domingo, 20 de abril de 2014
O Oitavo Passageiro - Alan Dean Foster (Parte 26)
— Quantos destes você pensa que precisamos levar? — perguntou Lambert a Parker, afastando com as costas da mão a mecha que lhe caía nos olhos.
— Tudo o que pudermos carregar. Não queremos fazer duas viagens.
— Naturalmente.
E virou-se para arrumar de novo os bujões. Foi quando uma voz soou no comunicador aberto:
— Jones, vamos embora. Venha cá, meu gatinho... Venha com a mamãe...
O tom de Ripley era doce e procurava infundir confiança, mas Lambert podia sentir a exasperação de que estava tomada.
Parker saiu do depósito de comida 2 debaixo de uma pirâmide de caixas. Lambert continuou a escolher os seus pacotes, trocando de vez em quando um por outro. A idéia de ter de comer alimentos artificiais não processados e crus era aterrorizadora. Não havia cozinha automática no módulo. Serviria para mantê-los vivos, mas era tudo. Mesmo assim, sempre umas coisas eram melhores que outras. Por que não fazer a mais judiciosa seleção possível?
Nem percebeu a pequena luz vermelha que se acendeu no rastreador a seus pés.
Na ponte, um indignado Jones resistia, mas Ripley o tinha pela nuca. Por mais que esticasse as pernas, foi lançado sem nenhuma cerimônia na sua cesta de viagem, pressurizada. Ripley ligou-a.
— Fique aí. Respire o seu próprio cheiro reciclado por algum tempo.
Os dois lança-chamas estavam junto da porta do depósito. Parker ajoelhou-se para apanhar o seu e uma boa porção dos seus pacotes de comida esparramou-se pelo chão.
— Puxa! — disse.
Lambert interrompeu o que estava fazendo e procurou ver fora das portas do depósito.
— O que é?
— Nada. Tentei levar coisas demais ao mesmo tempo. Apresse-se.
— Já vou. Fique calmo.
De súbito, a luz do rastreador tornou-se rubra e brilhante, e o sinal fez-se ouvir simultaneamente. Parker deixou cair os outros pacotes, olhou o instrumento, empunhou seu lança-chamas. E gritou para Lambert:
— Vamos sair daqui!
Ela também ouvira.
— Agora mesmo.
Mas algo emitiu um som diferente atrás dela. Virou-se com um grito e a mão a pegou. O alienígena estava ainda com uma parte do corpanzil dentro do encanamento.
Ripley ouviu o grito no comunicador aberto da ponte e ficou gelada.
Parker olhou para dentro do depósito e quase ficou louco quando viu o que o alienígena estava fazendo. Não podia usar o lança-chamas sem atingir Lambert. Então, usando-o como se fora um porrete, entrou correndo e gritando:
— Desgraçado!
O alienígena soltou Lambert. Ela caiu sem sentidos no chão, enquanto Parker dava um golpe fortíssimo na fera. Não teve efeito. Era como se tivesse tentado fraturar uma parede.
Tentou desviar-se, mas não pôde. Com um golpe certeiro, o alienígena quebrou-lhe o pescoço e matou-o. Voltou-se então outra vez para Lambert.
Na ponte, Ripley ainda estava petrificada. Gritos abafados chegavam-lhe de baixo. Eram de Lambert, mas cessaram logo, misericordiosamente. E tudo ficou silente outra vez. Ela falou, no pick-up:
— Parker? Lambert?
Não esperava resposta, e não teve nenhuma. Bastou- lhe um momento para compreender o sentido daquele silêncio.
Estava sozinha.
Havia, provavelmente, três seres vivos a bordo: o alienígena, Jones e ela mesma. Mas tinha de certificar-se.
O que significava deixar Jones para trás. Não queria fazê-lo, mas o felino ouvira os gritos e miava. Era barulho demais.
Alcançou o deque B sem maus encontros. Tinha o lança-chamas apertado nas duas mãos. O depósito de comida ficava à frente. Havia a possibilidade remota de que o alienígena tivesse deixado algum dos dois, dada a dificuldade de manobrar dois corpos através dos canos. A possibilidade de que alguém estivesse vivo.
Espiou com cuidado. E o que restava, mostrou-lhe como ele conseguira espremer as duas vítimas, juntas, no conduto da ventilação...
Então pôs-se a correr, correr. Cega, louca, sem pensar nem importar-se mais. Paredes avançavam a seu encontro para detê-la, mas nada cortou seu ímpeto. Era uma fuga desabalada. Correu até que os pulmões lhe ardiam tanto que não podia mais. Faziam-na lembrar-se de Kane e da criatura que amadurecera dentro dele, aninhada entre os seus pulmões. E isso, por sua vez, recordou-lhe o alienígena.
Todo esse pensar frenético, desgovernado, teve por efeito trazê-la de volta a seus sentidos. Engolindo para respirar, diminuiu o passo e procurou verificar onde estava. Correra toda a extensão da nave. Achava-se surpreendentemente no centro da casa de máquinas.
Ouviu, então, um barulho. E parou de respirar. O barulho repetiu-se, e ela ousou soltar um suspiro. O som era familiar, humano. Era o som de soluços.
Ainda com o lança-chamas debaixo do braço, seguro nas duas mãos, deu a volta à sala até que a origem do som ficou imediatamente abaixo dela. Viu que pisava num disco de metal, a tampa de uma escada. Mantendo-se atenta ao que a cercava, ajoelhou-se devagar e removeu o disco. Uma escada se aprofundava na escuridão.
Desceu às apalpadelas, até que encontrou de novo chão sólido. Só então acendeu seu pequeno bastão elétrico Estava numa câmara de manutenção. A luz revelou caixas de plástico, ferramentas raramente usadas. Revelou também pedaços de ossos ainda com farrapos de carne. Arrepiou-se quando a luz foi mostrando num círculo depois do outro, pedaços de roupa, sangue seco, uma bota rasgada. E havia bizarras excrescências penduradas às paredes.
Então, no alto, algo se mexeu. Ela pulou, apontou para cima a boca do lança-chamas, mas procurou primeiro com o foco a causa do movimento.
Um grande casulo pendia do teto, um pouco para a sua direita. Parecia uma rede fechada e translúcida, tecida com o mais fino fio de seda. E mexia-se.
Com o dedo tenso no gatilho do lança-chamas, aproximou-se lentamente daquilo. O foco da sua lanterna tornou o casulo quase transparente.
Havia um corpo lá dentro...
Dallas.
Inesperadamente, os olhos dele se abriram, entraram em foco, reconheceram-na. Os lábios se abriram para formar palavras. Ela se acercou, ao mesmo tempo fascinada e repugnada.
— Mate-me... — implorou Dallas.
— O que foi que ele fez?
Ele quis falar de novo mas não pôde. Sua cabeça se virou um pouco para a direita. Ripley virou a luz para aquele lado. Havia um segundo casulo, mas diferente do primeiro, na contextura e na cor. Era menor e mais escuro; a seda formara uma carapaça dura, lustrosa. Parecia — mas Ripley não sabia — a urna rompida e vazia da nave sinistrada.
Aquilo era Brett.
Seu bastão luminoso voltou o foco para Dallas.
— Eu o tirarei daqui — disse. Chorava. — Nós o ligaremos ao médico automático, nós o...
Mas calou-se, incapaz de continuar. Lembrava-se da analogia evocada por Ash, da aranha, da vespa. Os filhotes a cevar no corpo paralisado da aranha e a crescer; e aranha consciente do que lhe acontecia, do que se passava e, no entanto...
De algum modo conseguiu bloquear aquele horrendo fio de pensamento.
O mesmo sussurro de agonia:
— Mate-me.
Ripley olhou-o. Misericordiosamente, os olhos daquilo que fora Dallas fecharam-se. Mas os lábios tremiam, como se ele armasse um grito. Ela não cria ter forças para suportar aquele grito.
O bico do lança-chamas levantou-se e, convulsivamente, ela apertou o gatilho. Uma larga língua de fogo envolveu e derreteu num segundo a coisa que tinha sido Dallas. Queimara sem um som. Depois ela voltou o fogo para o próprio covil. O compartimento inteiro explodiu em chamas. E já ela fugia escada acima, com o fogo a lamber-lhe as pernas.
Enfiou a cabeça na casa de máquinas. Ainda estava deserta. A fumaça a envolvia, fazendo-a tossir. Saiu de lá, ajustou o disco com o pé, deixando apenas uma pequena abertura para que o ar alimentasse o incêndio. Depois, marchou resoluta para o cubículo de controle dos motores.
Medidores e comandos funcionavam, pacientes, ali dentro. docilmente à espera de que lhes dissessem o que fazer. Numa determinada mesa, todos os interruptores eram delineados em vermelho. Ela os estudou um momento, rememorando as seqüências, depois pôs-se a fechá-los um por um.
Um comutador duplo fora encerrado numa coberta protetora. Ela tentou levantá-la, depois quebrou-a com a base do lança-chamas, aproximou-se e apertou o duplo controle.
Esperou o que lhe pareceu uma eternidade. Sirenes começaram a uivar, depois uma voz chamou, pelo intercomunicador e ela deu um salto. Mas reconheceu a voz da Mãe.
"Atenção. Atenção. Unidades resfriadoras dos motores de hiperpropulsão desligadas. Os motores ficarão sobrecarregados em quatro minutos e cinqüenta segundos. Quatro minutos, cinqüenta segundos."
Ela já estava no meio do corredor B quando se lembrou de Jones.
Encontrou-o sem dificuldade. Miava constantemente num intercomunicador, mas não fora perturbado na sua caixa pressurizada, que ela tinha deixado entre a ponte e o deque B. Apanhou-o e correu, com a caixa batendo contra as pernas, e o lança-chamas seguro debaixo do outro braço.
Dobraram a última esquina, a caminho do módulo. E de repente, Jones soltou um silvo. Estaria todo eriçado dentro da caixa e de dorso arqueado. Ripley parou e olhou, tonta, para o embarcadouro aberto. Vinham lá de dentro sons abafados de embates.
O alienígena se metera no módulo.
Deixando Jones em segurança, na escada do deque B, Ripley voltou correndo à sala de máquinas. O gato protestou vigorosamente ao ser abandonado outra vez.
Enquanto corria, uma voz paciente e inalterada se fez ouvir.
"Atenção, os motores ficarão sobrecarregados em três minutos e vinte segundos..."
Uma parede sólida de calor recebeu-a no cubículo. A fumaça impedia-a de ver direito. A maquinaria protestava gemendo, queixava-se com crescente alarido. Ela abriu caminho, lavada de suor, conseguiu localizar os controles através da fumaça, fez um esforço inaudito paia lembrar a seqüência outra vez e fechou os controles que tinha aberto. Mas as sirenes continuaram seu lamento.
"Atenção. Os motores ficarão sobrecarregados em três minutos. Os motores ficarão sobrecarregados em três minutos."
Lutando para respirar, ela se encostou à parede, apertou um botão, falou:
— Mãe! Eu pus de novo todas as unidades resfriadoras em pleno funcionamento!
"Tarde demais para uma ação reparadora. O núcleo da propulsão começou a derreter. A reação é a esta altura irreversível. E a implosão incipiente, seguida de sobrecarga incontrolável e subseqüente detonação. Os motores estarão sobrecarregados em dois minutos, cinqüenta e cinco segundos".
A Mãe já confortara Ripley em outras ocasiões. Agora a voz do computador parecia-lhe despida de todo e qualquer antropomorfismo. Era tão implacável quanto o tempo que media. Sufocada, a garganta ardendo, Ripley saiu do cubículo, com as enlouquecedoras sirenes soando agora no cérebro.
"Atenção. Os motores estarão sobrecarregados em dois minutos" — anunciava a Mãe por um alto-falante de parede.
Jones esperava por ela na escada. Estava quietinho agora, e miou lastimosamente. Ripley voltou com ele, tropeçando, na direção do módulo, conseguindo manter de algum modo o lança-chamas em posição e arrastando, praticamente, a caixa do animal. Uma vez pensou ter visto dançar uma sombra atrás dela, mas era apenas uma sombra, nada mais.
Hesitou na boca do corredor, sem saber o que fazer e desesperadamente cansada.
Mas uma voz a impedia de parar.
"Atenção. Os motores vão explodir em noventa segundos."
Depondo Jones no solo, ela agarrou o lança-chamas com as duas mãos e investiu no módulo. Estava vazio. Num minuto, voltara, apanhara o gato, sem que nada se materializasse para confrontá-la.
"Atenção. Os motores vão explodir em sessenta segundos" — disse a Mãe, impessoal como um oráculo.
O infeliz Jones se viu atirado com caixa e tudo ao sopé do console principal, e Ripley se aboletou no assento do piloto. Não havia tempo para calcular sutilezas, como trajetória ou ângulo de disparo. Concentrou-se num só gesto: apertar o botão que tinha uma palavra gravada em vermelho logo abaixo dele:
LANÇAMENTO
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