sábado, 27 de junho de 2015

INTERSTELLAR - Greg Keyes (Parte 24)

 
O interior da Endurance estava uma bagunça só. Tudo o que poderia ser solto tinha sido, juntamente com algumas coisas que supostamente não podiam. Sem gravidade os detritos giravam loucamente, por todos os lugares, fora os jatos de vapor e ar escapando a partir de rupturas no casco danificado.
CASE e TARS lidavam com os sistemas em estado crítico enquanto Cooper e Brand faziam um inventário do resto da nave.

Até aquele momento, Cooper poderia dizer que a bomba populacional ainda estava intacta e funcional. Brand faria uma análise mais profunda depois. Pessoalmente, ele descobriu que odiava a visão daquela coisa. Podia significar vida para a raça humana, mas representava a morte de seus filhos. Na verdade, a raça humana era mais do que uma coleção de organismos biológicos solitários. Era o resultado de um milhão de anos de existência da espécie, um milhão de anos de histórias, mitos, ideias importantes e sem sentido, poesia, filosofia, engenharia, ciência.

Ser humano era herdar um pai, um irmão, uma família, uma comunidade, uma cidade, uma cultura, uma civilização. Os seres humanos não tinham sido somente objetos biológicos desde antes de se tornarem humanos.

Claro que ele e Brand poderiam trazer alguns milhares de entidades biologicamente humanas à vida com aquela coisa, mas poderiam os dois realmente substituir a imensa teia de herança? Realmente estariam salvando a raça humana? Recuperar uma única semente de uma floresta antes que fosse queimada, não significa que salvou a floresta. Você nunca poderia replicar sua arquitetura intrincada, seu ecossistema único.

Embriões humanos descongelados não iriam “salvar” a raça humana.

A raça humana, como ele conhecia, iria morrer. O que quer que saísse daquela máquina, seria algo diferente. Talvez melhor, talvez pior, mas não o mesmo.

CASE pediu por sua atenção. – Estamos indo na direção de Gargantua. Devo usar os motores principais? 
– Não!– disse Cooper, com firmeza. – Deixe-nos deslizar enquanto pudermos. 
Ele estava pensando sobre isso. Não podia ter certeza de tudo, mas sabia que evitar Gargantua não iria levá-los a qualquer lugar. Tomou impulso contra uma parede e voou para onde TARS soldava um anteparo.
– Então, o que temos? 
– Temos boas e más notícias – TARS começou.
– Conheço essa história, TARS. Diga de uma vez!


***

Amélia sentiu um arrepio de pavor quando Cooper entrou. Parecia que estavam presos a sucessivos desastres, um após o outro. Seja qual fosse a notícia que pudesse ter, as chances eram de que não seria nada de bom.

Ela estava tentando se ocupar com seus deveres, principalmente fazendo o possível para poderem implementar o plano B. A bomba populacional tinha sido bastante agredida, mas nada que não conseguisse consertar com uma pequena ajuda de CASE. Fizeram uma correção temporária que exigiu canibalizar o crio-leito de Romilly, ele não iria mais precisar dele. Uma vez que descessem ao planeta, ela poderia usar algumas partes da Endurance para terminar o conserto.

Não poderiam descongelar todos os embriões de uma só vez, a bomba precisaria continuar a funcionar durante décadas, pelo menos.
Ela se perguntou quantos filhos ela e Cooper seriam capazes de criar, agora que eram apenas os dois. Cinco? Dez? Pelo menos ele tinha alguma experiência nesse sentido.
Você quer uma família grande, Coop? Esta iria ser uma conversa estranha. Provavelmente dolorosa também, ao menos para ele. Mas tudo podia ser em vão, de qualquer maneira, a Endurance podia não ser capaz de transportá-los, por conta do dano que sofrera. E, mesmo se pudesse, o planeta de Edmunds seria melhor do que os outros? E se “Eles”, quem quer que fossem os misteriosos arquitetos, estivessem realizando uma peça cruel com eles, este tempo todo? Ou, talvez pior, não possuíam qualquer conceito real do que os seres humanos precisavam para estabelecer uma nova casa?

Se fosse pedido a uma pessoa comum encontrar um novo ambiente adequado para bactérias que viviam de quimiossíntese em torno de fontes hidrotermais, ela saberia por onde começar? E se a diferença entre tais bactérias e o Homo Sapiens não fosse significativa para  seres que vivem em cinco dimensões e conversavam através de gravidade?
Alguns organismos da Terra bem que poderiam viver muito bem em ambos os planetas, de Miller ou Mann. Só que não serviriam para a vida humana. Se realmente sabiam o que estavam fazendo, por que não poderiam apontar um mundo bom para eles?
Mas então ela se lembrou da imagem distorcida quando passavam pelo buraco de minhoca, e não teve coragem de acreditar que havia um engano envolvido nisso tudo. E ainda tinha fé em Wolf, em seu planeta, em tudo que ela tinha dito naquele dia, tentando convencer Cooper e Romilly sobre ser a melhor opção.

O planeta de Edmunds era onde eles precisavam ir. Só tinham que chegar lá. O que, para ela, já não parecia provável.
Esperou que Cooper dissesse o que tinha vindo dizer a ela.
Ele parou ao alcance do braço dela. Ambos ainda selados em seus trajes espaciais, mas ainda assim sentiu-se confortável com esta proximidade.

– O sistema de navegação foi totalmente destruído. E não temos suporte de vida o suficiente para voltar a Terra. Mas... – acrescentou – acho que conseguiremos chegar ao planeta de Edmunds. 

Ela tentou ler seu tom de voz, sua expressão. Ela sabia que isso tinha que ser devastador para ele, e o alívio, não, a felicidade que ameaçava dominá-la teve de ser mantido sob controle. Ela não podia deixá-lo ver. Wolf podia estar vivo, ou morto. Mas para saber, saber com certeza, só fazendo a viagem.

– E quanto ao combustível?  – Perguntou ela, tentando fixar-se nos aspectos práticos da situação.
– Não é o suficiente. Mas eu tenho um plano. Vamos deixar Gargantua atrair-nos até perto do horizonte e, em seguida, usamos esta atração para escapar e nos impulsionar até Edmunds. 
Ele explicou com tanta facilidade que poderia muito bem ter falado sobre fazer um passeio em uma caminhonete. No entanto, ela sabia que não era assim tão fácil.
– Manualmente? 

Cooper tinha se mostrado um grande piloto, mas ainda assim era apenas humano. Como faria uma manobra ‘estilingue’ em torno de um buraco negro sem o sistema de navegação? O menor erro iria mandá-los para Gargantua e sua singularidade.


– É para isso que fui treinado – disse ele confiante.
Se não conseguissem, inferno. Provavelmente não iriam sentir de qualquer maneira.
– E a dilatação do tempo?  – Ela perguntou em voz baixa.
Sua boca se transformou em um pequeno sorriso melancólico, e ela viu os traços de sua tristeza.
– Nenhum de nós pode se dar ao luxo de se preocupar com a relatividade agora – disse ele, e ela viu algo mais em sua expressão. Uma espécie de tranquilidade, como se em sua tristeza, encontrasse algum tipo de paz.
– Eu sinto muito Cooper – disse Brand, e sem pensar direito, foi abraçá-lo. Em trajes espaciais, é claro, havia pouca sensação física, mas tocar os visores dos capacetes no momento era tudo que podiam.




Mais uma vez caíam na direção ao nada escancarado de Gargantua.
Na Ranger que sobrou, Cooper sentou-se sozinho em preparação. Viu como TARS separou o módulo da sofrida Endurance.
Desejava ter tido mais alguns momentos com seus filhos. Cada segundo valera ouro.

***

O efeito estilingue não era nada novo. Cometas tinham feito isso desde antes da formação das estrelas. Os seres humanos tinham utilizado da manobra desde quando se aventuraram pelo espaço. O projeto Mariner 10 havia sido o primeiro, enviando a nave espacial não tripulada passando por Vênus para explorar Mercúrio, seguida pela Voyager e a Galileo.
Basicamente se enviava uma nave espacial na direção de um corpo celeste com enorme atração gravitacional, digamos, um planeta. A nave ganha velocidade na medida em que “cai” em direção ao planeta, e esta mesma velocidade é usada para escapar de sua atração gravitacional, escolhendo uma trajetória diferente. E já que o planeta está em movimento, a nave pode pegar velocidade orbital do planeta, adicionando-a a sua própria velocidade. Desta forma, pode alcançar o alvo final sem queimar um pingo a mais de combustível.
Isso era o que Cooper pretendia fazer.

Naturalmente, Gargantua não era um planeta, nem mesmo no sentido convencional, uma estrela. E mesmo Romilly classificando-o como um buraco negro – mais suave – as chances eram mínimas. Romilly, em seus vinte e tantos anos de anotações havia meticulosamente medido e elucidado a rotação de Gargantua. Uma manobra estilingue a partir de um buraco negro era perfeitamente plausível, mas um pouco mais complicado do que com um planeta.
Cooper verificara tudo pela enésima vez, na esperança de que Romilly não tivesse surtado enquanto sozinho, porque Gargantua não iria conceder-lhes a menor clemência para o menor erro.

***

De volta a Endurance, Amélia assistiu o módulo se soltar enquanto Cooper e TARS preparavam a manobra.
A voz de Cooper veio pelo rádio.

– Uma vez que reunirmos bastante velocidade em torno de Gargantua, usaremos os propulsores foguetes dos módulos um e dois para nos empurrar para fora de gravidade do buraco negro – explicou ele, enquanto o módulo um era atracado na parte de trás do anel.
– A ligação entre eles está destruída – disse Cooper. – Então vamos controlar manualmente. Quando o módulo um se esgotar, desacoplaremos TARS... Que será sugado para o buraco negro. 

Amélia pensou que estavam brincando no início. TARS e Cooper faziam isso um com o outro. Às vezes, ela queria poder mudar as configurações de humor em ambos. Mas algo lhe disse que, desta vez não havia qualquer humor envolvido.
– Por que desacoplar TARS? 
– Temos que reduzir o peso para escapar da gravidade – explicou Cooper. – A Terceira Lei de Newton. A única forma dos homens chegarem a algum lugar é deixando algo para trás.
Doyle, Romilly, Mann, seu pai, e agora TARS? Quanta perda ela poderia suportar?
– Cooper, você não pode pedir a TARS para fazer isso...
– Ele é um robô, Amélia. Eu não tenho que lhe pedir para fazer coisa alguma.
– Cooper – ela retrucou. – Seu imbecil!
– Desculpe – disse Cooper. – O sinal está falhando um pouco...




Ela estava pronta para lançar um discurso inflamado, mas TARS intercedeu: – É o que planejamos, doutora Brand. É nossa única chance de salvar o povo da Terra. Se eu achar uma forma de transmitir dados quânticos, talvez ainda sobrevivam. 
A calma do robô, o tom razoável aplacou sua raiva.

– Vamos torcer que haja alguém lá para ser salvo – ela permitiu-se dizer, sentindo-se mais vazia do que nunca.
Seria possível? Será que ainda fazia sentido?

Mas se houvesse uma maneira de provar que seu pai estava errado, para resgatar o plano A, eles tinham que tentar, mesmo parecendo tão errado que TARS seria o único a fazer o sacrifício. Deveria ser ela, mas já era tarde demais para discutir. E para ser justo, nem os robôs nem Cooper sabiam o bastante sobre a bomba populacional. Ela teria que estar lá. Logicamente, deveria ser TARS, e não ela.
Mas ainda assim era difícil assistir de um lugar seguro, alguém pagando o pato por ela.

***



Conforme os motores empurravam para frente, cada vez mais rápido, a nave começou a tremer. Amélia apertou seu cinto e tentou não pensar o que aconteceria se Cooper estivesse ligeiramente errado em seus cálculos. Estavam tão perto agora que tudo o que ela podia ver era um maciço oceano envolto em ouro e gás brilhante.
Parecia impossível escaparem, caíam mais e mais rápido.
Nada tão frágil e mortal como a Endurance teria uma chance diante de tal fome cósmica.
Mas ela tinha que acreditar, tinha que acreditar que Cooper poderia conseguir.

***

E, assim de repente, eles estavam lá, no ponto mais crítico da queda. Pelo menos ela pensava que fosse.

– Velocidade máxima alcançada – CASE anunciou. – Preparar ignição dos propulsores de escape. 
– Pronto – TARS disse.
– Pronto – Cooper ecoou.

Amélia não conseguia desviar os olhos do horizonte impossível, o monstro de coração negro que jazia abaixo deles.

– Ignição do motor principal em três, dois, um, agora! – CASE entoou.



O casco vibrou quando os principais motores dispararam, somando-se a inércia já chicoteada por Gargantua, com a gravidade do buraco negro contra eles, em uma demonstração de jiu-jitsu estelar. Mas o gigante não iria desistir sem lutar. A Endurance foi levada aos seus limites, como uma picape de tração nas quatro rodas tentando sair de um buraco de areia, com as rodas girando e deslizando.
Inércia não era suficiente. Nem os motores principais. Era necessário mais impulso.

– Módulo um – continuou CASE – motores no meu comando... três, dois, um, acionar!
– Acionar – TARS repetiu, e a Endurance protestou ainda mais. Seu esqueleto de metal de forma audível protestava conforme o pequeno módulo esvaziava suas reservas de combustível em uma queima maciça, no máximo.
– Ranger dois, motores ao meu comando – disse CASE. – Três, dois, um, acionar!
– Acionar! – Ela ouviu Cooper gritar.

Amélia viu as estrelas novamente quando se afastaram de Gargantua, em direção ao grande espetáculo do céu noturno, muito mais brilhante do que o do sistema solar. E em algum lugar lá fora, ofuscado por nebulosas e pulsares estava o ponto vermelho fraco para o qual apontavam.
O planeta de Edmunds.
Inacreditavelmente, o estilingue estava funcionando.

– Essa pequena manobra custou-nos 51 anos – informou Cooper.
– Você não parece mal para alguém de cento e vinte anos – Amélia respondeu um pouco tonta.
– Módulo um, prepare-se para desacoplar – disse CASE. – Três...

Ela podia ver o módulo com TARS nos controles, e sua breve alegria desapareceu tão rapidamente quanto veio. O combustível do módulo fora gasto, e agora era apenas um peso morto. Como TARS.
Algo era útil, ou um peso morto, e se fosse um peso morto você deixa para trás. Eles haviam se livrado de peso desde o lançamento quando ainda estavam na atmosfera da Terra. Como sabia, você tem que deixar algo para trás para poder seguir adiante.
Será que seu pai havia se sentido assim sobre a Terra, e o resto da raça humana? Era peso morto, deveriam ser removidos, de modo que um punhado conseguisse seguir em frente?

Mas TARS não era um peso morto. TARS era TARS. Ele tinha humor...

– Dois, um, agora!– disse CASE.
Através da janela da cabine, viu TARS em movimento.
– Separar.
E o módulo desapareceu.
– Adeus, TARS – disse ela.


 
– Vejo você do outro lado, Coop – despediu-se TARS com otimismo.
Amélia franziu a testa. O que isso queria dizer?
O módulo começou a cair velozmente em direção ao buraco negro.
– CASE?  – Ela ouviu Cooper. – Excelente voo imprudente. 
– Aprendi com o mestre – o robô respondeu.
Os motores da Ranger estalaram e morreram, também esgotara seu combustível.
– Ranger dois – CASE disse: – prepare-se para separar! 

Por um instante, ela pensou que tinha ouvido mal, mas então olhou para o rosto de Cooper e viu um pedido de desculpas escrito nele.

– Não! – Ela gritou agarrando as fivelas de seu equipamento.
– Ao meu comando – disse CASE.
Livre dos cintos, ela jogou-se na direção da janela.

– O que você está fazendo? – Perguntou ela.
– A terceira lei de Newton– Cooper respondeu. – Você tem que deixar algo para trás. 
... Dois...

Ela empurrou o visor do capacete contra a janela.

– Você me disse que tinha recursos suficientes para nós dois!
... um.
Cooper sorriu para ela com carinho.
– Ei. Nós concordamos em noventa por cento. 
– Agora!
Ela enxergou Cooper através das joias de suas lágrimas a deriva, formando esferas perfeitas dentro de seu capacete. Ele olhou para ela uma última vez, em seguida apertou o botão.
– De... começou a dizer, e então engoliu em seco. – Desacoplar! 

E Cooper e a Ranger se foram.



Cooper observou a unidade principal da Endurance diminuir de tamanho ao ponto de parecer com uma estrela, acelerando para longe de Gargantua, enquanto ele caia em direção a enorme escuridão morta.

Sua respiração acelerou quando se perguntou o que iria sentir. Olhou para o horizonte, a luz distorcida das estrelas,  a ultima luz, pensou ele, que iria ver.
Olhando para cima, no entanto, viu o universo como se através de uma janela circular, uma vigia para o infinito. Havia uma beleza nisso, pensou, enquanto observava uma corrente de jato de plasma incandescente em seu campo de visão. Nunca imaginou que poderia equilibrar o terror em uma mão e o deslumbre em outra, tão perfeitamente. E, de fato, conforme a queda acelerou, o terror começou a prevalecer.


– TARS? Você está aí?
Sua única resposta foi estática, enquanto observava o nariz da Ranger para baixo, para a escuridão. Logo em seguida, percebeu que ele estava perdendo a luta contra o pânico.
Esperava terminar com alguma dignidade, mas agora tudo o que podia fazer era não gritar.

***

Muito acima, Amélia ouviu a respiração de Cooper. Tornava-se cada vez mais alta. Chorando, ela fechou os punhos tão apertados que suas unhas marcaram suas palmas.
E então, de repente, enquanto sua respiração subia num crescendo, o rádio silenciou.
Olhou para o espaço, a última sobrevivente da tripulação humana do Endurance.
Gargantua ainda preenchia seu campo de visão, mas cada respiração dela colocava milhares de quilômetros entre ela e o buraco negro.
Durante muito tempo, não conseguiu desviar o olhar. Mas afinal olhou para a esfera vermelha distante que agora era seu destino.
Olhava para aquele ponto vermelho com esperança.

***


– É totalmente preto – Cooper disse, sabendo que provavelmente ninguém poderia ouvi-lo. – Não há luz. – Fez uma pausa. – Brand? Você pode me ouvir? 





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