domingo, 20 de abril de 2014
O Oitavo Passageiro - Alan Dean Foster (Parte 11)
VI
Na enfermaria, depuseram Kane delicadamente na plataforma médica.
Um complexo de instrumentos e controles, diversos de todos os outros a bordo da nave, decoravam a parede por trás da cabeça do oficial inconsciente. A mesa em que ele estava e que saía da parede, correspondia a uma abertura de um metro quadrado.
Dallas tocou diversos controles, ativando o médico automático. Removeu de uma gaveta um tubo de metal brilhante e, depois de verificar que estava carregado, voltou, para perto do paciente. Ash ficou a seu lado, pronto a prestar-lhe ajuda, enquanto Lambert, Parker e Brett o observavam do corredor, por trás de um vidro grosso.
Um simples toque do lado do tubo fez brotar da sua ponta um raio luminoso de grande intensidade. Dallas ajustou-o até que ficasse tão curto e estreito quanto possível, mas sem redução de potência.
Cuidadosamente, tocou com ele a base do capacete de Kane. O metal começou a desintegrar-se.
Conduziu a lâmina de luz, lentamente do capacete acima, pelo topo, pelo outro lado abaixo, e em cheio sobre o fecho grosso. O capacete se partiu ao meio como uma laranja. Dallas e Ash postaram-se, então, de um lado e de outro de Kane, e Dallas desligou o laser e removeu o capacete.
Hesitou, depois, brevemente. Mas avançou a mão e tocou a criatura, embora só por um instante. Continuava a pulsar, se bem que não tivesse reagido ao contacto dos seus dedos. Avançou de novo, pousando dessa vez a palma da mão nas costas da criatura. Era fria e seca. O leve arfar, porem, dava-lhe náusea, e ele quase retirou a mão outra vez. Porém, a criatura não dava sinais de objetar, agarrou como pôde o tecido de borracha de que era feita e puxou com toda a força.
Nada aconteceu... o que era de se esperar. Nem a coisa se mexeu, nem largou a presa.
— Deixe-me experimentar — disse Ash. Estava junto de um armarinho de instrumentos médicos. Escolheu um alicate particularmente grosso e avançou para a mesa. Mordendo com ele, cuidadosamente, a criatura, e puxou.
— Nada, ainda. Mais força — disse Dallas. Ash reajustou o alicate puxou e inclinou o corpo para trás ao mesmo tempo.
Dallas o deteve com um gesto.
Percebera um fio de sangue que escorria pelo rosto de Kane.
— Espere! Você está rompendo a pele dele.
— Eu não. A criatura.
Dallas ficou pálido.
— Não, isso não vai adiantar. A criatura não vai sair sem arrancar-lhe o rosto ao mesmo tempo.
— Concordo. Vamos usar a máquina. Talvez tenhamos mais sorte.
— Será preferível.
Ash apertou vários botões em seqüência. O médico automático começou a zumbir, e uma abertura nos pés da mesa de exames acendeu. Depois, a plataforma deslizou, suavemente, para dentro da parede. Uma placa de vidro desceu e selou Kane lá dentro. Luzes brilharam do outro lado. O astronauta era perfeitamente visível. Do lado de fora, num console próximo, um par de monitores de vídeo piscou e entrou em ação. Ash aproximou-se para ler os resultados. Ele era o que o Nostromo tinha de mais parecido com um médico humano. Estava ciente do fato e da responsabilidade que este implicava. Ansiava por saber qualquer coisa que a máquina pudesse descobrir sobre a condição de Kane. Para não falar na criatura alienígena.
Uma nova figura surgiu no corredor, aproximando-se dos três espectadores. Lambert lançou-lhe um olhar carregado de intenção.
— Ripley, você queria deixar-nos lá fora. Você queria deixar Kane lá fora. Você ia fazer a gente esperar vinte e quatro horas, e Kane com aquela coisa na cara, e a noite começando.
Sua expressão mostrava mais dos seus sentimentos do que as próprias palavras.
Parker, a última pessoa que se esperaria tomasse a defesa da oficial de segurança, olhou belicosamente para a navegadora.
— Pois talvez ela devesse ter deixado. Apenas cumpria o regulamento — e fez um gesto na direção do interior iluminado do médico automático e do seu paciente imóvel.
— Quem sabe o que aquela coisa pode fazer ou deixar de fazer? Kane é um tanto impulsivo, não há dúvida, mas não é nenhum tolo. Se foi atacado é porque não pôde evitá- lo. Talvez um de nós seja o próximo.
— Certo — concordou Brett.
Mas Ripley continuava a dar toda atenção a Lambert. A navegadora não se movera e encarava-a também, firme.
— Talvez eu tenha cometido um erro. Talvez não. De qualquer maneira, procurava simplesmente cumprir meu dever. Vamos deixar as coisas nesse pé.
Lambert hesitou, perscrutando o rosto de Ripley. Por fim, fez um curto gesto de cabeça.
Ripley suspirou e relaxou sua postura rígida.
— O que houve de fato lá fora?
— Nós penetramos na nave sinistrada — disse Lambert, sem perder de vista os homens encerrados na enfermaria. — Não havia sinais de vida. Talvez a transmissão seja velha de séculos. Encontramos o transmissor, ao que parece.
— E a tripulação?
— Nenhum sinal de tripulação.
— E Kane...
— Ele se apresentou como voluntário para investigar sozinho o nível inferior — a expressão de Lambert ficou, por um momento, contorcida. — Procurava seus diamantes. Ao invés deles, encontrou alguma espécie de ovos. Nós lhe dissemos que não os tocasse. Provavelmente tarde demais. Algo aconteceu lá embaixo. De onde estávamos não podíamos ver o que se passava. Quando o tiramos, estava com aquela coisa presa ao rosto. De algum modo, a criatura conseguiu derreter a frente do seu elmo, e você bem sabe de que material são feitos...
— Fico a pensar de onde será essa criatura, originariamente. — Ripley falava sem olhar para a enfermaria. — Este planetóide me parece morto, portanto deve ter vindo na espaçonave alienígena.
— Só Deus sabe — disse Parker, calmamente —, mas eu bem que gostaria de saber também...
— Por quê? — perguntou Ripley
— Por que seria mais um lugar a evitar!
— Amém — disse Brett, enriquecendo seu vocabulário.
— O que eu desejaria saber — dizia Dallas, do outro lado da janela hermética — é como ele ainda consegue respirar. Ou não respira?
Ash estudou as leituras.
— Fisicamente parece bem. Não só continua vivo, a despeito de ter vindo sem ar normal todo o caminho de volta até aqui, como também todos os seus sinais vitais são firmes e regulares. O fato de respirar todo aquele nitrogênio e metano deveria ter sido suficiente para matá-lo lá atrás, ainda no casco alienígena. Segundo o médico automático ele está em coma, mas normal interiormente. E muito mais saudável do que tinha direito de estar. Como respira, não sei. Mas seu sangue está perfeitamente bem oxigenado. — Mas como é possível? — Dallas debruçou-se para a janela iluminada a fim de ver o interior do médico automático. — Eu mesmo o examinei detidamente. Tanto a boca quanto o nariz estão completamente bloqueados.
Ash apertou dois ou três botões.
— Sabemos o que vai pelo exterior. Vamos ver dentro dele agora.
Um largo painel acendeu-se, clareou, entrou em foco. Mostrava uma grande imagem radioscópica a cores da cabeça de Kane e da parte superior do seu tórax. Seria possível, apertando outros botões mais, ver o sangue fluindo nas artérias e nas veias, os pulmões pulsando, o coração batendo. Estavam mais interessados, porém, àquela altura, na esquemática interna da minúscula forma arredondada que cobria como uma calota de couro a face do astronauta.
— Eu não sou biólogo — disse Ash —, mas aquilo ali é a mais infernal maçaroca jamais vista nas entranhas de um bicho vivente — e olhava com assombro para a intrincada rede de tubos e formas esquisitas que enchia o interior da criatura alienígena. — Não saberia dizer para que serve metade do que está à mostra.
— A coisa não é mais bonita por dentro do que por fora — foi o único comentário de Dallas.
— Observe a musculatura daqueles dedos, daquela — insistiu Ash. — Pode parecer frágil, mas está longe disso. Não espanta que não conseguíssemos arrancá-la. Não me espanta que ele não tenha podido livrar-se, mesmo que tenha tido tempo de tentar antes de perder os sentidos.
Era claro agora o que a criatura estava fazendo com Kane se bem que não o porquê disso. As mandíbulas do astronauta haviam sido separadas à força. O longo tubo que a criatura tinha na palma da mão enfiara-se pela sua garganta abaixo. Terminava no fim do esôfago. O tubo não se movia, apenas repousava lá.
Mais do que tudo que via, era isso que dava arrepios de nojo em Dallas.
— Ele tem um troço enfiado na miserável da garganta — comentou. E suas mãos se fechavam e abriam espasmodicamente, numa ânsia assassina. — Que fará uma coisa dessas a uma pessoa normal? Isso não é maneira decente de lutar. Que diabo, Ash, a coisa é... imunda...
— Não sabemos que seja uma forma de luta, não sabemos nem mesmo se lhe faz mal — Ash confessava sua confusão diante do que via. — Segundo os monitores médicos, ele passa bem. É apenas incapaz de reagir a qualquer estímulo nosso. Sei que o que vou dizer parecerá idiota a você, mas pense um minuto. Talvez a criatura seja um simbionte e, de alguma forma, benigno. Talvez, à sua maneira animal, peculiar e, admito, desconcertante, esteja procurando ajudá-lo.
Dallas riu, mas foi um riso destituído de qualquer humor.
— Vê-se que a criatura gosta dele. Pois não o larga...
— Aquele tubo, ou o que quer que seja, parece que lhe fornece oxigênio — o oficial de ciência pediu maior detalhe à máquina, ajustando o controle e provocando um foco mais próximo. A tela mostrou, então, os pulmões de Kane, que inflavam e esvaziavam-se em ritmo normal, e sem esforço aparente, a despeito da obstrução da garganta.
Ash voltou à vista anterior.
— Mas que oxigênio? — quis saber Dallas. — Ele fez todo esse caminho com um capacete fraturado. A criatura não se colou aos seus tanques de suprimento e o ar que a
roupa continha escapou-se logo pelo regulador aberto, em dois minutos.
Ash ficou pensativo.
— Posso conceber algumas possibilidades. Há algum oxigênio livre nesta atmosfera. Não muito, mas há. E mais ainda, misturado ao azoto sob forma de vários óxidos. Desconfio que a besta possui a capacidade de decompor esses óxidos e extrair deles o oxigênio. Certamente tem capacidade de passá-lo para Kane, ou aproveitá-lo ela mesma. Um bom simbionte é capaz de descobrir num abrir e fechar de olhos quais as necessidades do parceiro. Certas plantas têm essa mesma capacidade de fabricar, por assim dizer, oxigênio, extraindo-o de variadas fontes. Outras preferem outros gases. Não é uma impossibilidade.
Disse e voltou sua atenção de novo às telas.
— Talvez sejam preconceitos nossos preconceitos terráqueos, juízos a priori. Talvez a criatura não seja nem vegetal nem animal. Talvez tenha características dos dois reinos.
— Não faz sentido.
Ash olhou-o.
— O que é que não faz sentido?
— Paralisá-lo, botá-lo em coma, depois trabalhar furiosamente para mantê-lo vivo. — Dallas dirigiu seu olhar para a tela. — Pensei de início que estivesse comendo-o ou vivendo dele de algum modo. A postura e a posição em que se acha é típica de cevadura ou pasto. A criatura poderia estar mamando. Mas como os instrumentos dizem, está fazendo justamente o contrário. Dá de mamar. Não consigo entender uma coisa dessas. De qualquer maneira, não podemos deixar essa criatura indefinidamente pegada a ele. Pode fazer toda espécie de coisas, boas e más. E só podemos estar certos de um dado: boas ou más não são naturais para um sistema humano.
Ash pareceu duvidar:
— Não sei se você tem razão.
— E por que não? — Dallas olhava seu oficial de ciência com perplexidade.
— No momento — explicou Ash, sem se mostrar ofendido com a ponta de desafio que havia no tom de Dallas —, no momento, a criatura o mantém vivo. Se nós a removermos, arriscamos perder Kane.
— Temos de correr esse risco.
— E como pretende tirá-la? Ela não vai sair.
— Teremos de tentar cortá-la fora. Quanto mais depressa melhor será para Kane.
Pareceu que Ash ia argumentar um pouco mais e que mudou de idéia.
— Não aprovo, mas entendo sua posição. Você assume a responsabilidade? É uma decisão de ciência, e você a tira das minhas mãos.
— Sim, assumo a responsabilidade.
Já começava a calçar as luvas de cirurgia. Verificou-se que o médico automático não estava de nenhum modo ligado ao corpo e que não lhe fazia qualquer ministração que pudesse ficar prejudicada se Kane fosse temporariamente subtraído de seus cuidados. Um toque num botão e ele deslizou para fora da máquina.
Uma inspeção sumária bastou para mostrar que a criatura não se movera nem afrouxara seu controle sobre Kane.
—O cortador? — Ash indicou o laser que Dallas tinha usado para recortar o capacete de Kane.
—Não. Vou proceder tão devagar quanto possível. Veja se me arranja uma lâmina manual.
Ash foi até a caixa de instrumentos, remexeu nela e voltou com uma versão mais leve do instrumento usado anteriormente. Passou-a cautelosamente a Dallas.
O capitão inspecionou o delicado instrumento, manipulou-o até obter um firme controle dele. Semelhava um lápis delgado na sua mão. Ligou-o, em seguida. Uma versão em miniatura do feixe luminoso estreito, de muito fraca divergência, que o instrumento maior tinha gerado, brotou, brilhante da extremidade do bisturi.
Dallas postou-se junto à cabeça de Kane. Operando com toda a frieza de que era capaz, moveu a delgada lâmina de luz em direção à criatura alienígena. Tinha de estar preparado para recuar, e com cuidado, se a besta reagisse.
Um movimento em falso e poderia decapitar seu colega tão facilmente como um relatório desfavorável corta uma aposentadoria.
Mas a criatura não se moveu. Dallas fez com que o raio tocasse sua pele acinzentada, descendo um centímetro ou dois até estar seguro de que cortava efetivamente carne.
O raio viajou sem esforço de ponta a ponta pelas costas da criatura.
E, todavia, o objeto dessa biópsia preliminar não se alterou nem mostrou sintomas de dor. No alto da incisão um fluido amarelado começou a pingar, depois a escorrer pelo flanco suave.
— Começa a sangrar — anunciou Ash, numa voz profissional.
O líquido jorrou sobre a coberta da mesa de operação, junto à cabeça de Kane. Um pequeno fio do que Dallas tomou a princípio por vapor ergueu-se do forro impermeável. O gás escuro não lhe era familiar. Mas o chiado sibilante que começou a soltar-se da roupa de cama — esse era.
Dallas parou, removeu o bisturi e foi examinar o ponto de onde provinha o chiado, que se fazia mais alto e mais profundo. Olhou para baixo.
O líquido já corroera a coberta e a mesa metálica de operação. Fervendo e chiando, fazia poça agora junto dos seus pés, um inferno em miniatura, que começava a devorar o convés. O metal fumegava, derretia. O gás, um subproduto, começava a encher a enfermaria. Queimava, já, a garganta de Dallas, lembrava o gás lacrimogêneo que a polícia usa, e que é apenas medianamente doloroso, mas impossível de suportar.
Entrou em pânico pensando no que aquilo estaria fazendo a seus pulmões.
De olhos lacrimejantes, nariz correndo, tentou freneticamente obturar o corte, apertando os seus dois lábios hiantes com as mãos. No curso desse processo, um pouco do líquido que ainda corria, pingou-lhe nas luvas. E elas começaram, por sua vez, a ferver e fumegar. Tentou descalçá-las, cambaleando em direção ao corredor antes que o material, forte embora, fosse varado pelo ácido e este lhe queimasse a pele. Lançou as luvas por terra, e as gotas que caíram no chão de metal começaram a abrir nele pequeninos furos redondos.
Brett parecia enlouquecido, e excessivamente assustado também.
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