domingo, 20 de abril de 2014

O Oitavo Passageiro - Alan Dean Foster (Parte 6)


  
Kane torceu uma chave. A couraça de proteção retraiu-se, revelando três botões escondidos. Ele os apertou em seqüência. Com um gemido a porta deslizou para o lado.

Entraram.

Sete trajes pressurizados alinhavam-se contra a parede. Eram volumosos, incômodos, mas absolutamente necessários para a excursão, mesmo que a análise da atmosfera exterior, feita por Ash, fosse só meio correta. Ajudaram-se uns aos outros a enfiar aquelas peles artificiais de proteção, e verificaram o funcionamento de todas elas.
Só então envergaram os elmos — o que foi feito com a solenidade e o cuidado devidos. Cada um verificou se o capacete do vizinho estava hermeticamente selado. Dallas conferiu o de Kane, Kane o de Lambert, e Lambert o do capitão. Executaram a operação com seriedade, embora mais parecessem versões espaciais de macacos numa sessão de faceirice coletiva. Ligaram em seguida os reguladores automáticos. E logo respiravam o ar dos cilindros, um pouco choco, é verdade, mas saudável e limpo.
Dallas, com uma desajeitada manopla enluvada, ativou o intercomunicador do capacete:

— Transmitindo. Podem ouvir-me?
— Recebendo — anunciou Kane, depois de uma pausa em que pôs sua própria aparelhagem para funcionar. — Você também me ouve?
O capitão fez que sim, com a cabeçorra. Depois voltou-se pesadamente para Lambert, ainda muda e emburrada.
— Recebendo — disse ela também, mas sem esconder o enfado. Não gostara nada de ser escolhida para a expedição.
— Vamos, Lambert — disse Dallas, para animá-la. — Estou levando você pelos seus méritos, não pela boa disposição.
— Obrigada pela lisonja — respondeu Lambert secamente —, mas é só também. Por que não escolheu Ash ou Parker? Qualquer dos dois teria dado saltos de alegria.
— Ash tem de ficar a bordo, e você sabe disso. Parker tem muito que fazer na casa de máquinas, e não seria capaz de sair de um simples saco sem os seus instrumentos. Não me importa que você me amaldiçoe a cada passo, desde que nos leve à fonte daquele maldito sinal.
— Maravilhoso.
— Muito bem, estamos entendidos. Não toquem nas armas sem ordem.
— Você espera mesmo companhia? — perguntou Kane, desconfiado.
— Sempre é bom estar preparado.
Dedilhou os controles externos da roupa espacial, abriu outro canal, e perguntou:
— Ash? Está me ouvindo?
Foi Ripley quem respondeu:
— O senhor oficial de ciência está descendo para sua ampola transparente de observação. Conceda-lhe dois minutos, capitão Dallas.
— Entendido — e voltando-se para Kane —, feche o postigo interno. — O executivo operou os controles necessários e a porta deslizou por detrás deles. — Agora, destranque o postigo externo.

Kane repetiu o processo que os admitira à câmara. E quando o último botão foi apertado, recuou para junto dos outros, à espera. E Lambert apertou-se contra a porta interna, numa reação instintiva em face do desconhecido.
A porta externa correu. Nuvens de vapor e de poeira cósmica dançaram à frente dos três terráqueos.
A luz da madrugada era de um laranja-calcinado. Não tinha o confortante amarelo do Sol. Mas Dallas esperava que mudasse, com a progressão do dia. Dava, em todo caso, claridade bastante para verem naquela atmosfera densa, carregada de partículas.
Pisaram na plataforma elevadora, que corria entre duas guias verticais. Kane tocou num botão, e a plataforma desceu. Tinha censores debaixo do piso para saber onde ficava o chão. Computou, assim, a distância, e deteve-se quando sua base roçou a parte superior do solo, que era de pedra escura.

Com Dallas à frente, mais por hábito do que realmente por protocolo, a pequena patrulha se adiantou cautelosamente pela superfície. Era de lava endurecida, que não cedia debaixo de suas botas. Ventos da força de vendavais açoitaram-nos quando se detiveram para um primeiro reconhecimento da paisagem. De momento, nada podiam ver, salvo o que corria por entre seus pés e se perdia na névoa alaranjada e marrom.
"Que lugar deprimente!" pensou Lambert. Não necessariamente assustador, embora a impossibilidade de ver muito adiante do nariz fosse desconcertante. Lembrava-lhe um mergulho à noite em águas infestadas de tubarões. Era impossível dizer o que poderia surgir, de chofre, da escuridão.
Talvez ela estivesse a tomar uma decisão muito drástica muito cedo, mas não pensava assim. Em toda aquela terra embuçada não havia uma só nota mais vibrante de cor. Não havia, por exemplo, nem azul nem verde. Tudo lavado em sépia e amarelo, com algum laranja, castanhos desbotados, cinzentos sujos. Nada capaz de alegrar a vista, aquecer a alma ou aliviar as preocupações da mente. A atmosfera semelhava um experimento malogrado de química com cloro e enxofre. E o chão parecia um tombadilho coberto de excreta. Tinha pena de qualquer coisa que tivesse um dia vivido ali. A despeito de qualquer evidência pró ou contra, sentia que nada vivia ali agora.
E se Kane estivesse com a razão? Talvez aquilo fosse a pervertida idéia de paraíso de alguma criatura inimaginável. Nesse caso, não gostaria de encontrá-la...

— Em que direção?
— O quê?
O nevoeiro, os vapores, lhe haviam toldado os pensamentos. Sacudiu-os dentro da cabeça.
— Em que direção, Lambert?
Dallas mirava-a, inibido.
— Estou bem. Excesso de preocupações.
Na mente, visualizava sua estação a bordo do Nostromo. Aquele assento e o seu instrumental de navegação, tão confinantes e sufocantes em condições normais, pareciam-lhe, agora, um pedaço do céu.
Conferiu uma linha na tela de um pequeno engenho que levava preso ao cinto.
— Para lá — disse. — Naquela direção. — E apontou.
— Você mostra o caminho — disse o capitão. E pôs-se imediatamente atrás dela.
Seguida, então, por Dallas e Kane, Lambert começou a caminhar, em meio à tempestade. Bastou que deixassem a massa protetora do Nostromo, para que vento e poeira os envolvessem.
A mulher parou, contrariada, e acionou os instrumentos que levava na roupa.
— Não posso ver nada!
Surpreendentemente foi a voz de Ash, que soou dentro do seu capacete.
— Sintonize o situador, Lambert. Ele está dirigido para o transmissor do sinal de socorro. Deixe que ele guie você e não mexa nele. Eu mesmo o dirigi e está correto.
— Já está ligado, Ash, e sintonizado também, ou você pensa que eu não conheço o meu ofício?
— Não quis ofendê-la — respondeu, do conforto da nave, o oficial de ciência.
Dallas falou também, da concha do seu capacete:
— O situador está funcionando a contento. Você pode me ouvir, Ash?
Dentro da sua ampola transparente, situada no ventre do Nostromo, Ash desviou os olhos das figuras que o pó ocultava a meio ou fazia dançar a distância, e fixou-os no seu console brilhantemente iluminado. Três imagens de ouro, estilizadas e hieráticas como ícones, desenhavam-se ali, nítidas e claras contra o fundo da tela. Ele tocou um controle, e ouviu-se um pequeno gemido. Sua cadeira deslocou-se para o lado, e Ash ficou alinhado precisamente com o painel aceso.
— Vejo-os perfeitamente aos três aqui na minha bolha plástica. E posso ouvi-los também com clareza. O nevoeiro não é tão espesso que interfira muito, pelo menos aqui na superfície. E como o sinal de socorro está em outra freqüência, não há perigo de superposição.
— É bom, isso. E promissor. — A voz de Dallas parecia artificial. — Estamos captando vocês muito bem. Vamos manter os canais abertos. Não queremos ficar perdidos aqui fora. Não nestas circunstâncias, neste tempo.
— Correto. Acompanharei cada passo de vocês. Mas não os incomodarei, a não ser que alguma coisa muito importante aconteça.
— Muito bem, Dallas desligando — disse Dallas. Mas deixou aberto o canal de comunicação com a nave. Depois, vendo que Lambert percebera, acrescentou:
— Estamos perdendo um tempo precioso. Prossigamos.

Sem uma palavra, ela voltou sua atenção para o situador e recomeçou a andar em meio a todo aquele lixo que se movia por si mesmo. A gravidade, ligeiramente mais baixa, reduzia o peso das roupas e dos tanques de oxigênio. Intrigava-os, porém, o enigma de um mundo tão pequeno capaz de gerar atração tão forte. Dallas anotou mentalmente que seria aconselhável fazer uma pesquisa geológica mais aprofundada da sua composição. Talvez fosse influência de Parker, mas a possibilidade de que o planeta escondesse grandes depósitos de metais preciosos não podia ser ignorada.

A Companhia, naturalmente, chamaria a si a descoberta, uma vez que fora feita a expensas dela e em horário por ela comprado a bom dinheiro. Mas, de qualquer modo, haveria polpudas bonificações. A escala involuntária poderia, afinal de contas, render alguma coisa.

O vento era impiedoso, açoitava-os sem trégua com pó e cascalho.
— Impossível enxergar a mais de três metros, em qualquer direção — queixou-se Lambert.
— Deixe de lamúrias — disse Kane.
— Mas eu gosto de me lamuriar...
— Vamos. Deixem de portar-se como crianças. O lugar não é apropriado.
— E, todavia, é maravilhoso. — Lambert não se deixara intimidar. — Intocado pelo homem, preservado pela natureza. Lugar ideal, se a gente é uma pedra.
— Já disse: chega.
Ela calou-se, mas continuou a resmungar coisas ininteligíveis. Dallas não podia proibir também que falasse entre os dentes.
De súbito, os olhos dela registraram uma informação que, momentaneamente, galvanizou seus pensamentos. Alguma coisa desaparecera da tela do situador,
— O que foi? — perguntou Dallas.
— Espere.
Ela ajustou ligeiramente o aparelho, o que era difícil, dada a espessura das luvas. A linha que sumira da face da tela reapareceu.
— Eu tinha perdido uma linha. Captei-a de novo.
— Algum problema? — Uma voz distante soou nos capacetes deles. Era Ash que se inquietava.
— Nada de importante — informou Dallas. E fez um pequeno círculo de 360 graus tentando encontrar algo de sólido na tempestade. — Ainda e sempre vento e pó. O raio do situador começa a falhar, a interromper-se. Perdemos a transmissão por um segundo.
— Ainda está bem nítida aqui atrás — Ash conferiu suas leituras. — Não penso que tenha sido a tempestade. Talvez estejam entrando em terreno mais acidentado. Isso poderia bloquear o sinal. Cuidado, então. Se o perderem e recobrarem de novo verifiquem meu próprio canal até que possam receber de novo a transmissão. Eu os orientarei daqui.
— Vamos ter isso sempre presente, Ash, mas por enquanto não é necessário.
 — Comunicaremos a você qualquer problema desse tipo e dessa seriedade.
— Confere. Desligando.
Tudo ficou silencioso de novo. Andaram calados pelo vasto limbo alaranjado de partículas. Depois de algum tempo, Lambert estacou.
— Perdeu-o de novo?    
— Não. Mudança de direção — gesticulou para a esquerda deles. — Temos de ir agora para lá.
Tomaram a nova direção, Lambert de olhos pregados à tela do situador, Dallas e Kane de olhos pregados em Lambert. Em volta deles, a tempestade parecia ganhar violência.
Partículas maiores faziam um barulho fino, martelante, nos visores dos capacetes, trasmudando-se no cérebro deles em palavras onomatopaicas:
Tic-tic... queremos entrar... plic, ploc... queremos entrar...
Dallas sacudiu-se como um cachorro. O silêncio, a desolação envolta em nuvens, a cerração amarelenta, tudo aquilo começava a ter efeito sobre ele.
— Está perto — disse Lambert. Os monitores das roupas transmitiram, imediatamente, ao remoto Ash, a aceleração simultânea dos seus pulsos.
— Muito perto mesmo.

Prosseguiram. Alguma coisa surgiu à frente, muito acima deles. A respiração de Dallas ficou mais curta, de excitação, mas também de esforço físico.
Desapontamento... Era apenas uma grande formação rochosa, retorcida e grotesca. A previsão de Ash de que encontrariam, provavelmente, terreno mais alto confirmou-se. Abrigaram-se por um instante à sombra do monolito. E nesse momento exato a linha desapareceu outra vez do situador de Lambert.
Aconteceu outra vez.

— Teremos ultrapassado o sinal?
Kane estudou as rochas, tentou ver por cima delas, não pôde.
— Não pode ser. Só se for uma fonte subterrânea.
Dallas recostou-se contra a parede rochosa.
— Talvez esteja por detrás disto aqui — bateu na rocha com o punho cerrado. — Ou pode ter sumido devido à tempestade. Vamos parar um pouco e ver.
Esperam ali, descansando as costas no paredão liso.
— Agora sim é que estamos cegos — disse Kane.
O dia vai raiar logo — ajustou o seu pick-up. — Ash, se me pode ouvir: quanto falta para amanhecer?
A voz do oficial de ciência soou débil, distorcida pela estática.
— O sol nasce em cerca de dez minutos.
— Poderemos ver melhor, então.
— Ou menos do que agora — disse Lambert. Não se preocupava em disfarçar seu desânimo. Estava muito cansada, e tinham ainda de alcançar a fonte do sinal. Nem se tratava de fraqueza física. A desolação, o colorido sobrenatural começavam a fatigar-lhe a mente. Tinha saudades do seu console, limpo, familiar, brilhante.

A claridade crescente não ajudava, tal como previra. Ao invés de reanimá-los, o sol nascente assustou-os, fazendo com que o ar passasse de cor de laranja a cor de sangue. Talvez tudo ficasse menos terrificante quando a fraca estrela chegasse a seu zênite.

Ripley passou a mão na fronte e deixou escapar um suspiro de exaustão. Fechou e aparafusou o último dos painéis em que estivera trabalhando, depois de verificar que os novos componentes funcionavam bem. Então, pôs suas ferramentas na bolsa.
— Agora, você mesmo pode cuidar do resto. Tudo o que era mais delicado está feito.
— Não se incomode. Nós nos arranjaremos — disse Parker. Teve o cuidado de manter a voz neutra. Não olhou, também, para ela, concentrando-se no seu trabalho. Preocupava-o ainda a possibilidade de que ele e Brett ficassem à margem das eventuais descobertas da expedição.
Ripley dirigiu-se para a mais próxima das subidas, mas acrescentou:
— Se você tiver dificuldades e precisar de mim, estou na ponte.
— Certo — respondeu Brett, pelos dois. Macio.
Parker viu desaparecer sua delicada silhueta.
— Filha da puta — disse.

Ash apertou um controle. Um trio de formas moventes entrou em foco, perdendo seus halos imprecisos, quando o acentuador se pôs em ação. Ele conferiu seus outros monitores. Os sinais dos três trajes espaciais continuavam a chegar-lhe, fortes e nítidos.
— Como vão indo? — quis saber uma voz, no intercomunicador.
Rapidamente, ele desligou a tela, e acionou seu respondedor.
— Até agora, bem.
— Onde estão eles? — perguntou Ripley.
— Aproximando-se da fonte emissora. Atingiram terreno rochoso, e os sinais falham intermitentemente, mas estão de tal modo próximos da sua origem que não vejo como poderão errar. Logo teremos notícias deles.
— Por falar no sinal, não temos mais nenhum dado sobre ele até agora?
— Não, ainda não temos.
— Você já tentou passar a transmissão pelo ECIU para uma análise mais detalhada?
— Ouça, tenho tanto interesse quanto você nisso. Mas se a própria Mãe não identificou a pulsação até agora, de que adiantaria qualquer esforço meu?
— Você se importaria se eu tentasse?
— Mas de modo nenhum! Mal não fará, e pelo menos servirá para matar o tempo. Peço unicamente que me mantenha informado, que me diga se conseguiu alguma coisa, caso tenha sorte.

Ela se afundou um pouco mais no seu assento. A ponte parecia curiosamente espaçosa agora, com o resto da tripulação ausente e Ash embaixo, na sua ampola. Na verdade era a primeira vez que se lembrava de ter ficado assim sozinha ali. Provocava uma sensação estranha, não muito agradável.
Mas se ia dar-se ao trabalho de fazer a análise do sinal pelo ECIU, cumpria começar. Bastou tocar num controle para encher a ponte com o uivo atormentado da nave alienígena. Nervosa, ela se deu pressa em reduzir o volume. A coisa já era suficientemente aflitiva em intensidade moderada.

Podia perfeitamente entender que Lambert tivesse sugerido tratar-se de uma voz. Mas isso era afinal de contas um conceito mais fantasioso que científico.
Controle-se, mulher. E veja o que a máquina tem a dizer sobre o assunto. Suas reações emotivas devem ficar fora disso.

Ciente da improbabilidade do sucesso onde a Mãe falhara, ativou um painel pouco usado. Como dissera Ash, isso, pelo menos, a ocuparia. Não suportava ficar sentada, à toa, numa ponte vazia. Pensava demais.
Melhor um trabalho de faz-de-conta do que nenhum.

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