segunda-feira, 2 de junho de 2014

A coisa - Alan Dean Foster (Parte 6)



A sala de recreação sempre fora o local mais movimentado do complexo.
Ao contrário dos cientistas, o pessoal de manutenção tinha uma quantidade considerável de tempo livre. Sua experiência era exigida apenas em casos de emergência, os procedimentos normais de verificação geralmente levavam apenas quatro ou cinco horas por dia. Passavam o resto de seus dias relaxando com uma intensidade que só os verdadeiramente isolados podiam apreciar.

Figuras minúsculas de madeira giravam furiosamente em traves metálicas, manipuladas por Nauls e Clark. A mesa de totó em que estavam jogando, fora duramente golpeada, a pintura arranhada, as pernas dobradas por chutes frustrados, juntas de borracha faltando. O adestrador de cães e o cozinheiro jogavam duro.
Sanders relaxava em um canto em um dos antigos e bastante usado sofá​​. Estava folheando uma edição antiga da revista Playboy, assobiando para si mesmo e desejando, como sempre, estar em outro lugar. Em qualquer outro lugar. As cadeiras e a mesa estavam ocupadas por Bennings, Norris, o gerente da estação, e um baralho de cartas sujas.



— Me dá duas — disse Garry colocando na mesa um par de cartas viradas para cima. Bennings obedientemente deu duas cartas para ele, em seguida, um para Norris e três para si mesmo. Garry estudou as novas cartas, descobriu que agora tinha um ás, um quatro, um dois, um rei e uma rainha. Ótimo!
Algo o cutucou por debaixo da mesa, em seguida, foi irritar Bennings. A julgar pelo tom do meteorologista, como ele respondeu à interrupção, não tinha uma mão tão boa quanto Garry.
Olhou para o jogo de futebol frenético e gritou: — Clark, dá para colocar esse vira-lata com os outros, onde ele pertence! Estamos tentando jogar pôquer aqui!
Clark trocou um olhar cúmplice com Nauls, aproximou-se e inclinou para olhar debaixo da mesa.
— Tudo bem, garoto — disse em tom persuasivo para o husky. — Está tudo certo. Ninguém vai te machucar. Vamos, agora!
Ele estendeu a mão e agarrou o animal pela juba ao redor de seu pescoço.
Clark puxou suavemente o cão e começou a andar em direção à porta. Ao passarem pela Bennings, o tratador olhou por cima do ombro.
— Tentar jogar pôquer é bom... mas quando se tem uma sequência.
Bennings fez um barulho rude e jogou as cartas em Clark, que se esquivou e correu para fora, com o cão trotando ao lado dele.

O laboratório era maior do que a maioria dos quartos, com exceção das áreas de armazenagem do posto e fora bem equipado, em contraste com os móveis da sala de recreação. Os tubos de vidro e copos brilhavam debaixo de lâmpadas fluorescentes brilhantes. A pia de aço em prata brilhante. Mesmo o chão era relativamente limpo.
Cooper estava trabalhando na mesa de centro. Suas luvas manchadas de vermelho escuro. O outro corpo estava nas proximidades, coberto com um lençol branco e aguardando sua vez. O cadáver que Cooper estava trabalhando, ou melhor, em que, era do atirador frenético que havia invadido o complexo mais cedo naquela manhã e atacara Bennings e Norris.





Blair debruçado sobre um microscópio, estudava uma amostra, enquanto Fuchs preparava cuidadosamente uma nova. O assistente biólogo, utilizava o bisturi e pinças com a habilidade de alguém acostumado a reparar um fino relógio.
Cooper limpou o suor da testa com as costas do antebraço quando se virou para longe do corpo, que já estava começando a apodrecer no ar quente do laboratório. Tirou as luvas manchadas e as jogou no lixo.
— Nada de errado com este — anunciou a seus dois colegas de trabalho. — Fisiologicamente ao menos — soltou um suspiro cansado e olhou para Blair. — Teve sorte?
— Nem de longe.
— Nada tóxico?"
Blair afastou-se da ocular e piscou para o médico. — Nada de drogas ou álcool, total ausência de bactérias intestinais hostis. Nada. Tudo normal.
Cooper franziu os lábios e assentiu. Abriu uma gaveta e tirou um par limpo de luvas cirúrgicas descartáveis. Desviou o olhar para a bagunça humanoide estranhamente distorcida sob o lençol branco.
— Fuchs, deixe as lâminas por um minuto e me dê uma mão aqui.



— Você está saudável o suficiente para tornar-se um problema, menino — Clark disse ao husky enquanto o conduzia através do túnel longo e frio que levava ao canil. Depois de retirá-lo da sala de recreação, tinha cuidadosamente colocado um novo curativo ao quadril lesionado do animal.
— Você tem que entender, para a maioria dos caras, você é apenas mais uma peça de uma máquina do acampamento. A maquinaria não está autorizada a intervir, especialmente do jogo de cartas.
Brincou afagando a cabeça do cão entre as orelhas. Ele lambeu a mão em agradecimento.
— Você não me chateia, no entanto. Talvez possamos ficar com você permanentemente. Não acho que o governo norueguês se oporia. Você vai ter que aprender a ficar com seus amigos, contudo.
Destrancou a porta do canil e trouxe o husky para dentro.
O canil era uma caixa de metal de cerca de vinte metros de comprimento e cinco de largura. Não era bem iluminada e cheirava forte, a porta na extremidade dava acesso a uma rampa que conduzia para fora. Os não perturbaram o tratador, pois estavam acostumados com ele. Alguns estavam dormindo, enrolados uns contra os outros para obter calor extra. O canil era aquecido, mas não igual ao resto do posto. Muito calor era prejudicial para os animais.
Dois deles rondavam o tambor de metal que servia de bebedouro. Outro mordiscava a pilha de alimentos secos que o tratador tinha despejado antes. Outros espreguiçaram e esfregaram contra suas pernas. Dois deles cheiravam curiosamente seu novo companheiro.
Clark cumprimentou vários dos outros cães.
— Nanook, Arcanjo, venham conhecer o... bem, vamos encontrar um nome para você um destes dias, amigo.
Ele empurrou o novo cão para a frente. — Agora você fazer amigos.
Dirigiu-se aos outros conforme eles lentamente começaram a se reunir ao redor.
— Lobo, Buck... o resto de vocês, façam o nosso visitante se sentir em casa, ouviram?
Ele deu ao recém-chegado um último tapinha tranquilizador, então se virou e saiu, trancando a porta atrás dele.
O husky ficou lá ouvindo. Não grunhiu ou rosnou. Depois que Clark saiu convencido de que o novo animal iria se adaptar com sucesso ao seu novo ambiente. Cães de trenó eram muito adaptáveis.


Childs deitado na cama em seu quarto assistia à televisão portátil aparafusada à parede. Na tela, uma dona de casa estava tentando adivinhar o preço de uma nova lavadora-secadora. O locutor e o público combinados em fazer parecer uma questão de vida ou morte, em vez de um jogo. Childs não dava a mínima para game shows, mas este era diferente. Cada homem podia pedir fitas de vídeo, na lista atendida pelos voos regulares de fornecimento que iam para os Estados Unidos. A maioria dos homens pedia jogos de futebol, filmes, comédias. Childs sempre pedia este game show em particular, para a consternação do funcionário de abastecimento em Wellington. Todo mundo na base assumido uma preferência que tinha algo a ver com nostalgia e, na verdade, Childs tinha religiosamente assistido a este programa em Detroit. Ele assistia por que quem selecionava os participantes da audiência sempre conseguia escolher um fluxo constante de mulheres gostosas.




Childs tinha mais prazer de vê-las ganhar aparelhos de som e câmeras e viagens para Bermudas do que as atrizes cansadas que povoaram as fitas pornôs que também estavam disponíveis. Eram mulheres reais, e não estavam representando. Ele gostava de assistir as mulheres bonitas de Phoenix e Nova York e Muncie saltar alegremente ao redor do palco, uma verdadeira delícia, muito mais do que todos os gemidos e suspiros de loiras de trinta anos de idade, tentando parecer dezoito anos.
A senhora na tela ganhara a máquina de lavar-e-secadora, e atravessava alegremente o palco para reivindicar seu prêmio. Childs se levantou e inclinou-se para desligar o VCR. Ele já tinha visto esta fita.
Hora de algo novo. Correu os olhos para baixo da caixa de fita, selecionado outra e a inseriu no leitor, pressionando ‘play’ no controle. Desta vez, o objetivo do jogo era rolar dados de grandes dimensões em uma mesa de jogo para ganhar dinheiro e  mercadorias. A senhora escura feliz com o dinheiro da rede de televisão, era como uma noite quente de agosto. Childs encostou-se na cabeceira da cama e se pensou no por que todas as mulheres que prestavam já estavam casadas.
Palmer estava estirado na cama em frente do mecânico, lendo. O som da televisão não o incomodava. Nada poderia incomodá-lo quando estava fumando. Ele alternava com Childs o cultivo de uma semi secreta "fazenda". A colheita da temporada passada tinha sido particularmente boa. Bastante fumaça flutuava enchendo a sala.
Childs acenou para ele e Palmer entregou o bagulho aceso. O grande mecânico deu uns tapas e pediu mentalmente ao diretor de imagens do game show por uma tomada aérea da plateia, enquanto Palmer retornou à estimulação cerebral proporcionada pelas obras completas do filósofo de renome, Gilbert Shelton.


Macready estava sentado sozinho no bar, olhando para o monitor de televisão de lá. Estava tomando a bebida que ele mesmo tinha misturado para si mesmo.
O bar na verdade era uma grande caixa de armazenamento de metal. Um lado tinha sido cortado e o interior decorado com prateleiras e suportes para garrafas. A carta de vinhos elegantes, um produto da caligrafia talentosa de Norris, listava doze tipos diferentes de cerveja de Lager Foster (australiano) a Dos Equis (México) até a rara Hinano, fabricada no Taiti. Havia também garrafas que continham líquidos mais escuros e mais potentes.
Um sinal da cerveja Hamms estava pendurado em um ângulo torto na parede detrás do bar, suas águas azul-celeste correndo morro abaixo em um lago mecânico interminável. Macready limpou os lábios e tomou outro gole de sua bebida.
Ele estava forçando-se a assistir cada metro de fita de vídeo que tinha recuperado do acampamento norueguês.
Até agora o seu conteúdo tinha sido inalteravelmente chato. Cenas intermináveis ​​de homens no trabalho, brincadeiras, a colheita de amostras de gelo e a gravação de informações. Em outras palavras, cenas de todas as atividades normais do dia-a-dia que você esperaria ver em tal estação.



Pior, o cinegrafista não era nenhum Abel Gance, Macready disse a si mesmo com tristeza. O quadro tendia a ficar fora de foco a maior parte do tempo, e balançava, de modo que seus olhos latejavam e sua cabeça doía.
A mesma mesmice em cada fita. Não havia nada em qualquer uma delas para sugerir que algum dos homens retratados no trabalho ou lazer, ficou à beira de um colapso mental. Todos eles pareciam perfeitamente normais, e o fato de que não podia entender uma palavra do que diziam, não fazia diferença nessa avaliação.
Claro, um colapso violento pode ocorrer de repente e sem qualquer manifestação externa de problemas internos por parte do perturbado. Cooper reiterou esse ponto quando o piloto lhe tinha consultado sobre o assunto.
Também discutiram a improbabilidade de um candidato para o tratamento psiquiátrico, exibindo seus sintomas para a câmera. Mas Macready continuou a assistir com olhos turvos as fitas, na tênue esperança de descobrir algo revelador, alguma pista sobre o que poderia ter perturbado a rotina diária do plácido acampamento norueguês.

E ele já estava em sua terceira bebida.

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