alto-falante.
Garry balançou a cabeça. — Não faço ideia.
— O que foi?
— Macready — Nauls estava uivando. — Nós fomos separados! Vocês podem me ouvir?
Algo fez ‘whump!’ contra a porta detrás da cozinha.
Nauls se virou para ver uma grande lâmina, tal qual uma foice, que varou as tábuas de madeira pesada e começou a serrá-las.
Um líquido negro gotejava da margem do corte. A lâmina em si era uma forma vermelha irreconhecível e não metálica, uma cor estranha para uma lâmina.
O som de madeira sendo serrada era abafado pelo retumbar dos alto-falantes estéreos.
De olhos esbugalhados, Sanders apontou a mão trêmula para a porta. Uma segunda lâmina aparecera ao lado da primeira, juntamente com mais da substância lubrificante negra.
Nauls afastou-se quando percebeu que não se tratavam de lâminas duplas. Eram unhas.
Sanders, encostara contra a terceira porta, quando outro par de garras atravessou partindo a madeira mais fina prendendo-se ao redor de seu pescoço. Foi uma luta breve, antes de ser puxado para trás. Havia uma expressão triste em seu rosto ao morder a cápsula de cianeto, pouco antes de ser puxado com violência através da porta quebrada.
Nauls não era uma pessoa de gestos fúteis. Sanders se fora. A outra porta era a única saída restante. Agachado, correu para o corredor. Seus patins soltaram faíscas.


Na sala de recreação um guincho familiar e irritante foi ouvido acima da música. Agudo e distinto, mais alto do que nunca.
Macready olhou sobre o fio para o corredor. Nenhum movimento. Alto-falantes pequenos continuavam a berrar a ladainha eletrônica.


Nauls havia patinado assim somente uma vez em sua vida. Fora em Chicago. A gangue local, os Crips, estava atrás dele. Os filhos-da-mãe eram rápidos, mas não tão rápido quanto um aterrorizado adolescente em patins. Era tarde e ele não tinha negócios naquele bairro, sua arrogância superava o bom senso.
Ele tinha invadido o território deles, deixando-os furiosos e embalados em sua perseguição. Pensou ter patinado até suas pernas caírem. Ao redor de cercas, por ruas desertas, becos e sarjetas, pulando, voando pela noite urbana.
Inclinou-se na esquina e chutou com as pernas acelerando pelo corredor em linha reta. Não agora, disse para si mesmo desesperadamente, não tão longe de casa. Da Rua Delancy para a sala de recreação, seus olhos estavam vidrados. Ele era uma bala, girando para fora do cano de uma arma.
O corpo de Sanders veio voando para fora da parede do corredor, diretamente na frente dele. Um braço grosso prendeu-o na parede oposta, como uma mosca em um alfinete.
Nauls derrapou e perdeu o equilíbrio enquanto tentava parar, deslizou batendo contra a parede mais próxima. A cápsula de cianeto saiu voando para fora de sua boca. Ele a ignorou. O resto daquela coisa que matou o operador de rádio, estava começando a passar através da parede.
Ele se levantou e começou a avançar novamente, saltando  sobre aquela monstruosidade enorme e rolando no chão, assim como eles ensinaram nas aulas de ginástica e então de volta sobre os patins, como um patinador profissional.
Macready, que estava fora no corredor, correu em direção à cozinha. Não tinha ido muito longe quando Nauls veio da esquina em direção a ele.
— Pra trás! — o cozinheiro gritou. Macready abrandou sua velocidade, mas não parou.
— O gerador... — Ele começou a dizer.
— Dane-se o gerador! — Nauls atingiu com a mão o piloto. Um silvo profano soou mais alto do que a música. Algo como um terremoto estava vindo pelo corredor.  Macready virou-se e correu atrás de Nauls.
Nauls ainda se lembrava do fio e passou debaixo dele, depois derrapou na sala de recreação.
Macready vinha bem atrás dele bufando como um motor superaquecido, o cozinheiro desabou no sofá grande.
— O que aconteceu lá atrás?" — Garry perguntou-lhe em voz baixa.
Nauls olhou para ele. Suas palavras vieram em pedaços. — Pegou Sanders... mordeu a cápsula, o pobre diabo...a terceira Guerra Mundial não vai dar conta desse filho-da-puta...ele pode atravessar paredes... e é grande, maior do que pensávamos... talvez nunca tenha atingido o tamanho real antes de congelar, quando... é como se estivesse em todo o lugar...
— Acalme-se e assuma sua posição — disse Macready.
Nauls começou a levantar do sofá. — Sua posição o cacete...
Garry trabalhava nos geradores, preparando-os.
— Vou dar tudo que puder. Temos que arriscar. Deve funcionar.
— Maldição Boulder, faça logo! — foi a contribuição de Nauls.
Inesperadamente, a música alta que reverberava através do complexo cessou.
Algo tinha desligado-a.
Ou talvez a fita chegasse ao fim.
Garry sussurrou para o piloto. — Luzes!
Macready assentiu e apertou o interruptor na parede principal.
Cada homem assumiu sua posição pré-determinada quando a sala de recreação foi mergulhada na escuridão.
O vento gemia alto.
Toda a atenção estava concentrada na porta com o fio, embora após a descrição de Nauls da maneira como a coisa tinha penetrado a cozinha, eles não deixaram de vigiar as duas entradas bloqueadas, ou as paredes.



Esperaram pela coisa na escuridão. O silêncio tomara o complexo.
Após bastante tempo ter se passado e nada ter acontecido, Garry finalmente falou. — Já faz quanto tempo?
Macready verificou o fraco brilho de seu relógio. — Pouco mais de duas horas, eu acho.
Atrás dele Nauls soou esperançoso. — Talvez não venha atrás de nós. Talvez vá tentar esperar-nos, como você disse antes. Com o gerador ainda funcionando, o resto do acampamento vai permanecer ainda quente.
— Então nós temos que ir atrás dele — disse Macready.
— Aposto que será o último lugar que você irá.
— Shusshhh! — Garry acalmou -os. — Ouçam!
No silêncio assustador eles ouviram o som de abertura de uma porta distante, depois o som de fechar. E se repetiu. Ainda longe e acompanhado por um farfalhar.
Macready e Nauls se separaram um pouco.
Um borbulhar suave veio de fora, seguido por uma tentativa de arranhar a porta. Os dedos de Garry apertaram os controles do gerador. O arranhar se intensificou, então ficou mais alto.
A voz de Macready veio como um sussurro tenso:
— Espere... Espere até que ele chegue na porta!
Garry balançou a cabeça, as palmas das mãos úmidas no interruptor principal.
O arranhar transformou-se em um bater insistente e constante. A porta era mais pesada do que a maioria.
Nauls e Macready calmamente acenderam um par de Molotovs.
A porta explodiu quando algo enorme jogou seu peso contra ela. Todo o recinto sacudiu.
Macready levantou o braço, pronto para atirar o Molotov.



Em seguida, o telhado cedeu, e a coisa caiu no meio deles.
Instintivamente os três homens atordoados atiraram-se para longe da massa escura que ocupava agora o meio da sala.
Macready lançou seu Molotov, e do outro lado da sala Nauls fez o mesmo.
Ambos atingiram o lado direito da coisa. Por um instante puderam ver claramente uma forma gelatinosa furiosa, mudando constantemente sua silhueta em chamas.
Garry tentou escapulir pela porta, porém algo irrompeu a partir do centro da massa e o trespassou.
A área da coisa não afetada, dois terços do enorme corpo, projetou sua língua, ou tentáculo, ou o que fosse, e envolveu o infeliz gerente da estação, antes que pudesse fugir.
Um membro quitinoso arremessou Nauls para longe.
Macready esquivou e mergulhou na direção do gerador.
Ligou a chave.
A corrente chicoteou ao fio à porta, eletrocutando Garry misericordiosamente. A garra da coisa, presa a ele, se torceu em dor crepitante, arrancando a porta de suas dobradiças, batendo-se contra o chão, tentando livrar-se.
A coisa fervilhante, o horror, estava entre Macready e a saída.
O cérebro de Macready gritava para que ele fizesse algo. A cápsula estava pressionada contra a bochecha direita. As outras duas portas haviam sido fortemente barricado por dentro, seria difícil para ele retirar os bloqueios a tempo.
A janela. Pulou até ela e puxou para baixo convulsivamente a alavanca de emergência de incêndio. Estava presa por falta de uso. Colocou todo o seu peso em uma segunda tentativa e deu um passo de lado, quando o pesado painel de vidro triplo foi ao chão.
Algo atingiu de raspão sua bota quando ele se arrastou para fora, para a tempestade.

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