domingo, 20 de abril de 2014

O Oitavo Passageiro - Alan Dean Foster (Parte 15)






VIII


O café fez bem aos seus estômagos, embora não os tranqüilizasse.

Em torno deles, o Nostromo funcionava normalmente, sem interesse no alienígena em seu frasco de estase. O zumbido familiar das máquinas, odores diversos, domésticos, como o do café, enchiam a ponte. Como todos os dias.

Dallas reconhecia alguns desses odores como oriundos de membros da tripulação. Não o ofendiam, apenas registrava-os. Bastava-lhe uma fungada para identificá-los, via de regra. Nunca precisava mais de duas. Ninguém sentia falta de desodorantes nem se importava que fossem ou não usados. Numa nave das dimensões do Nostromo, a tripulação, aprisionada num vaso de metal anos-luz a fio, isolada de mundos mais quentes e de atmosferas desinfetadas, tinha mais que fazer quando acordada do que importar-se com os eflúvios dos vizinhos.

Ripley parecia ainda nervosa.
— Que macaco mordeu você? Ainda zangada com Ash, por ter aberto a porta e nos deixado entrar?
A voz dela veio cheia de frustração:
— Como pode você deixar uma decisão dessas nas mãos dele?
— Mas já lhe expliquei isso, Ripley — repetiu Dallas, pacientemente. — Foi minha a decisão de trazer Kane para dentro, não... Ou você se refere à decisão de conservar a carcaça da criatura alienígena?
Ela assentiu:
— Sim. É tarde agora para discutir a história da câmara de descompressão. Posso ter errado naquilo. Mas guardar esse ser a bordo, vivo ou morto, depois do que fez com Kane!
Ele tentou amolecê-la.
— Não sabemos com certeza que tenha feito mal a Kane. Exceto botá-lo desacordado. Segundo todas as leituras não há nada de errado com ele. Quanto a guardar a coisa a bordo, eu apenas comando a nave. Sou um simples piloto.
— Você é o capitão.
— Um título de última instância, que nada significa em situações específicas. Parker pode revogar uma ordem minha num ponto qualquer de engenharia. No que diz respeito à divisão de ciência, Ash tem a última palavra.
— E por que é assim? — Ripley parecia, agora, mais curiosa que amarga.
— E não é tudo assim? Ordens da Companhia. Leia o regulamento.
— Desde quando tal procedimento é padrão?

Ele começava a ficar exasperado.

— Vamos, Ripley, isto não é uma nave de guerra. Você sabe tão bem quanto eu que norma aqui é tudo o que lhe dizem que faça. Isso inclui a autonomia dos diversos departamentos, como o de ciência. E se a coisa fosse diferente, não estou certo de que teria aceitado o posto.
— Por quê? Visões de bônus de descobertas desfeitas diante do espectro de um morto?
— Você sabe que isso não é verdade. Não há bônus grande bastante que se barganhe por uma vida como a de Kane. Mas é tarde. Aqui estamos, e aconteceu. Escute, não seja tão severa comigo. Apenas transporto carga para viver. Se quisesse ser um explorador e andar por aí à caça de bônus por descobrimentos, teria ido para o Corpo Rim. E já teria a cabeça arrebentada pelo menos uma dúzia de vezes. Quanto à glória... não, obrigado. Não me interessa mesmo. Quero é meu oficial de volta.
Ela não disse nada dessa vez. Permaneceu sentada por vários minutos. E quando falou, já não tinha amargura na voz.
— Você e Kane já voaram juntos muitas vezes?
— O bastante para nos conhecermos um ao outro.
Dallas conservara a voz neutra e tinha os olhos em seu console.
— E Ash?
— Vai recomeçar com isso? — deu um suspiro. Não havia para onde fugir. — O que quer saber com referência a Ash?
— O mesmo. Você disse que conhece Kane. Conhece Ash? Já voou com ele antes?
— Não. — Coisa que não preocupava Dallas de nenhuma maneira. — É a primeira vez. Fiz cinco jornadas, longas e curtas, com outro oficial de ciência. Então, dois dias antes de deixarmos Thedus, eles o substituíram por Ash.
Ela o encarou vitoriosamente.
— E daí? O que quer provar? Também substituíram meu antigo oficial de segurança por você.
— Não confio nele, Dallas.
— Atitude muito certa num oficial de segurança. Quanto a mim... acho que não confio em ninguém. — Era tempo, pensou, de mudar de assunto. Tanto quanto observara, Ash era oficial correto, se bem que se formalizasse sempre que o grupo procurava confraternizar. Mas a familiaridade não era de rigor em viagens nas quais as pessoas passavam a maior parte do tempo na narcose do hipersono, exceto ao embarcar e desembarcar. O homem fazia sua parte, e Dallas pouco se importava com sua personalidade. Até então, não tivera motivo para duvidar da competência dele.

— Por que os reparos são tão lentos? — perguntou a Ripley.
Ela consultou o cronômetro e fez alguns cálculos mentais. — Tudo deve estar pronto. Só será preciso ir com um pente fino agora, ver se tudo funciona mesmo como deve.
— Por que não me disse antes?
— Porque haverá, ainda, uma infinidade de pequenas coisas por fazer. Caso contrário, já teriam dito alguma coisa no intercomunicador. Escute: você acha que estou protegendo Parker? Parker entre todas as pessoas do mundo?
— Não. Mas o que falta fazer?
Ela interrogou seu console.
—B e C ainda estão cegos. Nesses dois deques, os examinadores estouraram e têm de ser inteiramente substituídos.
— Os deques B e C não me interessam a mínima. Não quero vê-los, estou cansado de saber como são. Alguma outra coisa?
— Os sistemas de energia de reserva estouraram pouco antes de descermos. Lembra-se do problema com as secundárias?
— Mas os condutos principais foram consertados?
Ela concordou de cabeça.
— Então essa história de sistemas de reserva é bobagem. Podemos sair daqui sem isso, mergulhar no hipersono, viajar de verdade ao invés de plantados indefinidamente neste planetóide infame.
— Mas será uma boa idéia? Quero dizer: decolar sem reservas sem as secundárias consertadas?
— Talvez não seja. Mas quero sair daqui, e quero sair já. Investigamos aquele pedido de socorro e não há ninguém para salvar aqui. Exceto, agora, Kane. Que a Companhia envie uma expedição equipada apropriadamente, e essa expedição fará em torno daquele casco as investigações ou as escavações necessárias. Não é para isso que nos pagam. Cumprimos os regulamentos vigentes, agora chega. Vamos botar este passarinho para voar.

Ocuparam, em seguida, suas posições regulares na ponte. Kane e o alienígena morto estavam esquecidos. Tudo estava esquecido, exceto a rotina de decolagem. Eram, agora, uma unidade. Animosidades pessoais, opiniões individuais, tudo cedia em face do desejo de tirar o rebocador do solo e botá-lo de novo no espaço aberto e claro.

— Propulsão primária ativada — anunciou Ash. Estava de volta da enfermaria e entregue às suas tarefas de rotina.
— Confere — disse Lambert.
— As secundárias ainda não funcionam, capitão — disse Ripley, franzindo o cenho à leitura vermelha que surgira no console superior.
— Sim, eu sei. Navegadora, estamos prontos?

Lambert estudou seus painéis.

— Reentrada em órbita computadorizada e entrada. Estou conferindo posições com a refinaria neste momento. Levará apenas um segundo. Pronto — apertou vários botões em seqüência e vários números acenderam-se por cima da cabeça de Dallas.
— Muito bem. Faremos correções, se for o caso, em vôo. Alerta para decolagem.
Envolvido pela poeira girante, o Nostromo começou vibrar. Um rugido imenso se elevou acima dos estrondos surdos da tempestade, e ecoou por aquelas vastidões de lava, partindo colunas hexagonais de basalto. 
— A postos — disse Ripley.
Dallas olhou para Ash:
— Como se comporta a nave?
O oficial de ciência consultou seus medidores.
— Tudo funciona. Por quanto tempo, não posso dizer.
— Bastará para nos tirar daqui — disse Dallas. E no intercomunicador: — Parker, como lhe parecem as coisas, aí de trás? Acha que podemos ir sem propulsão profunda?

Se não fossem capazes de vencer a gravidade na propulsão primária, teriam de usar a hiper para entrarem em órbita. Isso Dallas sabia. Mas um segundo ou dois de hiper- propulsão os lançaria completamente fora daquele sistema. O que implicava em relocalização e na perda de um tempo precioso de vigília para novos alinhamentos com sua carga. E tempo de vigília representava consumo de ar. Minutos eram iguais a litros. O Nostromo poderia continuar a reciclar seu pequeno suprimento de ar respirável apenas por determinado tempo. Quando seus pulmões começavam a rejeitá-lo, tinham de voltar aos congeladores, quer tivessem encontrado a refinaria quer não.
Dallas pensava nessa gigantesca refinaria flutuante e procurava imaginar quanto tempo levariam para pagar o preço dela com seus modestos salários.
A resposta de Parker foi animadora, se bem que não chegasse a encorajar.

— OK. Mas lembre-se de que os reparos que fizemos foram meros remendos. Só no estaleiro será possível fazer os definitivos.
— Você acha que a nave se agüenta?
— Deve agüentar, a não ser que, na subida, encontremos excesso de turbulência, que poderá estourar as novas células.
Isso foi tudo o que a Mãe disse. Nós não poderemos consertá-las de novo.
— Vá com cuidado, então — disse Brett, do seu contato, no cubículo da engenharia.
— Entendido, Brett. Vamos ter cuidado aqui na ponte. O que temos a fazer é atingir zero depois engrenar a hiperpropulsão até o Sol. Aí as porcarias das células podem pipocar o quanto quiserem. Mas até levantarmos a traseira disto aqui e sairmos de órbita, elas têm de ficar intactas nem que você tenha de segurá-las com as mãos.
— Faremos o que pudermos — disse Parker.
— Entendido. Ponte desligando.

Dallas voltou-se para a oficial de segurança do Nostromo. Ripley substituía o incapacitado Kane.

— Leve-nos cem metros para cima e recolha as pernas de aterrissagem — e voltando toda sua atenção para o console: — Cuidarei para que a nave fique firme.
— Cem para cima — Ripley acionou alguns controles.

O trovão se intensificou lá fora e o rebocador ergueu-se da superfície crestada, polida de vento e poeira em suspensão. A nave subiu uma centena de metros, e a poeira dançou, confusamente, abaixo dela. Os maciços pilares que haviam sustentado toda aquela massa dobraram-se, então, obedientes, debaixo do ventre de metal.
Uma batida surda ecoou na ponte, confirmando os dados fornecidos pelos computadores.

— Pernas recolhidas — disse Ripley. E depois: — Fechando placas — e as placas de metal deslizaram sobre as pernas, selando-as hermeticamente, deixando fora partículas de poeira e de atmosfera.
— A postos — disse Ash.
— OK, Ripley. Kane não está conosco, o show é seu. Ponha-nos em órbita.

Ela acionou uma dupla alavanca no console do oficial executivo. O ruído lá fora era ensurdecedor, embora não houvesse na superfície desolada ninguém capaz de escutá-lo e pasmar com a inteligência da humanidade. Inclinado ligeiramente para cima, o Nostromo começou a mover-se.

— Ligando os Gs — anunciou ela, apertando vários botões adicionais. — Aí vamos.
Apontando para o céu, e com velocidade crescente, a nave deu partida e foi em frente. Ventos fortíssimos envolveram-na, resvalaram pela sua pele curtida, rude, de liga metálica, mas nem lhe retardaram a marcha nem lhe alteraram o curso.
A atenção de Lambert fixara-se num único instrumento.

— Um quilômetro e subindo. Curso correto. Inserção em órbita em cinco ponto três dois minutos.
"Se" — acrescentou consigo mesma — "não nos desintegrarmos antes disso."
— Parece que vai dar — disse Dallas, vendo duas linhas convergirem e se confundirem no seu console. — Ligar gravidade artificial.

Lambert torceu um comutador. A nave pareceu tropeçar. O estômago de Dallas protestou, e a gravidade daquele pequeno mundo retrocedeu cedendo lugar a um empuxo gigantesco, implacável.

— Ligada — disse Lambert. E suas entranhas se acomodaram outra vez.
O olhar de Ripley dançava de um mostrador paia outro. Uma pequena discrepância apareceu numa leitura, c ela se deu pressa em corrigi-la.
— Leituras de empuxo conflitantes. Alterando o vetor agora.
Ela virou uma chave e observou com satisfação quando a agulha voltou vagarosamente para o lugar correto.
— Compensação efetuada com êxito. Tudo normal, agora.
Dallas começava a crer que realizariam seus propósitos sem maiores problemas, quando um violento tremor sacudiu a ponte. Vários objetos foram lançados longe e a tripulação ficou em polvorosa. Mas durou apenas um instante. E não se repetiu.
— Que diabo foi isso? — indagou o capitão. Como que em resposta, o intercomunicador avisou que ia falar.
— É você, Parker?
— Sim. Temos dificuldades aqui.
— Sérias?
— A quadra de estibordo está aquecendo demais. Julgue por si mesmo.
— Você é capaz de resolver isso?
— Está brincando? Vou é desligar o troço.
— Compensando de novo, empuxo desigual — disse Ripley solenemente.
— Veja se nos agüenta até passarmos duplo zero — disse Dallas.
—E o que pensa que estamos tentando fazer aqui atrás? — E o intercomunicador desligou.

Uma pequena mudança no ronco dos motores fez-se perceptível na ponte. Ninguém olhou para o vizinho, com medo de ver os próprios temores refletidos nele.
Movendo-se mais devagar, mas ainda sem esforço através de nuvens borbulhantes, o Nostromo prosseguiu sua marcha ao encontro da refinaria que deixara em órbita.
Em contraste com a relativa calma da ponte, a casa de máquinas era cenário de uma atividade frenética. Brett se enfiara de novo num tubo dos grandes, suando e desejando estar alhures.

— Descobriu o que foi? — perguntou Parker.
— Acho que sim. É a miserável poeira de novo, que entope os orifícios de entrada. Agora é o número dois que começa a esquentar demais.
— Pensei que já tínhamos desligado esse lixo.
— Eu também pensei. Uma tela deve ter caído outra vez. Esses motores são extremamente delicados.
— Não foram feitos para atravessar tempestades desse tipo, com ventos carregados de partículas — disse Parker. — Veja se mantém a coisa por mais dois minutos, e estaremos salvos.

Mas um segundo tremor sacudiu a ponte. Cada um fixou seu próprio console. Dallas pensou em interrogar a engenharia, mas desistiu. Se Parker tivesse alguma coisa a dizer, usaria o intercomunicador.

"Vamos, vamos" — urgia ele, consigo mesmo. — "A nave tem de subir." Prometia-se que, se Parker e Brett conseguissem manter as primárias funcionando por mais uns dois minutos, ele lhes daria os bônus integrais que viviam a reclamar. Mas um mostrador em seu console lhe indicava que a atração gravitacional caía rapidamente.

Mais um minuto — suplicou aos deuses, acariciando com a mão, inconscientemente, a parede mais próxima. Mais um miserável minuto.

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