domingo, 29 de maio de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 06)


Ele olhou para cima, um pouco assustado. Não sabia que ela estava no quarto.
Frequentemente fazia isso, ela parecia surgir do nada, e sua voz rouca, grave era irritante para ele. Mas era uma boa mulher, e inteiramente insuspeita.
Em quatro semanas, ele tinha se afeiçoado muito com ela, como se ela fosse uma espécie de animal de estimação útil. Trocou a posição da sua perna para uma mais confortável antes de perguntar:

— Você vai à igreja nesta tarde, não vai?

Ele olhou por cima do ombro para ela.
Ela tinha acabado de chegar e estava carregando uma sacola de supermercado de plástico vermelho, abraçando-a contra o peito como se fosse uma criança.

Sorriu-lhe, um pouco tolamente, e pensou que talvez já estivesse um pouco embriagada, embora ainda a tarde mal iniciasse.

— Foi o que pensei, Sr. Newton. Pensei que talvez pudesse ir à igreja.

Pousou o saco em cima da mesa, perto do condicionador de ar que Newton lhe havia comprado durante a primeira semana da sua estada na casa dela.

— Trouxe vinho — acrescentou.

Ele voltou para sua perna, apoiada sobre uma pequena caixa frágil com suas velhas revistas em quadrinho, seu único material de leitura. Estava irritado. Comprar vinho significava sua intenção de ficar bêbada naquela noite, e, embora ela segurasse bem, ele sempre ficava apreensivo por sua embriaguez. Mesmo que ela comentasse com frequência e com admiração sobre a sua leveza e fragilidade, ela provavelmente ainda não tinha ideia do dano que pudesse fazer em seu organismo, seus ossos de passarinho, se tropeçasse e caísse. Ela era uma mulher robusta, carnuda, e mais pesada que ele, pelo menos, 20 quilos.

— Foi atencioso da sua parte trazer vinho, Betty Jo — disse ele. — Está gelado?

— Ah, ah — respondeu ela. — Frio pra diabo. — Tirou a garrafa do saco, e ele ouviu-a tinir contra outras companheiras suas, ainda ocultas. Betty Jo apalpou-a, com ar pensativo. — Não comprei no Reichmann’s, desta vez. Hoje era o dia de pegar o cheque do auxílio desemprego, e comprei-a assim que saí do edifício da Assistência Social. Tem uma lojinha lá, chamada Goldie’s Quickie. Muitas das vendas são daqueles que vem ali pegar o auxílio.

Tirou um copo de uma fila acima de uma antiga estante, pintada de vermelho, e pousou-o no peitoril da janela. Então, com uma espécie de abstração indolente, que caracterizava a sua maneira de lidar com o álcool, tirou do saco uma garrafa de gim, e ficou ali, com o vinho numa das mãos e o gim na outra, como se não conseguisse decidir qual deles tomaria primeiro.

— Eles guardam o vinho todo num frigorífico comum e fica frio demais. Devia tê-lo comprado no Reichmann’s.

Largou a garrafa de vinho e abriu a de gim.

— Não faz mal — disse ele. — Não deve levar muito tempo pra aquecer.

— Eu vou deixar aqui, e se quiser um pouco, a qualquer momento, é só chamar, ouviu?

Derramou para si mesma, meio copo de gim e foi para a pequena cozinha. Newton ouviu-a quando fez tilintar, contra o açucareiro, a colher que usava para despejar açúcar no gim, e viu-a voltar num instante, bebendo enquanto caminhava.

— Diabos, gosto mesmo de gim! — exclamou num tom de quem estava satisfeita consigo mesma.

— Não creio que seja capaz de ir à igreja.

Ela pareceu seriamente desapontada. Aproximou-se e sentou-se, com ar desajeitado na poltrona velha, que estava defronte dele, puxando a saia estampada com uma das mãos, enquanto a outra segurava o copo.

— Que pena! É uma boa igreja e de alta classe. Não se sentiria deslocado.




Newton notou, pela primeira vez, que ela usava um anel com um diamante. Ela provavelmente tinha comprado-o com o seu dinheiro. Ganho pelo cuidado com ele. Apesar de seus hábitos e de sua maneira de falar, era uma excelente enfermeira. E não ficava curiosa sobre ele.

Não querendo falar mais acerca da igreja, permaneceu silencioso enquanto ela se instalava confortavelmente na poltrona, bebendo o gim com um ar sério. Era o tipo de frequentadora da igreja irregular e sentimental que na televisão chamavam de profundamente religiosa — sua fé era uma importante fonte de apoio.

Ela era o tipo que frequentava a igreja de maneira irregular e sentimental que na televisão chamavam de profundamente religiosa, sua religião era uma grande fonte de força. Consistia em grande parte de assistir as palestras de domingo à tarde, sobre magnetismo pessoal e quarta-feira à noite palestras sobre homens que se tornaram sucesso nos negócios através da oração. Sua fé se baseava na crença de que o quer que aconteça, tudo estaria bem; sua moralidade era que cada um devia decidir por si mesmo o que era certo para si. O seu gin estava incluído nisso.

Nas poucas semanas que vivera com aquela mulher aprendera muita coisa a cerca de um aspecto da sociedade americana que a televisão não lhe transmitira. Sabia da prosperidade generalizada que se expandia sem cessar — como a flor brotando de uma semente gigante e incrivelmente resistente durante os quarenta anos decorridos desde o término da Segunda Guerra Mundial — e sabia como essa riqueza tinha sido distribuída e gasta pela classe média, de quase todo o país, a qual, à medida que o tempo passava, se dedicava menos tempo ao trabalho produtivo e acumulava mais dinheiro. Era aquela classe média bem vestida e bem de vida, de que tratavam quase todos os programas televisivos, de tal forma que era fácil uma pessoa ficar com a noção errada de que todos os americanos eram jovens de peles bronzeadas, de olhos perspicazes e ambiciosos.

Ao conhecer Betty Jo ele aprendera que existia um amplo substrato da sociedade que não era afetada, de modo algum, por esse protótipo de classe média, uma massa de pessoas, enorme e indiferente, que não possuía ambições ou valores.

Estudara história o bastante para compreender que pessoas como Betty Jo teriam sido outrora os pobres; mas que naquela época, eram os ‘bem de vida’ provenientes do mesmo industrialismo; que viviam com relativo conforto em casas construídas pelo governo — Betty Jo alugara um apartamento de três cômodos num bairro velho, uma espécie de gueto — à custa de cheques vindos de uma diversidade impressionante de repartições estatais: Federal Welfare, State Welfare, Emergency Relief, Country Poor Relief.

Aquela sociedade americana era tão rica que podia aguentar oito ou dez milhões de membros da classe de Betty Jo numa espécie de luxo esfarrapado, feito de álcool e mobília velha, enquanto o grosso do país bronzeava as bochechas saudáveis à beira das piscinas suburbanas e seguia a moda no que dizia respeito ao vestuário, à criação dos filhos, às misturas de bebidas, jogando com a religião, a psicanálise e o ‘ócio criativo’.

Excetuando Famsworth, que pertencia a outra classe mais rara, a dos que eram ricos de verdade, todos os homens que Newton conhecera pertenciam a tal classe média. Todos se pareciam muito, e se encontravam um pouco perturbados, um pouco perdidos, se fossem apanhados com as ‘guardas abaixadas’, quando não se estendiam a mão num gesto de amizade ou não tinham a expressão facial habitual, uma máscara de encanto complacente e juvenil.

A opinião de Newton era que Betty Jo, com o seu gim, o seu tédio, os seus gatos vira-latas e a sua mobília velha, obtinha a melhor parte, a mais vantajosa, do sistema social.
Certa vez tinha dado uma festa, com algumas das ‘amigas’ do prédio. Ele ficara no quarto, longe de vista, mas ouvira-as muito bem, cantando antigos hinos, embebedando-se de gim e sentimentalismo, e parecera-lhe que haviam achado um tipo melhor de satisfação pessoal naquele deboche emocional do que a classe média nos seus festins à romana, churrascos, a sua natação à meia-noite, e o seu sexo rápido.

Todavia, até Betty Jo fracassava, porque, depois das outras mulheres regressarem às suas próprias celas de três cômodos, ela se deitava na cama com ele e ria dos hinos da religião batista, revivalista, com que fora educada pela sua família de Kentucky, declarando que havia deixado para trás tudo aquilo, embora, às vezes, fosse divertido cantar aquelas canções.

Newton não disse nada, mas ele não pode deixar de se admirar. Tinha visto várias vezes, nas velhas fitas de TV em seu planeta, uma igreja "moderna" que fazia um uso criativo de Deus, para o qual a música consistia unicamente de um eletrônico órgão tocando valsas de Strauss e partes de The Poet and Peasant Overture. Não estava de todo certo que essas pessoas sabiam que essa estranha manifestação deles, (coisa em que Anthea não havia) e, no entanto, os antigos atenienses, em suas visitas ao planeta, foram, provavelmente, a causa para este conjunto peculiar de premissas e promessas chamada de religião. Não entendia muito bem, no entanto. Atenienses acreditavam, com certeza, que eram deuses do universo, ou criaturas que podiam ser chamados de deuses, mas isso não representava qualquer importância para eles, mais do que para a maioria dos seres humanos, mas a crença humana em pecado e redenção tinha significado para ele e, ele, como todos seus, estava bastante familiarizado com o sentimento de culpa e da necessidade de sua expiação. No entanto, agora os humanos pareciam ter construido suas meia-crenças e sentimentos para substituir suas religiões, e não sabiam o que fazer com ela; realmente não entendia por que Betty Jo estava preocupada com a suposta força que ela recebia em doses semanais de sua igreja sintética, uma forma de força que parecia dúbia e mais problemática do que o que recebia de seu gin.

Um pouco depois pediu um copo de vinho, que fora comprado com tanta gentileza, recebendo o único copo de cristal que ela lhe comprara especialmente para ele, deitando a garrafa, como o faria um especialista. Newton bebeu com certa rapidez. Aprendera a apreciar bastante o álcool durante a convalescença.

— Bom — comentou, enquanto Betty Jo lhe servia o segundo copo —, espero ser capaz de me mudar daqui na semana que vem.

Ela hesitou, momentaneamente, mas acabou dizendo:

— Para quê, Tommy? — chamava-lhe assim às vezes, quando estava embriagada. — Não vai tirar o pai da forca.




Deus! Ele era esquisito! Alto e muito magro e com os olhos estranhos como os de um pássaro; mas podia deslocar-se como um gato, mesmo com a perna machucada. Passava a vida a tomar comprimidos e não tinha barba. Também não parecia que dormisse; às vezes ela levantava-se de noite, acordando com a garganta seca e a cabeça doendo, que o gin lhe provocava — quando não abusava de mais —, e lá estava ele na sala de estar, com a perna esticada para cima, a ler, ou ouvindo aquele disco dourado que o homem gordo tinha trazido de Nova Iorque, ou apenas sentado na poltrona, com o queixo pousado nas mãos, olhando para a parede, com os lábios bem cerrados e as ideias só Deus sabe onde!
 
Ela tentava não fazer barulho, de maneira a não o incomodar; mas ele sempre a ouvia, por menos barulho que fizesse, e via-se que ficava assustado. Mas sorria sempre e, de vez em quando, dizia uma palavra ou duas. Uma vez, durante a sua segunda semana ali, parecera tão perdido e solitário, sentado, encarando a parede, como se tentasse descobrir qualquer coisa com a qual pudesse conversar; parecia, com a perna torcida, um passarinho meio doente, que tivesse caído do ninho. Teve tanta pena dele que dava vontade de abraçar sua cabeça e de fazer festinhas, de acaricia-lo. Mas não o fizera; já sabia de que não gostava que lhe tocassem. Nunca conseguiria esquecer-se de como ele era leve quando o carregara para fora do elevador, quando o conhecera, com o sangue empapando a camisa e a perna torcida como um arame dobrado.

Acabou de escovar o cabelo e começou a colocar batom. Usava, pela primeira vez, sombra e batom prateados que via nas moças nas ruas; e, quando terminou, olhou-se ao espelho com certo prazer. Para quarenta anos, não estava mal, se disfarçasse as manchinhas, as olheiras provocadas pelo gin e pelo açúcar. Estava a disfarçá-las naquela noite, com um produto de maquiagem adquirido para esse fim.
Depois de examinar o resultado por uns momentos, começou a vestir-se, enfiando a calcinha e o sutiã dourados que comprara a tarde, e depois a blusa combinando. A seguir, colocou os pomposos brincos.

Ela parecia agora outra pessoa em pé diante do espelho, sentiu-se autoconsciente. Que tipo de loucura que ela estava fazendo, se vestindo assim? Mas, no fundo de sua mente, raramente examinado, onde garrafas de gin foram impiedosamente numeradas e recordações desagradáveis de um marido felizmente morto foram arquivadas, sabia muito bem para que estava fazendo isso. Mas não quis trazê-lo à superfície de sua mente. Era especialista na técnica. Em um minuto se sentiu mais acostumada a esta nova, aparência sexy-matrona, e, pegando o copo de gin do topo do armário com uma das mãos, alisando as calças vermelhas apertadas com a outra, abriu a porta e entrou na sala onde estava Tommy.

Ele estava ao videofone e ela viu a cara daquele advogado, Famsworth, na pequena tela. Era habitual falarem três ou quatro vezes por dia e, uma vez, Famsworth aparecera com uma equipe, de aspecto enérgico, e haviam passado o dia a discutir e a argumentar, na sala, ignorando-a, como se fizesse parte da mobília. Exceto Tommy, isto é, porque ele tinha sido educado e agradável e tinha agradecido gentilmente quando ela tinha trazido o café e ofereceu-lhes gin.

Sentou-se no sofá, deixando Tommy com Famsworth, e pegou uns livros com figuras, contemplando com ar ocioso, algumas das páginas sexualmente excitantes, enquanto terminava o gim. Mas aquilo a aborrecia,
Tommy estava falando de um projeto qualquer de pesquisas, na região sul do estado, e na venda de ações daqui e de acolá. Largou o livro, acabou a bebida, e pegou um dos livros dele, que viu ao canto da mesa.

Enviavam-lhe centenas de livros para sua casa e a sala estava atravancada deles. Livro de poesias. Largou-o por outro. Chamava-se ‘Engenhos termonucleares’, cheio de números. Começou outra vez, a sentir-se tola, vestida daquela maneira. Levantou-se e, com ar decidido, providenciou dois gins, deixando um em cima do televisor e levando o outro consigo para o sofá. Contudo, tola como se sentia, apercebeu-se de que, por automatismo, adotara uma pose sedutora, tipo estrela de cinema, no sofá, estendendo as pesadas pernas com indolência. Observou-o por sobre a beira do copo, viu o clarão da luz no seu cabelo e a sua pele delicada, acastanhada, quase transparente, e depois a mão graciosa, efeminada, que jazia de maneira casual, leve, sobre a mesa. Naquele instante, examinou conscientemente o que pretendia e, à luz suave, com o gim a aquecer-lhe o estômago, começou a sentir um toque de perversa excitação, brincando na zona fronteiriça à ideia de ter aquele corpo estranho, delicado, contra o seu. Deixando a imaginação especular com a imagem, percebeu que aquela excitação especial provinha da sua estranheza — da sua natureza peculiar, pouco semelhante à dos homens, assexuada. Talvez ela fosse como aquelas mulheres que gostavam de fazer amor com anormais e aleijados. Bom, ele era ambas as coisas e ela não importava, já não tinha vergonha, com as suas calças apertadas e o gim dentro de si. Se o pudesse excitar, se ele pudesse ser excitado — havia de se sentir orgulhosa de si mesma. E se tal não acontecesse — era um homem cheio de ternura e não ia ficar ofendido.

Sentiu que seu coração se alegrava com ele, um sentimento vivo e caloroso; quando acabou a bebida, achou-se mergulhada pela primeira vez durante anos, numa emoção que se assemelhava ao amor, a par do desejo que a levara a aproveitar os melhores períodos ao longo de todo dia — desde manhã, quando saíra com o melhor vestido estampado, e comprara calcinhas e brincos, cosméticos e calças apertadas, sem admitir para consigo mesma o significado do plano que lhe surgira na mente.
Tomou mais uma bebida, dizendo a si mesma que devia ter calma. Mas estava ficando nervosa, enquanto esperava. Ele falava a cerca de alguém que se chamava Bryce, e Famsworth estava dizendo que esse tal Bryce tentava visitá-lo, queria trabalhar para ele, mas desejava ver Tommy primeiro, e Tommy respondia que era impossível e Famsworth explicava que iam precisar de todos os indivíduos que pudessem para a experiência de Bryce.

Começou a impacientar-se. Quem se importava com o tal Bryce? Mas então, Tommy encerrou a conversa com ar brusco, desligando o telefone, e depois de ficar calado durante um minuto, olhou para ela, pensativamente.
 


— A minha casa nova está pronta, no Sul do estado. Gostaria de ir comigo? Como minha governanta?

Aquilo foi um choque. Pestanejou.

— Governanta?

— Sim. A casa fica pronta no sábado, mas temos que arranjar mobília, há coisas ainda a tratar. Preciso de alguém que tome conta disso tudo. E — sorriu, levantou-se com a ajuda da bengala e coxeou até junto dela — sabe que não gosto de conhecer estranhos. Podia tratar com as pessoas por mim.

Ficou ali, de pé. Ela levantou os olhos.

— Te preparei uma bebida. Está em cima do televisor.

A oferta dele era difícil de acreditar.
Ela soube da casa quando as pessoas da imobiliária tinham vindo ali na segunda semana. Uma enorme mansão antiga que ele estava comprando e mais novecentos acres de terra, a leste nas montanhas.
Ele pegou no copo, cheirou-o e perguntou:

— Gim?

— Devia provar — respondeu. — É muito bom. É doce.

— Não — recusou-se. — Não. Mas gostaria de tomar um vinho contigo.

— Está bem, Tommy. — Levantou-se, oscilando ligeiramente, foi à cozinha buscar a garrafa de Sauterne e o seu copo de cristal. — Não precisa mais de mim — disse da cozinha.

— Claro que sim, Betty Jo. — A voz dele soou solene.



Ela voltou, parando junto dele, enquanto lhe entregava o copo. Era um homem tão simpático! Sentiu-se quase envergonhada de si mesma por querer seduzi-lo, como se fosse um fulano qualquer. Não podia evitar, quando bebia uma pouco mais. Com certeza ele não suspeitava para o que era toda aquela produção.

Era do tipo que cresceu na segurança, superprotegido, e fugiria se uma moça tentasse algo... Talvez fosse gay. Qualquer pessoa que lia o tempo todo... Mas ele não falava estranho. Gostava de ouvi-lo falar. Ele parecia cansado agora. Parecia cansado o tempo todo.
Ele sentou-se penosamente na poltrona e pôs a bengala ao lado. Betty Jo acomodou-se no sofá e depois recostou- se de lado, de frente para ele. Tommy olhava para ela, mas não parecia vê-la.
Quando ficava assim, com aquele aspecto, ela sentia arrepios.

— Vesti roupa nova — anunciou.

— Sim.


 
— Vesti mesmo. — Riu-se acanhada. — As calças custaram sessenta e cinco e a blusa cinquenta, e comprei roupa de baixo dourada e brincos. — Levantou uma perna para mostrar as calças carmesim, radiante, e depois coçou o joelho, através do tecido. — Com o dinheiro que me dá, posso vestir-me como uma artista de cinema, se quisesse. Podia fazer uma operação plástica, emagrecer e tudo mais. — Apalpou os brincos, com ar pensativo por instantes, obrigando-os a oscilar e depois fazendo correr a unha do polegar pelo dourado macio e metálico, desfrutando os ligeiros vestígios de dor nos lóbulos das orelhas. — Mas não sei. Tenho andado descuidada faz muito tempo.

Desde que eu e o Bamey passamos a viver com a ajuda do auxílio desemprego e tudo, perdi a linha e, caramba, quando se chega a isto, não se importa mais com nada.

Não obteve resposta; ficaram sentados em silêncio, enquanto ela terminava a bebida. Por fim ele indagou:

— Vem comigo para a casa nova?

Ela espreguiçou-se e bocejou; começando a sentir-se cansada.

— Tem certeza de que precisa mesmo de mim?

Por um instante, ele pestanejou e mostrou uma expressão que ela nunca vira, como se a suplicar.

— Sim, preciso — respondeu. — Conheço poucas pessoas...

— Claro — replicou. — Eu vou. — Fez um gesto fatigado. — De qualquer modo seria uma idiota se não aceitasse, porque calculo que vai me pagar o dobro.

— Ótimo.

A cara dele adquiriu um ar relaxado, reclinou-se na poltrona e pegou num livro.
Antes que o pudesse começar, ela recordou-se dos seus planos e, após um momento de dúvida relutante, fez uma tentativa derradeira. Mas sentia sono e não estava empenhada de coração e alma.

— É casado, Tommy?

Devia ser uma pergunta bastante óbvia. Se ele teve alguma ideia do ponto onde queria chegar, não o demonstrou.

— Sim, sou casado — informou delicadamente, pousando o livro no colo e erguendo os olhos.

Envergonhada, ela disse:

— Só para saber. Como ela é? A sua mulher...

— Oh, parece comigo. Alta e muito magra.

De certa forma, a vergonha estava a transformar-se em irritação. Sorveu as últimas gotas de gim.

— Eu era magra — disse quase como um desafio. Depois, farta daquilo, ergueu-se e caminhou para a porta do seu quarto.

Fora uma estupidez, de qualquer maneira. E talvez ele fosse gay — ser casado não provava nada.  Assim como era esquisito. Um homem bonito, rico, mas tão estranho como leite verde.

Deu boa-noite, entrou no quarto e começou a tirar a roupa cara. Depois sentou na beira da cama, vestiu uma camisa de dormir, refletindo sobre o ocorrido. Sentia-se muito mais à vontade sem aquelas coisas apertadas, e quando, finalmente, se deitou, com a mente vazia, não teve dificuldades em cair num profundo sono, preenchido, de uma forma agradável, por sonhos tranquilos.

domingo, 15 de maio de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 05)



Cinco minutos depois de deixar o aeroporto percebeu que cometera um erro grave. Não devia ter tentado descer tanto ao sul, no verão, por mais necessário que fosse.
Deveria ter mandado Famsworth, ou outra pessoa qualquer, para comprar propriedades e tratar das disposições legais.

A temperatura passava dos trinta graus Celsius e, como era fisicamente incapaz de transpirar, visto que seu organismo estava preparado para um calor que rondasse os cinco graus, estava maldisposto, quase até à inconsciência, no banco de trás da limusine que o transportava na direção do subúrbio de Louisville, oprimindo seu corpo, ainda sensível à gravidade, contra as duras almofadas.

Em mais de dois anos na Terra, e devido aos dez de condicionamento físico por que passara antes de abandonar Anthea, era capaz de suportar a dor e de se manter — graças à força de vontade — consciente. Conseguiu sair do veículo, entrar no átrio do hotel, daí passar para o elevador, aliviado por este ser lento e se deslocar com suavidade, e chegar ao seu quarto no terceiro andar, onde tombou na cama.

Um pouco mais tarde, fez um esforço para ir até ao aparelho de ar condicionado e o mudar para ‘muito frio’. Depois tornou a cair na cama. Era um bom condicionador de ar; baseava-se num grupo de patentes cujos direitos concedera à empresa que o fabricava. Dentro de pouco tempo o quarto ficou com o grau de conforto de que necessitava, mas deixou o aparelho ligado, grato por a sua contribuição, naquele ramo da ciência, ter feito com que aquelas horríveis caixinhas trabalhassem sem ruído.

Era meio-dia, ligou para o serviço de quarto e conseguiu que lhe enviassem uma garrafa de Chablis e um pouco de queijo.

Só recentemente começara a beber vinho, satisfeito  por lhe provocar o mesmo efeito que aos homens da Terra. O vinho era bom, se bem que o queijo se parecesse um pouco com borracha. Ligou o televisor, que também funcionava graças às patentes da W. E. Corp., e instalou-se numa poltrona, resolvido a divertir- se, se não pudesse fazer mais nada naquela tarde tão quente.

Já tinha passado mais de um ano desde que vira televisão sem limite de tempo, e parecia-lhe muito estranho, ali, naquele hotel, de uma modernidade vulgar — tão parecida com os apartamentos nos quais viviam os detetives privados que se via na tevê, com a cadeira de repouso, a estante jamais usada, os quadros abstratos e o bar individual com tampo de plástico, ali, em Louisville, Kentucky.

A observar os pequenos humanos, homens e mulheres, a moverem-se na tevê, tal como os vira durante tantos anos no seu lar, em Anthea. Pensou, então, naquela época passada, enquanto bebia o vinho fresco, mordiscava o queijo — estranhos alimentos —, enquanto a música de fundo de uma história de amor invadia a sala e as vozes fracamente escutadas, que vinham do pequeno alto-falante, lhe agrediam o ouvido sensível, de outro mundo, como os sons guturais e confusos, alienígenas que eram, na sua essência, tão diferentes do ronronar da sua própria língua, embora esta, épocas atrás, se tivesse desenvolvido a partir de outra.

Permitiu-se recordar, pela primeira vez em meses, da conversa macia dos velhos amigos antheanos, nos alimentos suaves e estaladiços que comera durante toda a sua vida em casa com a mulher e filhos.

Talvez fosse o frio da sala, acalmando-o da dolorosa viagem, talvez o álcool, ainda novidade para a sua circulação, que o faziam tombar num estado de espírito tão semelhante à nostalgia humana, sentimental, egocêntrico e amargo. De súbito desejou escutar o som da sua língua, ver as cores claras do solo antheano, cheirar o odor acre do deserto, ouvir os sons da música de Anthea, c contemplar as paredes finas, tipo gaze, dos seus edifícios; a poeira das suas cidades. E desejou a esposa, com a sombria sexualidade corporal própria da sua raça. E, de repente, olhando de novo a sala, com as discretas paredes cinzentas e a mobília banal, sentiu-se nauseado, cansado daquele local barato e alienígena, daquela barulhenta, gutural, desenraizada e sensual cultura, daquele agregado de macacos espertos, ávidos, autocentrados,  vulgares, indiferentes, enquanto a sua frívola civilização desabava, desabava, como a Ponte de Londres, como todas as pontes.

Começou a sentir o que já sentira tantas vezes antes: uma lassidão pesada, um enfado do mundo, uma profunda fadiga em relação àquele planeta transbordante de afazeres, destruidor, e a todos os seus ruídos arrepiantes. Sentiu-se como se pudesse abandonar aquilo tudo, sentiu que era uma loucura, uma loucura impossível, ter iniciado a sua missão, mais de vinte anos atrás. Olhou à sua volta, aborrecidamente. O que estava fazendo ali naquele mundo, o terceiro a contar do Sol, a cem milhões de quilômetros de casa?

Levantou-se, desligou o televisor, e recostou-se na poltrona, até quase se deitar, ainda a beber o vinho, sentindo, então, o efeito do álcool, mas sem se importar com isso.

Assistira televisão americana, inglesa e russa durante quinze anos. Seus colegas tinham arranjado uma enorme filmoteca de emissões televisivas gravadas, mais ou menos de quarenta anos atrás, em que a América tinha começado a ter emissões contínuas, já haviam decifrado a maior parte das sutilezas da língua, baseando-se nas transmissões radiofônicas em FM. Estudara todos os dias, aprendendo a língua, os costumes, a história e a geografia, tudo o que havia à disposição, até ter decorado, por meio de uma forma exaustiva, o significado de palavras obscuras como ‘amarelo’, ‘Waterloo’ e ‘República Democrática’ — não tendo a última expressão qualquer contrapartida em nenhuma região de Anthea. E, enquanto trabalhava e estudava e fazia exercícios físicos infindáveis, enquanto agonizava com uma antecipação de anos, eles tinham deliberado, decidido, que a viagem devia sequer ser tentada.

Havia tão pouca energia, além das baterias solares no deserto!

Ia exigir tanto combustível para enviar apenas um antheano através do abismo vazio do espaço, talvez para a morte, talvez para ser recebido num mundo já morto, num mundo que já podia estar — como grande parte de Anthea — coberto de cascalho atômico e resíduos queimados de uma fúria simiesca. Mas tinham-lhe dito, por fim, que a viagem devia ser tentada, numa das velhíssimas naves que ainda permaneciam debaixo do solo. Foi informado, um dia antes da jornada, que os planos estavam delineados, que a nave estaria pronta quando os planetas se encontrassem na posição ideal para a travessia. Não conseguia dominar o tremor ao contar aquilo à mulher...

Aguardou no quarto do hotel, sem se mexer da poltrona, até as cinco horas. Depois levantou, ligou para o escritório da empresa de compra e venda de propriedades e disse que o podiam esperar até às cinco e meia. Abandonou o quarto, deixando a garrafa em cima do bar, meio vazia.
Esperava que a temperatura externa tivesse refrescado bastante, mas enganou-se.

Escolhera aquele hotel por ficar a três quarteirões de distância do escritório que ia visitar, onde iria iniciar-se a enorme transação que já planejara. Conseguiu caminhar até lá; mas o ar quente, obstinado, pesado, como uma almofada, o fez ficar tonto, confuso e fraco. Por breves momentos pensou que teria de regressar ao hotel e pedir aos indivíduos que viessem encontra-lo, mas continuou.
E depois, quando deparou com o edifício, descobriu uma coisa que o assustou: o escritório que pretendia visitar situava- se no décimo nono andar. Não esperara que houvessem edifícios altos em Kentucky, não  tinha previsto.

Subir a escada estava fora de questão. E não sabia nada acerca dos elevadores. Se subisse demasiado rápido, ou balançasse muito, poderia ser desastroso para seu corpo já castigado pela gravidade. Mas os elevadores pareciam novos e bem fabricados e, pelo menos, o prédio possuía ar condicionado. Entrou num deles, onde só se encontrava o ascensorista, um homem idoso, de ar tranquilo, com uma farda manchada de tabaco.

Receberam mais uma passageira, uma mulher bonita, roliça, que veio correndo ofegante, no último momento. Então o ascensorista fechou a porta de metal e Newton disse: — Décimo nono, por favor. 

A mulher disse: — Décimo segundo — e o velho, indolentemente, de certo modo desdenhosamente, apoiou a mão na alavanca de controle manual.

Newton percebeu logo, apavorado, que não se tratava de um elevador moderno, mas antigo, restaurado. Mas essa percepção surgiu com um momento de atraso porque, antes que pudesse protestar, sentiu o estômago revirar, os músculos enrijecerem de dor, enquanto o elevador se sacudia, hesitava, balançava de novo e, depois, disparava para cima, duplicando, por instantes, o seu peso já triplicado.

Então, tudo pareceu acontecer de repente.

Viu a mulher a olhar para ele e percebeu que seu nariz sangrava, manchando a parte da frente da camisa. Ao mesmo tempo ouviu — ou sentiu, no corpo — um estalar, e as pernas cederam e caiu, grotescamente contorcido, enquanto perdia a consciência, o espírito mergulhava numa escuridão tão profunda como o vazio que o separava do seu lar...

Já estivera duas vezes sem sentidos antes, uma durante o treino no centrifugador no seu planeta, e outra durante a aceleração da decolagem de sua nave. De ambas tinha se recuperado rapidamente, despertando cheio de confusão e dor. Também daquela vez acordou para o sofrimento de um corpo maltratado e para a temerosa confusão de não saber onde estava.

Encontrava-se deitado de costas em qualquer coisa macia e mole e havia luzes fortes batendo-lhe nos olhos. Semicerrou-os e depois se retraiu.


No outro lado da sala, uma mulher estava de pé, junto a uma mesa, segurando um telefone na mão.
A mulher do elevador.

Ela hesitou, vendo-o acordado, e não parecia saber o que fazer ao telefone, segurando-o molemente na mão. Sorriu-lhe, com um ar vago.

— O senhor sente-se bem?

A voz era semelhante à de alguém... fraca e suave.

— Creio que sim. Não sei...

As pernas estavam estendidas. Receava tentar mexê-las. O sangue da camisa já estava frio. Não podia ter estado muito tempo inconsciente. — Creio que machuquei as pernas...

Ela olhou-o, com um ar sério, sacudindo a cabeça.

— Uma delas ficou dobrada para cima como um daqueles arames antigos com que se prendiam as mercadorias.

Newton continuava a observá-la, sem saber o que dizer, tentando pensar no que deveria fazer. Não podia ir para um hospital; haveria um exame, radiografias...

— Faz cinco minutos que estou tentando  arranjar-lhe um médico. — A voz era rouca e ela tinha um ar assustado. — Já liguei para três, mas não encontro nenhum disponível.

Ele pestanejou, numa tentativa de pensar com clareza.

— Não. Não! Não chame...

— Não chamar um médico? Mas tem que ser examinado.

Parecia cheia de dúvidas, preocupada.

— Não.

Experimentou dizer mais qualquer coisa, mas, subitamente, foi invadido pela náusea e, mal sabendo o que fazia, deu consigo a vomitar para um dos lados do sofá, as pernas doíam a cada espasmo. Mas as luzes eram demasiado fortes, queimavam os olhos, mesmo através das pálpebras fechadas — as pálpebras finas, translúcidas. Levantou um braço, para tapar.

De certo modo seus vômitos pareceram acalmá-la. Talvez fosse a humanidade reconhecível no ato. A voz dela era mais calma.

— Posso ajudar? Há alguma coisa que possa fazer para te ajudar? Posso arranjar-lhe uma bebida...

— Não. Não quero...

Subitamente, a voz da mulher pareceu mais normal, como se estivesse estado à beira de histeria e acabasse de se libertar da situação. Virou-se para evitar as luzes.

— Pode... pode deixar-me sozinho, apenas? Ficarei melhor... se puder descansar.

Ela riu baixinho.

— Não sei como. Muita gente por perto. O ascensorista deu-me a chave do escritório.

Tinha de fazer qualquer coisa em relação às dores, ou não permaneceria consciente por muito tempo.

— Escute Tenho uma chave do hotel no bolso, do Brown Hotel. Fica a três quarteirões daqui, ao descer a rua. Você...

— Eu sei onde é o Brown Hotel.

— Oh. Isso é ótimo. Pode pegar na chave e ir buscar uma pasta preta, no armário do quarto? E trazer para mim? Tenho... remédios, lá dentro. Por favor. Posso pagar...

— Não estou preocupada com isso. — Ele virou-se e abriu os olhos para vê-la por momentos. A cara larga estava carrancuda, as sobrancelhas franzidas como quem medita profundamente. Depois desatou a rir. — Não sei se me deixariam entrar no Brown Hotel... nem em um dos quartos, como se fosse meu.

— Por que não? — Sentia-se como se fosse outra vez desmaiar, não tardava. — Por que é que não pode?

— O senhor não entende muito, não? Tem a aparência de nunca se ter se preocupado com isso. Eu só tenho este vestido e, mesmo assim, é velho. Podem não aprová-lo.


Ele sentiu-se outra vez sem forças, o corpo como se flutuasse. Pestanejando, forçou-se a aguentar, tentando não ligar para a fraqueza e a dor.

— Na minha carteira. Tire algumas notas de vinte dólares. Dê o dinheiro aos ascensoristas. — A sala girava, as luzes enfraqueciam, pareciam deslocar-se numa sombria procissão, perante os seus olhos.

— Por favor...

— Pai do Céu! — exclamou ela. — Eu podia fugir com o dinheiro.

— Não faça isso! — pediu ele. — Por favor, ajude-me. Sou rico. Posso...

— O senhor aguenta aí. Eu trago os remédios, nem que tenha que comprar o hotel. Tem só que ter calma.

Ouviu-a fechar a porta enquanto desmaiava...

Pareceu-lhe ter passado apenas um segundo até ela regressar à sala, e abrir a pasta em cima da mesa.
A seguir, depois de tomar os analgésicos e os comprimidos que iam ajudar a perna a sarar, o ascensorista apareceu com um homem que disse ser o superintendente do prédio. Newton teve que assegurar a eles de que não pretendia processar ninguém, que, realmente, se sentia ótimo e que tudo correria bem. Não, não precisava de uma ambulância. Sim, assinaria um documento para livrar o edifício de responsabilidades. Agora, poderiam lhe arranjar um táxi?
Quase desmaiou de novo, várias vezes, durante aquela frenética discussão, e quando acabou, desmaiou mesmo.

Acordou num táxi, com a mulher ao lado. Ela sacudia-o com cuidado.

— Para onde quer ir? Onde é a sua casa?

 — Eu... não sei.