sábado, 20 de junho de 2015

INTERSTELLAR - Greg Keyes (Parte 17)



Murph, ao lado de Tom, observava o campo queimando. Ou melhor, o milho.

De repente Murph viu que cada planta tinha seu fogo próprio, cada haste incandescente, fagulha por fagulha, contra o fremir escuro, a fumaça subindo para os céus. Por um momento ela compreendia cada pé de milho como filamentos em uma lâmpada de uma lanterna, varas superaquecidas de metais, uma floresta alienígena em um mundo distante. Cada planta o centro de sua própria imolação, queimando solitária. Dizer que o campo estava queimando era perder o que estava realmente acontecendo. Um campo era uma abstração. Uma única planta não. Era uma vida sendo sacrificada para que outras pudessem sobreviver.

Em seguida, os talos se desfizeram como papel na corrente ascendente, qual retalhos, alguns subindo, outros em queda, acumulando-se em pilhas brilhantes; então essa ilusão desapareceu também. Logo, não haveria milho ou campo. Apenas carbono e poeira, inseparáveis em sua falta de vida.

– Perdemos cerca de um terço desta plantação – disse Tom. – Mas no ano que vem... Eu vou começar a trabalhar nos campos de Nelson e compensarei a perda. 

Murph queria sacudi-lo, fazê-lo entender que nunca iria fazer funcionar. Mas pra que?

– O que aconteceu com Nelson? – Perguntou ela.
A expressão no rosto dele sugeriu que ela provavelmente não iria querer saber, por isso não insistiu.
Este lugar, o seu povo, a casa em que tinha crescido, tudo parecia tão remoto, e um pouco irreal para ela agora.
Tom começou a andar na direção da casa, e ela o seguiu.
Atrás deles a cremação continuava.



***

Murph tentou parecer interessada em sua comida naquela noite, enquanto Tom e Lois conversavam sobre a fazenda, e o pequeno Coop, de seis anos de idade, sorria e fazia caretas para ela. O menino lembrava seu homônimo, de uma série de maneiras. Talvez mais do que fazia lembrar de Tom.

– Você vai passar a noite? – Perguntou Lois. – Deixamos o seu quarto como era. Minha máquina de costura está lá, mas...

Murph estudou seu prato, empurrando a comida pra lá e pra cá. Gostava de Lois, ela era boa parceira para Tom, confiável, robusta, compassiva. Além disso, Murph não a conhecia muito bem. As visitas eram curtas, e fora o tema da plantação, eles não tinham muitos assuntos em comum.

– Não – disse Murph preparando uma desculpa. – Preciso...

Seu olhar vagou para o andar de cima, em seguida de volta para Lois, e ela sabia que não queria mentir para ela.

– ...Muitas lembranças, Lois. 

Lois assentiu entendendo.

– É bom dar um jeito nisso – disse Tom levando os pratos para a cozinha junto com Coop. Bastou Coop pegar o prato de Murph, para começar a tossir uma tosse horrível.

O menino deve ter visto a preocupação em seu rosto, porque começou a sorrir para ela.

– Poeira – disse como se não fosse nada. Como se estar doente fosse apenas parte dos dias de hoje, como um dedo do pé arrancado ou o nariz sangrando. Coisas normais da infância e que ninguém podia fazer nada a respeito.



Era assim que Tom resolvia as coisas? Mesmo que ele realmente não entendesse sua opção, ele sabia que ela tinha acesso à ciência e medicamento que a maioria das pessoas não tinha.

– Lois, eu tenho um amigo... que poderia examinar os pulmões dele – disse ela quando Tom e Coop entraram na cozinha.

Lois assentiu, e parecia prestes a dizer algo quando Tom voltou com uma garrafa de uísque e sentou-se. Murph franziu a testa brevemente, mas não disse mais nada.
Do lado de fora, no crepúsculo, nuvens de poeira rolavam pela planície.

***

Na viagem de volta, através da mesma estrada esburacada pela qual viajou com o pai, anos antes,
Murph se perguntou sobre a relutância de Lois em discutir a ideia de Coop ver um médico. Seria medo de Tom ver como uma espécie de concessão, admitir que ele não podia fornecer tudo o que seu filho precisava? Ou pior, forçá-lo a admitir que as coisas estavam piorando?

Mas não era só Coop. Todo mundo. Mais pessoas estavam ficando doentes a cada dia. O que acontecera com Nelson? Projeções mostravam que doenças respiratórias estavam em ascensão, tanto em número de atingidos quanto em severidade, e o pó era apenas uma parte do problema. Elevados níveis de nitrogênio afetavam a saúde humana, direta e indiretamente. Nos mares o nitrogênio excessivo causava proliferação das algas e enormes bolsões de hipóxia, especialmente em ambientes rasos onde os recifes outrora prosperaram. Isso, somado às mudanças climáticas que alteraram as correntes, causavam a maior extinção marinha, desde o período permiano – o que significava dizer, de toda história do planeta.

Uma vez que os mares estavam mortos, ou quase isso, seria apenas uma breve questão de tempo antes que o ecossistema terrestre deixasse de funcionar de todo. A vida em si não estava em perigo, bactérias, por exemplo, continuariam a prosperar. Mas um ambiente capaz de suportar vida humana?

Talvez durasse ainda um punhado de décadas. Poderia ser, se tivessem sorte. Não que a maioria das pessoas soubesse disso. Se você ouvisse o noticiário, pensaria que as coisas estavam prestes a melhorar. Qualquer dia desses. Só ela e alguns poucos sabiam da verdade. Sem o plano A, todos na
Terra estariam mortos em uma geração. Duas, na melhor das hipóteses.

Ela havia passado toda a sua vida adulta lidando com o Grande Fim, com a tentativa de salvar a raça humana. Mas aqui estava ela, no outro extremo das coisas, assistindo seu sobrinho tossir seus pulmões. E se o pequeno Coop, como seu irmão Jesse, não sobrevivesse tempo suficiente para o plano A começar?

Ela não iria deixar isso acontecer, independente do que Tom acreditasse ou deixasse de acreditar. Ela podia fazer algo sobre isso.
De repente se distraiu com um ruído, e percebeu que o rádio estava tentando chamar sua atenção.

***



O doutor Getty foi encontrá-la assim que chegou na base, e começou a atualizá-la pelo corredor. Getty era um companheiro agradável. Gostava de seus olhos, e de seu sorriso também. Ele não estava sorrindo agora. Seu olhar estava cheio de preocupação, e pior, compaixão. E não estava muito disposto a falar o motivo.

– Ele começou a perguntar por você depois que voltou a si– Getty explicou em tom de desculpa – mas não conseguimos encontrá-la...

Quando chegaram ao centro hospitalar, ela se sentiu fraca. Mesmo preso a sua cadeira de rodas, o Professor sempre se mostrara robusto, uma energia em seus olhos, em sua voz. Agora, surpreendentemente, viu que toda aquela energia tinha ido embora, ou quase. Ele parecia minúsculo na cama do hospital, ofuscado pelas máquinas de monitoramento e que o mantinham vivo. Quando chegou à sua cabeceira, mal podia ouvir sua respiração.

– Murph? Murph... – ele murmurou.

Ela pegou sua mão. Isso não está acontecendo, pensou. Eu não estou pronta para isso.

– Estou aqui, Professor. 
– Eu não tenho muito tempo... – Ele engasgou. – Tenho que te contar...
– Calma. 
– Todos esses anos... Todas essas pessoas... contando comigo. 
– Está tudo bem, Professor. 
– Eu decepcionei... todos vocês.
– Não – disse Murph, perto de chorar. – Eu vou terminar o que começou. 

Ele olhou para ela, com lágrimas em seus olhos.

– Murph. Que bom, Murph. Eu lhe disse para ter fé... acreditar.
– Eu acredito. 
– Eu precisava que você acreditasse que seu pai estava voltando. 
– Eu acredito, Professor. 
– Perdoe-me, Murph. 
– Não há nada a perdoar – disse ela.

Depois de tudo o que ele tinha feito, como ele poderia se sentir assim? Não era justo que ele morresse com o sentimento de ter falhado.

– Eu menti, Murph – sussurrou, e suspirou profundamente.

Ela piscou, perguntando o que diabos ele poderia dizer com isso. Mentiu sobre o quê?



– Eu menti para você. Não há nenhuma razão para ele voltar... não há como nos ajudar...
– Mas o plano A – disse confusa. – Tudo isso, todas essas pessoas, a equação!

Ele lentamente virou a cabeça de lado a lado, com lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Então ele suspirou de novo, e seus olhos não estavam olhando para ela. Sua respiração diminuiu lentamente, e seu peito imobilizou-se.

– Ele sabia? Meu pai sabia? Será que ele me abandonou? 

Seus lábios se moviam enquanto o Professor tentava dizer algo mais. Ela se inclinou mais perto.

– Não... não... vá... tão docemente... na...
– Não! – Ela gritou. – Não! Professor, fique! Você não pode! Você não pode!

Getty colocou a mão suavemente em seu ombro, e juntos assistiram a vida se esvair do Professor Brand.

Sua pergunta ainda flutuava no ar, sem resposta.

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