domingo, 20 de abril de 2014

O Oitavo Passageiro - Alan Dean Foster (Parte 9)








V


Descansando pela breve interrupção da descida Kane deu um chute na parede fronteira e recomeçou. Deu um segundo chute, com o mesmo ímpeto — e já não encontrou a parede. O poço dissolvera-se. Suspenso no seu frágil fio de aranha, ele pairava agora sobre um abismo de escuridão impalpável.  

"Alguma espécie de recinto" — pensou. — "Talvez outra grande abóbada como a de cima."
Fosse o que fosse, emergira do poço. Respirava ainda com dificuldade, e o calor era o mesmo ou maior.

Curiosamente a escuridão parecia mais opressiva do que fora dentro do poço, malgrado as paredes, o espaço confinado. Pensou no que poderia jazer abaixo, na profundidade que teria, no que lhe poderia ocorrer se o cabo se partisse agora.
"Calma, Kane, calma", disse consigo. "Pense em diamantes. Límpidos, grandes, com mil facetas. Diamantes sem falhas e de muitos quilates. Não pense nessa escuridão nevoenta, que cheira a fantasmas alienígenas, a memórias meio esquecidas, a..."
Diabo, lá estava ele a fazê-lo de novo.

— Você vê alguma coisa?

Apanhado de surpresa, respondeu com um reflexo, dando uma sacudidela no cabo, e começou a balançar perigosamente. Usou o mecanismo para firmar-se outra vez, e limpou a garganta antes de responder. Tinha de lembrar-se que não estava só.
Dallas e Lambert aguardavam-no logo em cima, e não muito distantes, afinal.
Bastava uma pequena caminhada para alcançarem, todos três, o abrigo seguro do Nostromo, onde havia café quente, doces cheiros familiares e o imensurável conforto do sono profundo.

Por um momento desejou intensamente estar de volta a bordo. Repetiu, porém, consigo mesmo que não havia diamantes na nave e, certamente, nenhuma glória.
Aqui, talvez, conquistasse tudo isso.

— Não, não vejo nada. Há outra grande caverna debaixo dos meus pés. Saí do poço.
— Caverna? Cuidado, então, Kane. Não se deixe tentar! Olhe que ainda faz parte da tripulação.
— Eu? Você recorda o que foi dito sobre poços? Talvez seja verdade, no fim das contas.
— Então, você estará nadando em diamantes a qualquer momento.

Ambos deram risinhos de satisfação. Dallas riu amarelo. Sua voz parecia estranhamente cava e distorcida no alto-falante do capacete. Kane tentou em vão tirar o suor da testa. Os trajes espaciais tinham este grande inconveniente. Quando se começava a transpirar, a única coisa susceptível de limpeza era a placa lisa do visor.

— OK, não é uma caverna, pronto. Mas é quente como nos trópicos.

Inclinando-se com cuidado, procurou ler os instrumentos que trazia na cinta. Estava por demais abaixo da superfície para que o vasto espaço fosse efetivamente uma caverna. Mas até aquele momento nada encontrara que indicasse estar fora do ventre da nave alienígena.
Havia só um meio de ter certeza. Localizar o fundo.

— Como é o ar por aí? Além de quente?
— Outra verificação, diferentes leituras.
— Semelhante ao da superfície, grosso modo. Alto conteúdo de nitrogênio, pouco ou nenhum oxigênio. A concentração de vapor d’água é ainda mais alta aqui, graças ao aumento da temperatura. Posso colher uma amostra, se você quiser. Ash se divertirá com ela.
— Não importa no momento. Prossiga.

Kane virou uma chave. Seu cinto registrou a composição aproximada da atmosfera naquele nível. Isso alegraria Ash, embora uma verdadeira amostragem tivesse sido melhor. Ainda bufando, Kane ativou o equipamento do peito.
Com um confortante zumbido, o cabo recomeçou a descer com ele.
Era mais solitário do que no espaço exterior.
Girando devagar à medida que o cabo desenrolava, ele se aprofundava numa escuridão total, sem qualquer estrela ou nebulosa à vista.
Tão repousado ficara com o negrume absoluto, que levou um choque quando seus pés tocaram uma superfície sólida. Grunhiu de surpresa e quase perdeu o equilíbrio. Firmando-se a custo, pôs-se de pé, e desativou o mecanismo de descida.
Preparava-se para desafivelar também o cabo quando se lembrou das instruções de Dallas. Ia ser difícil explorar atado como estava, mas Dallas não conteria sua irritação se descobrisse que Kane se soltara. Tinha, pois, de fazer o que pudesse, e rezar para que o cabo não se prendesse a alguma coisa invisível, acima da sua cabeça.
Respirando com maior desafogo, ligou tanto o bastão luminoso quanto as luzes da roupa, a ver se percebia melhor onde se encontrava.
Ficou logo evidente que sua idéia de estar numa caverna fora tão inadequada como emotiva. O aposento era obviamente outra dependência da nave alienígena.
A aparência despojada, as paredes nuas, o teto alto, pareciam indicar um porão de carga. A luz revelava, sucessivamente, estranhas formas ou formações, que ou constituíam parte integrante do porão ou eram coisas que se lhe tinham, de um modo ou de outro, agregado. De aspecto eram moles, quase flexíveis, em oposição à sólida aparência das costelas de metal que reforçavam as paredes de corredores e câmaras.
Alinhavam-se ao longo dessas paredes, na mais perfeita ordem.
E, todavia, não lhe comunicavam a impressão de haverem sido armazenadas. Havia um excesso de espaços vazios na vasta câmara abobadada. Naturalmente, antes de ter uma idéia precisa do que eram aqueles volumes todos não se poderia especular sobre o sistema que presidira (caso isso tivesse ocorrido) ao seu armazenamento.

— Você está bem, Kane? — era a voz de Dallas.
— Sim. Você deveria ver isto aqui.
— Ver o quê? Achou algo?
— Não estou certo. Mas é estranhíssimo.
— De que está falando, homem? — Houve uma pausa. E depois: — Kane, poderia ter a bondade de ser mais específico? 'Estranhíssimo' não diz muito... toda esta espaçonave é estranha, mas não poderemos descrevê-la assim no relatório...
— OK. Pois é um outro imenso recinto, como o de cima. E contém algo, à volta toda, junto das paredes...

Empunhando a barra de luz numa postura inconscientemente agressiva, de quem aponta uma arma, ele andou até a parede mais próxima e examinou uma das referidas massas em repouso. Assim perto, concluiu que não eram parte da estrutura. E não era só isso: pareciam mais orgânicas do que nunca.

No alto, Dallas virou-se para Lambert:
— Quanto falta para o pôr do sol?
Ela estudou seus instrumentos, tocou brevemente um controle num deles.
— Vinte minutos — informou. E acompanhou a notícia com um olhar significativo.

Dallas não comentou, voltou sua atenção outra vez para o negro círculo do poço, e continuou olhando fixamente para baixo, embora nada pudesse ver.
Um novo lampejo do seu bastão luminoso revelou a Kane mais um pouco dos peculiares objetos presos ao solo da câmara, no centro do salão. Ele se aproximou deles rodeando-os para examinar espécimes individuais, um por um. Cada um deles tinha aproximadamente trinta centímetros de altura, era de forma oval e de aparência coriácea. Escolhendo um deles à esmo, focalizou nele mais demoradamente o seu feixe de luz. Essa iluminação sustentada não revelou nada de novo, nem pareceu ter qualquer efeito sobre o ovóide.

— É certamente alguma espécie de área de estocagem — disse. Mas não obteve resposta dos alto-falantes do capacete. — Disse que se trata, indiscutivelmente, de um depósito de alguma coisa. Alguém me ouve?
— Muito bem, claramente — respondeu o capitão. — Estávamos digerindo a informação, só isso. Você diz estar seguro de encontrar-se num porão de carga, de carga específica?
— Isso mesmo.
— Alguma coisa em favor dessa conjectura além do tamanho e forma dos volumes?
— Claro. Os volumes estão nas paredes e também no chão. Todos semelhantes. Não são parte da estrutura da nave. O recinto está cheio deles. Parecem de couro. Na verdade, parecem-se muito com aquela urna que você encontrou lá em cima, só que são aparentemente muito mais moles. Parecem também estar selados, ao passo que o seu estava rompido e vazio. Estão arrumadinhos, segundo a idéia que alguém de ordem, embora a meu ver haja um enorme desperdício de espaço.
— Parece uma carga muito esquisita, se e que se trata mesmo de carga. Você não consegue ver se há, de fato, alguma coisa nos volumes? — Dallas tinha bem presente na cabeça a urna vazia que encontrara.
— Agüente-se aí. Vou dar uma olhadela mais de perto.
Deixando o bastão luminoso, Kane aproximou-se do espécime que vinha estudando, estendeu a mão enluvada e tocou-o. Nada aconteceu. Inclinando-se, tocou de leve nos lados, depois no topo. Não havia qualquer pegador ou alça, qualquer solução de continuidade, brecha ou greta na lisa superfície oblonga.
— É estranho, Dallas; porém mesmo através das luvas essa coisa transmite uma sensação bizarra.
A voz do capitão carregou-se de receio

— Eu tinha pedido apenas que você visse o que estava dentro. Não abra! Você não sabe o que pode conter!

Kane escrutinou o objeto mais de perto. Não mudara nem mostrava qualquer sinal de haver sido afetado pelo fato de ser puxado ou palpado.

— Dallas. Não sei o que contém, mas seja o que for está hermeticamente fechado. Talvez eu ache algum ovóide rachado ou partido como o outro.

No lusco-fusco das luzes da roupa espacial, uma pequena saliência fez-se visível na esticada superfície do ovóide que ele vinha tocando. Uma segunda erupção apareceu em seguida, depois outra, e mais outras, até que houve algo como uma série de calombos semelhantes, de tamanho moderado embora, por toda a superfície do topo.
Kane passara em revista alguns outros dos volumes e informava:

— Nada. Nem fenda nem rachadura em todos os volumes — disse e dirigiu, distraidamente, o foco de luz  para o ovóide que tinha examinado antes com maior detalhe. Logo se curvou sobre ele, surpreso com o que descobria.
A superfície, antes opaca, se tornara agora translúcida. E diante dos seus olhos arregalados, tornou-se aos poucos transparente como vidro. Kane acercou-se, dirigiu o feixe de luz para a base do objeto, cravou os olhos nele, incrédulo.
Mal respirava agora, pois uma forma se fizera visível dentro daquela espécie de caixa.
— Jesus!
— O que é Kane? O que se passa? — Dallas fazia esforço para não gritar.

Um pequeno pesadelo — era o que, agora se tornava patente no interior do ovóide. Compacto e delicado, dobrado sobre si mesmo, enrolado, feito de uma carne delicada, em filigrana. Para Kane que estava paralisado de horror, a coisa parecia uma espécie de delirium tremens arrancado a qualquer mente doentia e insuflado com forma e solidez.
A 'coisa' tinha a forma geral de uma mão, com muitos dedos longos e ossudos fechados para a palma. Semelhava a mão de um esqueleto, salvo pelo número de dedos a mais. Alguma coisa saía do centro da palma, uma espécie de tubo. Uma cauda muscular enrolava-se debaixo da base da mão. Nas costas havia também algo, que ele não percebia bem, mas que era convexo e parecia um olho vidrado.
Esse olho... Se era de fato um olho e não simplesmente alguma excrescência mais brilhante, pedia um exame mais acurado. A despeito do sentimento de repugnância que lhe mordia o ventre, Kane acercou-se ainda mais e ergueu a luz para ver melhor.
O olho moveu-se, e olhou para ele.

Então, o ovóide explodiu. Impelida para fora pela repentina libertação de energia contida na cauda em espiral, a mão abriu-se e saltou sobre ele. Kane levantou o braço a fim de aparar o golpe, mas era tarde demais. A mão agarrou sua placa facial. Ele teve uma horrível visão em close-up do oscilante tubo do meio da palma que tocava o vidro, centímetros acima do seu nariz. Alguma coisa começou então a chiar e o material da placa facial começou a derreter.
O astronauta entrou em pânico, tentou despregar a criatura do seu escafandro.
Mas ela já perfurara a veste espacial. Atmosfera alienígena, fria e áspera misturou-se ao ar respirável. Kane sentiu-se tonto, continuou a repelir debilmente aquela mão de pesadelo. Alguma coisa comprimia-lhe, com força, os lábios.

Para além de todo o horror concebível, ele cambaleava agora, procurando ainda livrar-se daquela abominação. Os dedos afuselados, compridos, sensitivos, tinham se enfiado pela máscara rompida. Envolviam a sua cabeça, apertavam os lados do seu rosto; e a cauda grossa enrolou-se do lado de dentro do capacete em torno do seu pescoço, como uma cobra.
Apenas capaz de respirar ainda, com aquele tubo horrendo, como um gordo verme, a descer-lhe agora pela garganta abaixo, Kane embaraçou um pé no outro, tropeçou e caiu de costas.

— Kane, Kane, você me ouve? — perguntava Dallas, suando dentro da roupa. — Kane, responda-me!

Silêncio. O capitão pensou rapidamente:
— Se você não puder usar mais o seu comunicador, dê dois sinais com a unidade rastreadora.

E olhou para Lambert, que poderia captar o sinal. Ela esperou um pouco, depois mais um pouco, antes de abanar a cabeça lentamente.

— O que acha que aconteceu?
— Não sei. Talvez tenha caído, danificado suas células elétricas. Kane não pode ou não quer responder. O melhor será içá-lo.
— Mas não é prematuro? Eu também estou preocupada, mas, mesmo assim...

Dallas tinha uma nota de desvario no olhar. Quando percebeu que Lambert o observava, acalmou-se:
— Estou bem. Estou muito bem. É este lugar... — e mostrou, com um vago gesto, as frias, plúmbeas paredes. — Mas insisto, vamos puxá-lo.
— Ele perderá o equilíbrio, se não está esperando isso... Poderá ferir-se, sobretudo se de fato caiu, se jaz numa posição falsa, torcida. E se não aconteceu nada, ele vai falar nisso anos a fio...
— Pois tente o contacto, pela última vez.
Lambert manipulou freneticamente seu comunicador:
— Kane, com mil diabos, responda!
— Continue tentando — disse Dallas.
Mas enquanto ela o fazia, o capitão debruçou-se sobre o poço e examinou o cabo. Movia-se fácil na sua mão, fácil demais. Puxou, e um metro de linha veio para cima, sem a esperada resistência.

— O cabo está solto — disse.
— E ele não responde. Não pode ou não quer. Você acredita que terá se soltado voluntariamente? Ouvi o que você lhe disse, mas sabe como ele e. Pensou, provavelmente, que você não perceberia uma temporária redução na tensão do cabo. Se viu algo de insólito e se teve medo que o cabo se partisse, ou prendesse em alguma coisa, ou ficasse fora do seu alcance, seria bem capaz de desligar-se dele.
— Não me importa o que tenha encontrado. O que importa, o que me alarma, é que ele não responde!
Dallas ligou o motorzinho.
— Lamento assustá-lo. Se não houver nada de errado com ele ou com o equipamento, vou fazê-lo desejar ter-me obedecido.

Um piparote em outro comutador, e o molinete começou a enrolar o cabo. Dallas observava fixamente e só afrouxou um pouco a expressão tensa, aflita, quando viu que a linha se retesava depois de haver recolhido uns dois metros. Como seria de esperar, o cabo passou a subir mais devagar.
— Há um peso na extremidade. O cabo pegou.
— Ou terá ficado preso a alguma coisa.
— Não pode ser. Continua a subir macio, alterou-se apenas a velocidade. Se estivesse enganchado em algum obstáculo e se puxasse alguma coisa além de Kane, a diferença de peso faria que subisse mais devagar ou mais depressa. Penso que ele ainda está lá, embora incapaz de responder.
— Mas, e se ele objeta e tenta usar a unidade que tem no peito para descer?
Dallas sacudiu a cabeça com brusquidão:
— Não pode fazer isso — e, apontando o guincho: — É o nosso cabo que está na roldana, não o portátil que ele está usando. Ele vai subir, queira ou não queira.

Lambert olhava, ansiosa, para a escuridão do poço.
— Ainda não vejo nada.
Um bastão luminoso fez dançar um incerto feixe numa parcela do poço. Era Dallas, que varria com a lança de luz as lisas paredes de cor cinza.
— Nem eu. Mas a linha continua a enrolar-se e vem tesa.
Continuava, de fato, sua firme subida. E as duas figuras, petrificadas nas suas estranhas, volumosas, vestes, aguardavam que alguma coisa surgisse no halo expectante da lanterna de Dallas. Vários minutos se passaram até que o cone de iluminação foi interrompido por algo que ascendia.
— Aí vem ele.
— Mas não se move! — exclamou Lambert, à espreita de um gesto qualquer da forma que se acercava, de um gesto obsceno que fosse... Mas Kane não se mexia.
A trípode inclinou-se um pouco para baixo quando os últimos metros de cabo foram engolidos pelo mecanismo.
— Prepare-se para agarrá-lo no momento em que balance para seu lado!
Lambert se aprestou, do outro lado do poço.
O corpo de Kane surgiu à vista, a balouçar lugubremente na ponta do cabo. Parecia frouxo e inerte.
Dallas debruçou-se no vazio, com a intenção de agarrar o astronauta imóvel pelo peito dos arreios. E sua mão quase fizera contacto com ele quando percebeu, dentro do capacete fraturado, a criatura cinzenta e igualmente imóvel que envolvia a cabeça de Kane.
 Puxou a mão como se a tivesse queimado.

— Que foi? — perguntou Lambert.
— Cuidado! Há algo no rosto dele, dentro do capacete!
Ela contornou o buraco.
— Mas o quê...
E aí teve sua primeira visão da criatura, aninhada lá dentro como um molusco na concha.
— Jesus!

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