domingo, 20 de abril de 2014

O Oitavo Passageiro - Alan Dean Foster (Parte 13)






VII

— O que acha?

Parker debruçava-se tanto quanto podia, suando ao lado de Brett enquanto este tentava selar as últimas e delicadas conexões dentro do espaço confinado do décimo segundo módulo. Tentavam executar trabalho que normalmente exigiria material altamente sofisticado e computorizado. Como não tinham senão ferramentas relativamente toscas, eram obrigados a lançar mão do que melhor servisse aos seus propósitos, embora sua destinação original fosse outra bem diversa.

— Ferramentas erradas para serviço errado — dizia Parker com seus botões (ou poderiam ainda ser chamados botões aqueles troços?). A não ser que o módulo 12 estivesse adequadamente reparado, e tornado operativo uma vez mais, teriam grandes problemas na hora de deixar aquela droga de planeta. Mas para deixar um mundo daquele, Parker estava disposto a trabalhar até com os dentes.

No momento cabia a Brett lutar com as recalcitrantes peças. Como todos os instrumentos a bordo do cargueiro, o módulo usava partes sobressalentes seladas na fábrica e encaixáveis no lugar. Ploc! O ardil consistia em remover o lixo, e o que restava das partes arruinadas sem remédio pelo sangue envenenado da besta, sem interromper funções vitais ou sem causar dano a outras partes, igualmente delicadas, da direção da nave. As novas partes entrariam direitinho nos lugares próprios se fosse possível limpá-los antes, dando sumiço ao refugo carbonizado.

— Acho que consegui — disse Brett. — Vamos ver agora se funciona.

 Parker recuou um passo, apertou dois botões no console que lhes ficava acima da cabeça, depois conferiu, esperançoso, um monitor portátil. Nada. Acionou os botões pela segunda vez, de novo em vão. O monitor permaneceu atrevidamente mudo.

— Nada.
— Dane-se! Eu estava certo de que ia funcionar!
— Pois bem, não funcionou, e pronto. Tente o seguinte. Eu sei que eles parecem em ordem, exceto o número 43, e este nós já substituímos. Mas é esse o problema com as células. Se o regulador fica sobrecarregado e se uma delas queima, é preciso abrir tudo e descobrir qual a que falhou. — fez uma pausa e acrescentou: — Quisera ter um traçador.
— Você e eu.
Fracos ruídos de metal arranhando plástico vinham do interior do conjunto.
— Tem de ser a próxima — Parker tentava parecer otimista. — Não temos, afinal, de conferir todas elas manualmente. Mãe reduziu o campo de investigação. Agradeça pelo menos esses favores menores...
— Serei grato — respondeu Brett —, serei grato sim, mas só quando arrancarmos desta rocha e estivermos no nosso bom hipersono.
— Deixe de pensar em Kane — Parker apertou os dois botões, nada aconteceu, e ele praguejou em silêncio. — Outra que está morta. Experimente a seguinte, Brett.
— Certo.

Brett obedeceu, substituiu a célula que vinha de conferir. Parker ajustou diversas alavancas superiores. Talvez pudessem reduzir um pouco mais a linha avariada. Doze módulos continham uma centena de minúsculas células de aceleração. A idéia de examinar uma por uma para descobrir a que estava queimada dava-lhe ganas de quebrar as coisas.
Nesse exato momento, que era de todos o menos indicado, uma voz chamou no alto-falante do intercomunicador:

— O que está acontecendo?
"Com mil diabos", pensou Parker. “É Ripley. Pois que se dane essa mulher. Eu lhe direi o que está acontecendo.”
— Meu cacete está acontecendo.
Não poderia ter sido mais lacônico. Mas acrescentou várias outras coisas inaudíveis, para desabafar.
— Continue com o trabalho — disse a Brett.
— Certo.
— O que foi que disse? — insistiu Ripley, no alto-falante. — Não compreendi bem.
Parker deixou o módulo. Com um golpe seco ativou o intercomunicador.
— Você quer saber o que está acontecendo? Muito trabalho, Ripley, só isso. Trabalho sério. Você deveria vir aqui de vez em quando para tomar conhecimento disso.
A resposta dela foi imediata, serena.
— Eu tenho o trabalho mais pesado desta nave — Parker riu com escárnio —, que é ouvir as suas besteiras.
— Deixe-me em paz.
— Só quando o módulo 12 estiver em ordem. Antes não. Fique avisado.
Houve um clique do outro lado, antes que Parker pudesse encontrar resposta adequada.
— O que está havendo — perguntou Brett, espiando de dentro do módulo. — Vocês dois estão brigando de novo?
— Não. É que essa mulher fala demais.
Brett hesitou, fez uma pausa para examinar a célula que tinha aberto por último.
— Certo. Vamos verificar outra vez, esta aqui.
Parker apertou os botões, examinou o monitor, pensou em dar-lhe um soco já que não podia esmurrar a cara de certa oficial de segurança. Mas não faria nada de tão melodramático, naturalmente. Embora de pavio curto, era suficientemente sensato para compreender o quanto precisava do monitor.
E de Ripley.
Ash, enquanto isso, submetia a uma nova série de testes a forma comatosa de Kane. Nenhum foi particularmente útil, mas o oficial de ciência achou-os todos fascinantes. Deram-lhe dados adicionais sobre as condições físicas do paciente.
As entranhas de Kane eram imediatamente visíveis a quem quer que entrasse na enfermaria e olhasse o principal painéis médicos.
O próprio Kane não podia impedir uma invasão de sua privacidade.
Ripley entrou e tomou conhecimento das últimas leituras. Kane estava exatamente como o deixara. Ela esperava isso.
E a coisa alienígena continuava firmemente colada à sua cara.

Ela estudou as leituras menores, depois ocupou o lugar vago ao lado de Ash, que tomou conhecimento de sua presença com um sorriso, mas não abandonou seu console.
— Procedendo a uns testes diferentes nele — informou. — Para saber se alguma coisa aconteceu.
— Que espécie de coisa?
— Não tenho a mais vaga idéia. Mas se alguma coisa nova ocorre, preciso saber disso, e tão logo ocorra.
— A situação alterou-se?
— Com Kane? — Ash reuniu os seus pensamentos. — Não, tudo na mesma. Ele se agüenta. Mais que isso. Ele se agüenta bem. Nenhuma mudança para pior.
—E a criatura? Sabemos agora que pode soltar ácido e recuperar-se miraculosamente. Sabemos mais alguma coisa?
Ash parecia contente consigo mesmo ao responder:
— Como lhe disse, tenho feito testes. Desde que não podemos fazer nada por Kane, venho procurando descobrir o que for possível sobre a criatura. Nunca se sabe. Uma descoberta aparentemente insignificante pode levar à sua eventual remoção.
— Sei disso — respondeu ela, mexendo-se impaciente na cadeira. — E descobriu algo significativo?
— Tem uma camada externa do que entendo serem polissacarídeos proteícos. É ainda uma suposição, mas não apenas um palpite. Difícil ter certeza sem uma análise minuciosa. E se eu tentasse obter uma amostra, por pequena que fosse, correria o risco de provocar outra efusão daquele fluido horrendo. Não podemos correr o risco de derreter parte do médico automático.
— Não, não podemos. A máquina é, no momento, a única chance que Kane ainda tem.
— Exatamente. Mais curioso, ainda, é que a criatura está constantemente a trocar de células, livrando-se das antigas dentro de uma derme interna, secundária, e substituindo-as por silicatos orgânicos polarizados. Parece ter uma pele dupla, e o tal ácido corre entre as duas camadas. Outra coisa: o ácido parece fluir sob pressão, e alta pressão.
— Foi bom, então, que Dallas não tivesse cortado fundo com o laser ou teria acertado a enfermaria inteira.
Ripley parecia impressionada.
— A camada de silicato revela ao microscópio uma só estrutura molecular, muito densa. Pode ser capaz até de resistir ao laser. Sim, eu sei, eu sei — apressou-se em dizer, diante do olhar incrédulo que ela lhe lançou —, parece uma loucura, não é? Mas trata-se do mais resistente material orgânico que jamais encontrei. A combinação do modo como aquelas células estão dispostas com sua composição desafia todas as regras da biologia tradicional. As tais células silicatadas, por exemplo. Têm ligamentos metalizados. E é o que dá à criatura essa resistência inacreditável a condições ambientais adversas.
— Alguma outra coisa, além dos silicatos e da pele dupla?
— Bem. Acho que a criatura respira, ou até que respira da maneira como entendemos respiração, com inspiração e expiração. Parece alterar a atmosfera em torno dela, talvez pela absorção dos gases de que precisa pelos inúmeros poros que tem na pele. Não existe, naturalmente, qualquer orifício que se pareça com narinas. Mas como fábrica química ambulante — que é o que ela é, fundamentalmente — excede em eficiência tudo de que eu tenha notícia. Alguns dos seus órgãos internos aparentemente não funcionam, outros têm funções que sequer comecei a entender. É possível que os tais órgãos adormecidos tenham funções de defesa. Descobriremos isso, se e quando tivermos de provocá-la...
— Está satisfeita? — perguntou, com um olhar de expectativa.
— Plenamente.
"Mas Kane não deveria ter sido admitido a bordo" — pensou. "Deveriam tê-lo deixado fora, a ele e à criatura. Ash era o responsável por estarem ali, agora".

Ficou a considerar o oficial de ciência, sub-repticiamente, vendo-o lidar com seus instrumentos, armazenar resultados positivos e deitar fora os que não lhe serviam. Ash era a última pessoa de quem teria esperado um gesto dramático e, no entanto, fora ele quem tomara a súbita decisão de abrir a porta para a patrulha, contra todas as normas em vigor.

Era obrigada a corrigir-se. Dallas e Lambert também tjnham infringido o regulamento ao exigirem que ela os deixasse entrar. A vida de Kane, é verdade, estava em jogo. E se Ash se tivesse curvado à sua autoridade e à sua decisão de deixar os três de fora? Estaria Kane vivo? Ou se teria tornado um item de estatística no diário de bordo? Isso simplificaria pelo menos uma coisa: ela não teria de fazer face a Kane, um dia, para explicar-lhe por que recusara, a ele e aos outros, admissão a bordo.
Ash notou a expressão dela, preocupou-se.

— Alguma coisa vai mal?
— Não, não — endireitou-se na cadeira. — Resuma para mim, por favor. Suponha que eu seja burra, como às vezes me sinto. O que significaria tudo isso? Em que pé estamos?
— Uma combinação interessantíssima de elementos e de estrutura tornam essa criatura alienígena praticamente invulnerável em nossa situação presente e com nossos recursos.
Ela assentiu:
—É exatamente como eu mesma vejo a conjuntura. Se seus resultados forem fidedignos. — Ele teve uma contração de mágoa. — Desculpe. É invulnerável, então. Muito bem. — Ela o observava com atenção. — Foi por isso que você permitiu que entrasse?
Como sempre, o oficial de ciência não se deixou fisgar. Nem mostrou sinal de ressentimento ao responder:
— Eu simplesmente obedecia a uma ordem direta, expressa, do comandante. Lembra-se?
Ela fez um esforço para não elevar a voz, sabendo que Ash só respeitava a razão:
— Quando Dallas e Kane não estão a bordo, sou o oficial mais antigo. Respondo pelo comando, até que um deles ponha de novo o pé nesta nave.
— Sim, naturalmente. Esqueci-me disso. Foi a emoção do momento.
— Emoção coisa nenhuma! — a atenção dele continuava posta nas leituras. — Ash, emoções nunca fizeram você esquecer nada.
Isso obrigou-o a virar-se para ela.
— Você julga saber tudo a meu respeito. Todos vocês julgam. Estão todos certos de saberem exatamente que tipo de gente eu sou. Pois deixe que lhe diga uma coisa, Ripley. Quando abri aquela porta, sabia perfeitamente o que fazia. Mas quanto a essa história de quem está encarregado do quê... Sou capaz de esquecer coisas, como qualquer pessoa. Minha memória é muito boa, mas falha, como todo mundo. Mesmo memórias mecânicas, como a da Mãe, podem se esquecer de um dado.

Falha, sim. Mas falha seletiva. E, todavia, o oficial de ciência poderia estar dizendo a verdade. Seria melhor que ela tivesse atenção, e deixasse de insultar seus colegas. Parker e Brett já não tinham grande amor por ela. E estava agora em vias de transformar Ash num inimigo. Mas era-lhe impossível abafar suas suspeitas. Desejava, quase, que Ash se enfurecesse com ela.

— Você se esqueceu também da lei de quarentena, básica numa divisão de ciência, coisa que todo oficial aprende cedo, logo que entra para a escola.
— Não.
"Finalmente", pensou Ripley. Uma resposta, em que ela podia acreditar sem reservas. — Não, não me esqueci.
— Muito bem, não esqueceu — fez uma pausa, para valorizar o impacto: — Apenas infringiu a lei. Deliberadamente.
— Mas não levianamente. Considerei todas as conseqüências do meu ato.
— Sim, Ash. Não pensei que fosse leviandade.
De novo ele não mordeu a isca nem se deu por provocado.
— Não gostei de ter de fazê-lo, mas entendi que não tinha escolha — explicou, tranqüilamente. — O que teria você feito com Kane? Sua única chance de viver era a enfermaria, era o médico automático — e o mais depressa possível. Sua condição foi estabilizada. Estou inclinado a dar crédito à máquina por isso e pela rapidez do atendimento, da aplicação de anti-sépticos e de alimentação intravenosa.
— Você se contradiz, Ash. Há um minuto dizia que era a criatura que o mantinha vivo, não o médico automático.
— A criatura parece dar sua contribuição, mas faz isso na atmosfera de Kane, no seu ambiente. Não sabemos o que lhe teria feito se deixada com ele lá fora. Nas trevas exteriores... Aqui, podemos observar incessantemente o sistema dele, prontos a intervir se essa criatura alienígena der sinais de agir como antagonista...na enfermaria da nave — interrompeu o que dizia para verificar uma leitura. — Ademais, era uma ordem expressa.
— O que quer dizer que você obedecerá a Dallas em qualquer situação?
— O que quer dizer que o capitão é o capitão, e o fato de que esteja um metro para fora do corredor em vez de estar um metro para dentro não é razão suficiente para que ignore uma decisão dele.

Furiosa com ele e consigo mesma, Ripley deu-lhe as costas, mas acrescentou:

— Quebrando as normas de quarentena, você pôs em perigo a vida de todos, não só a de Kane.

Ash, serenamente, pediu uma informação ao computador, concentrou-se solenemente na resposta. Depois, falou, mas sem olhar para Ripley, cuja insistência o cansava:
— Pensa que foi uma decisão fácil? Estou perfeitamente ciente das regras de quarentena, perfeitamente a par das normas que regem o contato com formas alienígenas de vida. Provavelmente mais do que você. Mas tive de pesar tudo isso contra a vida de um homem. Poderia tê-lo deixado morrer na soleira da porta. Posso ter posto em risco a vida de vocês todos, e a minha. Mas de uma coisa estou certo: os fazedores de regras sempre as formulam em conforto e segurança, nunca no campo, onde os absolutos que eles inventam têm de aplicar-se. Aí, cada um é obrigado a confiar no seu próprio raciocínio, nos seus próprios instintos. Foi o que fiz. Até agora, a criatura não fez um só gesto ameaçador contra qualquer de nós. Pode vir a fazê-lo um dia, mas terá então de enfrentar um grupo alerta e armado de seis astronautas e não só um homem despreparado, andando às apalpadelas na treva de um bojo de nave, e nave desconhecida. Aceito esse risco contra a vida de Kane.
— Não discuto seus motivos pessoais — Ripley pôs todo o peso do corpo no pé esquerdo, levantou-se. — Digo simplesmente que não lhe assistia o direito de impô-los ao resto da tripulação. Nem tinha você autoridade para tanto. Talvez nós outros não desejemos correr risco.
— Já não importa, agora. Kane está a bordo... e sobreviveu. Os eventos futuros vão derivar dessa realidade e não de alternativas pretéritas. É uma perda de tempo discuti-las.
— Essa é a sua posição, como oficial de ciências? Pois não é a do manual.
— Você está sendo chata e repetitiva, Ripley. Por quê? Para provocar-me? Eu já registrei o que fiz no livro de bordo. Voluntariamente. Submeto-me ao que a Companhia decidir sobre o assunto. Sim. É a minha posição oficial. Lembre-se que a primeira preocupação da ciência é a proteção e o melhoramento da vida humana. Nunca iria contra isso.
— Não, mas a idéia que tem do que possa melhorar a vida humana difere da idéia do comum dos mortais.
Por algum motivo isso o fez voltar-se vivamente para ela e encará-la, quando as outras coisas que ela dissera antes não haviam provocado reação.
— Tomo minhas responsabilidades de encarregado da ciência com a mesma seriedade com que você toma as suas, de responsável pela segurança. Isso deve lhe bastar. Estou farto dessa discussão. Se tem alguma acusação específica a formular, registre-a com Dallas. Se não — e voltou aos seus preciosos instrumentos —, cuide do seu trabalho que eu cuido do meu.
Ela assentiu de cabeça.
— Muito bem — e, virando-se, marchou para o corredor, insatisfeita e confusa. As respostas de Ash eram válidas, difíceis de demolir. Mas não era isso que a perturbava.
Era o fato de que o seu gesto abrindo a porta proibida ao grupo exploratório não ia só de encontro às normas. Ia de encontro a todas as facetas da personalidade do oficial de ciência tal como pensavam que ele era, contrariava frontalmente seu comprovado profissionalismo em outros campos. Ela não o conhecia há muito tempo, mas até esse incidente sempre lhe parecera, e aos outros membros da tripulação, que nada para ele era mais importante que o manual do oficial de ciência.
Ash pretendia ter feito o que fizera para salvar a vida de um homem. Ela tomara, ao contrário, uma posição legalista. Estaria errada? Teria Kane concordado com ela?
Foi ter à ponte ainda perturbada e inquieta. Pequenos incidentes isolados dançavam juntos agora na sua cabeça, Pareciam-lhe coincidentes. Mas faltava a cola que lhes daria  sentido...

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