sábado, 20 de junho de 2015

INTERSTELLAR - Greg Keyes (Parte 21)





Mesmo sabendo melhor que ninguém, que seu traje era capaz de manter  uma temperatura interna confortável, Cooper sentiu frio quando o vento aumentou tornando-se um vendaval intermitente, correntes de gelo em pó assobiando contra eles, e as paredes do cânion. Começou a duvidar da previsão de Mann de que o vento logo desapareceria.

O médico estava em um ritmo que era difícil de acompanhar, e Cooper descobriu que tinha ficado um pouco para trás. Mann notou, e parou para deixá-lo alcançá-lo.

– Você sabe por que não enviam máquinas nestas missões, Cooper? – Perguntou Mann.
– Francamente, não – Cooper ofegava. TARS ou CASE poderiam facilmente ter realizado o mesmo que Mann, Miller, e os outros tinham feito. Talvez TARS poderia ter sobrevivido a onda que matou Miller, pelo menos o suficiente para enviar um sinal dizendo “Fiquem longe daqui!”
– Uma viagem para o desconhecido requer improvisação – disse Mann. – As máquinas não podem improvisar porque você não pode programar o medo da morte. O instinto de sobrevivência é a nossa maior fonte individual de inspiração. – Parou e virou-se para Cooper, e uma imagem de olho de peixe do cânion refletiu sobre o vidro de seu capacete.
– Você, por exemplo. Um pai... com um instinto que se estende a seus filhos.
– É por isso que eu estou indo para casa – disse Cooper. – Com ou sem esperança. 
– O que as pesquisas indicam ser a última visão antes da morte? Seus entes queridos. Os rostos deles.

Ficou claro que a conversa estava tomando um rumo nitidamente mórbido. Ele não podia culpar Mann por extravasar, depois do que ele tinha passado, mas ele não podia esperar até estarem de volta, confortáveis no módulo de pouso?
Mann continuou: – Na hora da morte sua mente o incentiva a sobreviver. Por eles.

Então ele começou a andar novamente.
Ok, Cooper pensou. Talvez Mann estivesse sozinho por tempo demais.

***

Quando Murph trouxe Coop para baixo, encontrou Getty com o estetoscópio, ouvindo as costas de Lois, com uma expressão séria no rosto. Balançou a cabeça e olhou para ela.
– Eles não podem ficar aqui – disse seco.
Antes que ele pudesse continuar, no entanto, outra voz interrompeu-o.
– Murph? 
Era Tom, de pé na soleira da porta, olhando confuso para a cena.
– O que é isso? – Perguntou o irmão.

***



Conforme KIPP retornava à vida, os dados começaram a surgir fluorescentes em sua tela. Romilly acompanhava-os casualmente, mas, em seguida, tirou o capacete para melhor visualiza-los.
– Não entendo – murmurou.

***

O cânion ficou para trás deles, e Cooper seguia Mann por uma vasta planície de gelo.
Sentiu-se minúsculo, como uma pulga em um lençol. O vento havia estriado o gelo, esculpindo-o em um relevo baixo, quase como se uma criatura o tivesse arranhado com as unhas.

Muitas criaturas, na verdade.

Sua imaginação de repente convocou um exército de milhares de criaturas, de cor do gelo fantasmagóricas, derrotadas em alguma batalha antiga, arrastadas pelos vencedores, suas unhas em forma de garras cavando inutilmente a superfície, deixando as marcas que permaneceram até os dias de hoje.

De volta ao mundo real, pensou, um monte de gente costumava explicar características geográficas com histórias assim, como Paul Bunyan escavando o Grande Cânion com seu machado. Seria o mesmo aqui? Será que as crianças de Plano B chamariam isso de “Platô do fantasma arranhador” ou algo parecido? Provavelmente. A paisagem precisava de um nome humanizante. Mas eles escolheriam o sobrenatural ou a ciência? Será que se perguntariam, como ele o fazia, se alguma vez já choveu? Como o gelo era substituído? Talvez tudo isso tivesse sido formado por algum tipo de mudança drástica geológica, a incontáveis anos atrás...

Brand tinha dito que não haveria tais eventos geológicos no mundo de Mann, devido a Gargantua, mas talvez ela estivesse errada sobre isso. Pode não ter ocorrido quaisquer impactos de asteroides, mas certamente vulcanismo sim. Talvez mais do que o habitual, com uma estrela morta constantemente puxando a crosta do planeta. Acima de tudo, ele se perguntou por que estava pensando sobre isso. Não estava mesmo planejando ficar.

– A primeira janela de descida está bem a frente – relatou Mann.

Graças a Deus, pensou Cooper. Vamos acabar logo com isso. À sua frente, ele viu o que Mann estava falando, uma abertura no gelo. O cientista foi até a borda.

– Quando deixei a Terra, me sentia preparado para morrer – Mann disse a ele. – Mas eu nunca enfrentei a possibilidade do meu planeta não ser o certo. Nada disso acabou da maneira que devia acabar – seu tom de voz assumiu um tom de arrependimento.  
– O Professor Brand discordaria.
Cooper olhou com cautela para as profundezas da fenda. Então viu um movimento à beira de sua visão. A princípio, pensou que Mann lhe daria um tapinha no ombro, ou algo assim, outro dos seus gestos simpáticos.

Antes que pudesse reagir, no entanto, o cientista arrancou seu transmissor de longo alcance e o jogou longe. Cooper estava se virando para Mann, perto do penhasco, quando este ergueu o cotovelo e acertou-o com uma rajada de seu propulsor. O jato de gás em expansão desequilibrou Cooper, quase o atirando por cima da borda.

– O que você está fazendo? – Perguntou ainda de alguma forma recusando-se a aceitar o que, na verdade, estava acontecendo. Era uma brincadeira de algum tipo, com certeza. Mas então Mann chutou-o, e seu senso de realidade voltou ao lugar.

O cientista estava tentando matá-lo.

Cooper disparou seus próprios propulsores para evitar o ataque, porém o impulso o fez despencar penhasco abaixo. Felizmente abaixo dele havia uma série de plataformas descendentes, de modo que ele caiu para a superfície gelada abaixo.

***

Murph assistiu com horror Tom colocar-se diretamente na frente de Getty. O vermelho no rosto de seu irmão crescendo mais a cada momento.
– Eles não podem ficar aqui, Tom – disse Murph.
– Nem mais um dia... – Getty acrescentava, até que o punho de Tom pontuou sua frase. Getty caiu como um saco.
– Tom – Lois engasgou.

Tom voltou seu olhar irritado para Murph.

– Coop, pegue as coisas da tua tia, ela está indo embora. 
– Tom – Murph implorou. – Papai não te criou para agir como um retardado...
Então Tom explodiu.
– Papai não criou a gente! Vovô sim, e ele está enterrado no chão lá fora com a mãe. Eu não vou deixá-los ir.
– Você tem que fazê-lo, Tom!
– Eu sou um fazendeiro, Murph. Você não desiste da terra.
– Não, mas ela desistiu de você! Ela está envenenando a sua família!

***

Quando Cooper conseguiu ficar de joelhos, Mann estava quase em cima dele.

– Eu sinto muito – sussurrou Mann. – Não posso deixar você ir embora.
– Por quê? – Perguntou Cooper desesperado.
– Nós vamos precisar de sua nave para continuar a missão,  uma vez que os outros percebam que este lugar não serve para nós. 

Então de repente toda a sua inquietação sobre este lugar, as observações estranhas de Mann, sobre o quanto demasiadamente perfeito eram as notícias sobre uma superfície que ninguém tinha visto, voltaram.

– Você falsificou os dados? – Cooper perguntou incrédulo.
– Eu tive um monte de tempo pra isso.
– Existe mesmo uma superfície?
– Receio que não. 

Cooper viu o pé de Mann vindo em sua direção, mas não havia nada que ele pudesse fazer sobre isso. Ele o acertou, jogando-o para trás, mas Cooper conseguiu se agarrar à borda da plataforma de gelo.

– Tentei cumprir o meu dever, Cooper, mas o dia em que cheguei aqui, pude ver que este lugar não tinha nada. Resisti à tentação durante anos, mas eu sabia que havia uma maneira de ser salvo. 
– Covarde – Cooper rosnou. Ergueu o cotovelo e disparou o propulsor em Mann.

Despreparado, o cientista foi arremessado longe enquanto Cooper subia de volta. Conseguiu equilibrar-se antes de Mann voltar e os dois foram para o gelo, segurando e agarrando um no outro, lutando na beira do abismo.



***

– Por favor, venha com a gente – Murph implorou ao irmão quando Getty lentamente ficava de pé, o sangue escorrendo de seu nariz. Ela nunca tinha visto Tom tão irritado, tão irracional.
– Para viver no subsolo, rezando para o pai voltar para salvar a todos nós? – Tom zombou.
– Ele não vai voltar. Ele nunca ia voltar. Cabe a nós. A mim. – Dizer isso foi um erro, ela percebeu imediatamente depois.

Ela perguntou-se, se ele se ressentia de não ter sido educado, tratado de forma diferente. Fragmentos de memória a alcançaram. Ele fazia comentários, agora e sempre, com suas habituais observações sarcásticas,  mas nada além disso.
– Você vai salvar a raça humana, Murph? Sério? Como? Nosso pai não pode!
– Ele nem sequer tentou! – Ela gritou. Depois, mais calma, falou: – Ele simplesmente nos abandonou, Tom.
Coop entregou-lhe uma caixa com suas coisas. Ele parecia tão jovem e sério e confuso. E doente.
– Tom – ela implorou mais uma vez. – Se você não quer ir embora, deixe-os ir...
Tom apontou para o caixa: – Pegue suas coisas e vá embora!
Ela estudou por um momento a caixa com coisas de outra vida. Em seguida, devolveu-a a Coop.
– Fique com isso.  – E foi embora. Getty veio com ela, silenciosamente mexendo sua mandíbula.

***

Mann investiu contra Cooper como um louco, mas desta vez ele conseguiu desviar e agarrá-lo, jogando-o no chão e prendendo-o lá.

– Pare com isso! – Cooper gritou com o rosto a poucos centímetros do cientista. A resposta de Mann foi bater a placa facial de seu capacete contra o capacete de Cooper, jogando a cabeça contra ele.

Em seguida, novamente. E mais uma vez.

– Um de nós vai primeiro! – Resmungou entre rangidos.
– Dr. Mann, há 50% de chances de você se matar. – Cooper uivou. – Pare!
E de repente Mann parou. Olhou para Cooper com uma expressão ilegível.
A placa transparente do capacete já estava repleta de pequenas fraturas.
– A melhor chance que tive em anos – Mann disse e então bateu a cabeça no vidro de Cooper.

Cooper ouviu-o rachar, sentiu o frio em primeiro lugar, e em seguida, o acre cheiro de amônia penetrar. Horrorizado rolou para longe, tentando cobrir as rachaduras com sua luva, só então percebendo o quão grande elas eram.
Enquanto estava lá vagamente consciente de que Mann estava debruçado sobre ele, sentiu a queimadura em sua garganta e a traqueia fechando-se, para manter a atmosfera venenosa longe de seus pulmões.
– Por favor, não me julgue, Cooper. Você nunca foi testado como eu fui. Poucos homens foram...

***

A garganta de Murph estava apertada, no caminho de volta para a NASA.

– Você fez o seu melhor, Murph – disse Getty soando como se pensasse realmente isso.

Ela estava espantada que ele pudesse reunir tanta empatia enquanto cuidava de seu próprio nariz ferido. Mas não era o que ela achava. Não tinha feito o seu melhor. Tinha ficado contente em sair da fazenda e tudo mais, tão contente quanto o pai, apenas deixar o vovô e Tom para lidar com aquilo tudo. O resultado foi um abismo entre ela e seu irmão, um abismo de quilômetros de largura e profundidade e completamente invisível para ela, até agora. Tom era o cara que ficou e fez o que todo mundo disse que ele deveria fazer, trabalhando duro no solo, observando as plantações morrerem, vendo seus filhos morrerem.

Ela tinha seguido seu pai ausente para salvar o mundo em uma caverna de ar-condicionado.
Ela tinha abandonado Tom também. Não é de admirar que ele se ressentisse. Mas eram Lois e Coop que iriam pagar o preço do que ela tinha feito.
Um preço que não deveriam ser forçados a pagar.

***

Cooper arrastou-se meio cego através do gelo. Seu rosto estava dormente, mas seus pulmões pareciam em fogo. Sabia que se não fosse pela pressão positiva de seu suprimento de oxigênio, ele provavelmente já estaria inconsciente. Desta forma, o ar tóxico do mundo de Mann era pelo menos um pouco diluído. Mas isso não iria ajudá-lo por muito tempo. A primeira onda negra de pânico acabou, substituída por...

– Você está sentindo isso, não é? – Ouviu Mann dizer. – Esse instinto de sobrevivência. Foi o que me moveu. É o que move todos nós. E é o que nos salvará. Porque quero salvar todos nós. Por você, Cooper. 

Mann levantou-se e começou a se afastar.

– Eu sinto muito – disse. – Não posso ir e deixar você morrer, pensei que podia. Mas ainda estou aqui. Estou aqui por você.
“Eu estou aqui por você”.



Foi a coisa mais aterrorizante que Mann já tinha dito. Ele está realmente fazendo isso, Cooper pensava. Mann vai me deixar morrer. E ele acha que está sendo agradável com ele.

– Cooper – Mann continuou, – O professor Brand recitou aquele poema quando você partiu? “Não vás tão docilmente nessa noite linda. Que a velhice arda e brada ao término do dia.”
Cooper se lembrou da voz reconfortante do Professor, dando-lhes adeus enquanto eles libertavam-se dos grilhões da Terra e avançavam em direção a Saturno, o buraco de minhoca, as estrelas e além. Suas palavras tinham sido um guia, um caminho a seguir, uma mensagem de esperança.
Na boca de Mann era uma elegia. Um monte de besteiras para fazê-lo se sentir bem sobre o assassinato.

As pessoas sempre acharam Cooper teimoso, mas ele sempre pensou em si mesmo como realista, e talvez um pouco persistente. Agora sentia algo endurecer dentro de si, sendo comprimido, como carvão tornando-se diamante.

Sabia, intelectualmente, que iria morrer algum dia. Não estava exatamente feliz com isso, mas fatos eram fatos. Um dia, ele entraria nessa “noite linda”.
Mas não hoje, e nem pelas mãos de Mann. De jeito nenhum. Não ia acontecer.

Sua mente fervia, e então ele viu a poucos metros de distância o transmissor de longo alcance. Reunindo tudo o que ele tinha, começou a engatinhar em direção a ele, enquanto pontos negros dançavam diante de seus olhos com seu peito prestes a explodir.
Raiva, raiva contra a morte da luz.



Mann olhou de volta para Cooper, tossindo e sufocando, e se perguntou se iria sentir remorso. Supôs que ainda era muito cedo para dizer.
Cooper ainda estava tentando, ainda lutando, ainda de alguma forma agarrado a esperança de sobreviver. Foi a coisa mais magnífica que já havia testemunhado. Desejou que o piloto pudesse de alguma forma entender por que aquilo era necessário. Virou-se e usou seus jatos para voltar ao patamar mais elevado, em seguida, olhou para trás, para a figura se debatendo debilmente.

– Cooper. Você já vê seus filhos? 

A única resposta foi mais tosse, e de repente era demais para Mann suportar.
Morrer tinha que ser solitário, mesmo quando alguém estava com você.
Uma onda inesperada de terror o invadiu e ele desligou o rádio, incapaz até mesmo de continuar a ouvir.

Cooper ainda estava se movendo, uma figura pequena, mas pelo menos agora estava em silêncio.
Mann deu as costas para ele, e fui fazer o que devia fazer.
Cooper agarrou o transmissor, mas as luvas grossas atrapalharam-no enquanto lutava para reconectá-lo. Tentou, mas tudo foi sumindo, e se não conseguisse logo, não conseguiria nunca mais.
E não o conseguiu. Não com as luvas. Então as arrancou. Sentiu o frio de novo, atingindo suas mãos e os braços, circundando o seu coração. Por alguns segundos a sensação era energizante, mas em seguida estava tremendo...

Em seguida, o transmissor se encaixou ao traje.

– Brand! – Gritou. – Brand! Me ajude! Socorro...

***

E em outro lugar numa planície poeirenta, Murph sabia o que tinha que fazer.
Fez o caminhão dar a volta.

***

Brand saltou reagindo com voz de Cooper ainda ressoando em seus ouvidos. O que tinha acontecido? Cooper parecia asfixiante, e não tinha notícias de Mann. Estaria morto?



– Eu tenho a localização – disse CASE ligando os motores.
– Cooper?  – Ela disse ao rádio. – Cooper, nós estamos indo. 
– Sem ar – ele chiou. – Amônia. 
– Não fale! Respire o menos possível, estamos indo!

***

Murph saiu da estrada e avançou por dentro de um dos campos de milho de Tom, cortando-o enquanto Getty pálido, segurava-se no banco do passageiro. Enquanto observava o milho sendo atingido pelo para-choque, ela lembrou da perseguição ao drone indiano, os três, o pai, Tom e ela.  A última vez que tinham feito algo juntos. Tom ao volante, ela mantendo a antena fixa, e o pai quebrando a criptografia. Uma equipe. Uma família.
Apenas um dia depois, tudo tinha ido pro inferno. E agora Tom pensava que ela era o inimigo.
Bem, ela estava prestes a ser.

***

Brand tentou manter-se firme enquanto CASE pilotava de forma imprudente através das formações de gelo, evitando a colisão, por vezes, por não mais que alguns centímetros.

Era a mesma sensação de mal estar em sua barriga que sentiu quando viu a onda caindo sobre eles no mundo de Miller, a percepção de que não somente não sabia o suficiente sobre as coisas, mas às vezes podiam sair feridos. Todos os seus instintos lhe haviam dito que alguns centímetros de água eram inofensivos, e que nada tinham com que se preocupar, sobre aquelas grandes nuvens macias.

Cada suposição fora um desastre.

Não sabia como o mundo de Mann os surpreenderia, mas esperava desesperadamente que CASE sabia o que estava fazendo, para onde estava indo, porque Cooper não tinha muito tempo de sobra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Diga...