quarta-feira, 15 de novembro de 2017
PEÇA DE EXPOSIÇÃO - Philip K. Dick
PEÇA DE EXPOSIÇÃO
(O conto "Exhibit Piece" foi publicado pela primeira vez em 1954 na revista IF.)
— É uma roupa bem estranha essa que você está usando — observou o motorista-robô.
A porta do transporte deslizou.
— O que são essas coisas pequenas redondas?
— São botões — explicou George Miller na calçada. — São parte funcional e parte ornamental. É um traje arcaico do século XX. Faz parte da natureza do meu trabalho.
Pagou o robô, pegou sua pasta e subiu apressado pela rampa da Agência de História. O prédio principal já estava aberto naquele dia e homens e mulheres vestindo tunicas vagavam por toda parte.
Miller entrou em um elevador PRIVADO, espremido entre dois controladores da divisão pré-cristã, e em um minuto já estava a caminho de seu próprio nível, o século XX.
— Bo’dia — murmurou para o controlador Fleming ao encontrá-lo na exposição do motor atômico.
— Bo’dia — respondeu Fleming bruscamente. — Olhe aqui, Miller. Vamos esclarecer uma coisa de uma vez por todas. Imagine se todos se vestissem como você? O governo estabeleceu regras rígidas de vestimenta. Você não pode deixar de lado seus malditos anacronismos? O que, em nome de Deus, é essa coisa na sua mão? Parece um lagarto jurássico esmagado!
— É uma pasta de couro de jacaré — explicou Miller. — É nela que carrego meus carretéis de estudo. A pasta era um símbolo de autoridade da classe gerencial do final do século XX — disse abrindo o ziper. — Tente entender, Fleming. Ao me acostumar aos objetos do meu período de pesquisa, eu transformei minha relação de mera curiosidade intelectual em uma empatia genuína. Você notou que frequentemente pronuncio algumas palavras estranhas? O sotaque é o de um trabalhador americano do período Eisenhower. Sacou?
— Ah? — Fleming murmurou.
— “Sacou” era uma expressão do século XX.
Miller colocou seus carretéis de estudo em sua mesa.
— Tem alguma coisa que você queira? Caso contrário, vou começar a trabalhar. Descobri evidências fascinantes para indicar que, embora os americanos do século XX colocassem seus próprios ladrilhos, eles não teciam suas próprias roupas. Irei alterar minha exposição neste assunto.
— Não há nada tão fanático quanto um acadêmico — Fleming observou. — Você tem duzentos anos de atraso. Imerso em suas relíquias e artefatos. Suas réplicas autênticas de trivialidades descartadas.
— Eu amo meu trabalho — respondeu Miller suavemente.
— Ninguém se queixa dele, mas há outras coisas, além disso. Você é uma unidade político-social aqui nesta sociedade. Preste atenção, Miller! O Conselho tem recebido relatórios de suas excentricidades. Eles aprovam sua devoção ao trabalho — seus olhos se estreitaram significativamente — mas você está indo longe demais.
— Minha maior lealdade à minha arte — disse Miller.
— O que? O que isso significa?
— É um termo do século XX — havia um sentimento de superioridade indisfarçada no rosto de Miller. — Você não é mais que um burocrata menor de uma vasta máquina. Você é uma função de uma totalidade cultural impessoal. Você não tem gostos próprios. No século XX, os homens tinham gostos pessoais. Artesanato artístico. Orgulho de realização. Essas palavras não significam nada para você. Você não tem alma; outro conceito dos dias de ouro do século XX, quando os homens eram livres e podiam falar o que vinha à cabeça.
— Cuidado, Miller! — Fleming disse nervoso e baixou a voz. — Malditos eruditos. Saia das suas fitas e enfrente a realidade. Você nos causará problemas falando desse jeito. Idolatre o passado se quiser, mas lembre-se; ele já não mais existe. O tempo passa. A sociedade progride — gesticulou com impaciência em direção das exposições que ocupavam aquele nível. — Isso tudo é apenas uma réplica imperfeita.
— Você questiona minha pesquisa? — Miller estava furioso. — Esta exposição é absolutamente exata! Eu corrigi todos os novos dados. Não há nada que eu não conheça sobre o século XX.
Fleming sacudiu a cabeça.
— Inútil — disse e virou-se indo na direção da rampa de descida.
Miller endireitou o colarinho e a gravata pintada à mão. Alisou seu casaco azul e acendeu habilmente um tubo de tabaco envelhecido de dois séculos e voltou para
seus carretéis.
Por que Fleming não o deixava em paz?
Fleming, o representante oficioso da grande hierarquia que se espalhara como uma teia cinza pegajosa por todo o planeta, em cada unidade industrial, profissional e residencial.
Ah, a liberdade do século XX!
Diminuiu a velocidade do escaner de fita por um momento com um olhar sonhador.
O excitante século da virilidade e da individualidade, quando os homens eram homens...
Então, ainda admirando a beleza de sua pesquisa, ouviu sons inexplicáveis que vinham do centro de sua exposição, de dentro dela, do interior intrincado e cuidadosamente montado.
Alguém estava na sua exposição! Podia ouvi-los. Alguém ou algo tinha passado pela barreira de segurança estendida para manter o público fora.
Miller desligou o escaner e levantou-se.
Tremia enquanto se movia cautelosamente para a exposição. Subiu a grade para alcançar o pavimento de concreto.
Alguns visitantes piscaram surpresos quando um homem pequeno e estranhamente vestido misturou-se às réplicas autênticas do século XX que compunham a exposição.
Respirando com força, Miller avançou cuidadosamente pelo caminho de cascalho.
Talvez fosse um dos outros teóricos do Conselho, fazendo espionagem, procurando algo com o qual desacreditá-lo. Uma inexatidão aqui, um erro insignificante de nenhuma conseqüência alí.
O suor pingava da testa; a raiva transformou-se em terror.
À sua direita havia um canteiro de flores. Rosas Paul Scarlet, amores-perfeitos de baixo crescimento e o gramado verde úmido.
A garagem branca e reluzente com a porta aberta. A traseira elegante de um Buick de 1954 e depois a própria casa.
Ele precisava ter cuidado. Se fosse alguém do Conselho, talvez fosse alguém grande. Talvez até Edwin Carnap, presidente do Conselho, o mais alto funcionário do Diretório Nacional em N'York.
Tremendo, Miller subiu três degraus de cimento. Agora ele estava na varanda da Casa do Século XX, que constituia o centro da exposição.
Era uma linda casinha. Se tivesse vivido naqueles dias ele teria desejado para si mesmo uma igual. Três quartos, um bangalo californiano estilo rancho.
Abriu a porta da frente e entrou na sala de estar, com uma lareira em uma extremidade. Tapetes cor de vinho escuro. Sofá e poltrona modernos. Mesa de café baixa de madeira com cobertura de vidro. Cinzeiros de cobre. Um isqueiro e uma pilha de revistas. Suave piso de plástico e luminárias de aço. Uma estante de livros. O aparelho de televisão. Janela com vista para o jardim da frente.
Atravessou a sala para o corredor.
A casa estava incrivelmente completa.
Abaixo de seus pés, o forro do chão irradiava uma fraca aura de calor.
Ele olhou para o primeiro quarto. O boudoir de uma mulher. Colcha de seda e lençois brancos. Cortinas pesadas. Uma mesa de vaidades. Garrafas e frascos e um enorme espelho redondo. Vestuário visível dentro do armário. Um roupão jogado sobre a parte de trás de uma cadeira. Chinelos. Meias de nylon cuidadosamente colocadas ao pé da cama.
Miller percorreu o corredor e olhou para o quarto ao lado.
Papel de parede brilhante, palhaços e elefantes e brinquedos de corda. O quarto das crianças. Duas pequenas camas para os dois meninos. Modelos de aviões. Uma cômoda com um rádio, um par de pentes, livros da escola, uma placa de estacionamento, instantâneos presos no espelho. Um album para selos postais.
Ninguém também.
Miller olhou no banheiro moderno. Um chuveiro e azulejos amarelos.
Passou através da sala de jantar, olhou a escada do porão, onde a máquina de lavar
e a máquina secadora estavam. Então abriu a porta dos fundos e examinou o quintal. Um gramado e a churrasqueira. Algumas árvores pequenas e além a projeção tridimensional de pano de fundo de outras casas que se afastavam na colina, incrivelmente convincentes.
E ainda assim ninguém.
O pátio estava vazio, deserto.
Fechou a porta e começou o caminho de volta.
Da cozinha surgiram risos. Risos de mulher e o som de colheres e pratos. E cheiros. Demorou um momento para identificá-los, erudito que era.
Bacon e café. E bolos quentes. Alguém estava tomando café da manhã.
Um café da manhã do século XX.
Ele atravessou o corredor, passando pelo quarto de um homem, com sapatos e roupas espalhadas, até a entrada da cozinha.
Uma bela mulher de trinta e poucos anos e dois adolescentes estavam sentados ao redor da pequena mesa de café da manhã. Eles acabavam de comer e os dois meninos estavam inquietos, impacientes.
Luz solar filtrada através da janela sobre a pia. O relógio elétrico passava das oito e meia. O rádio chilreando alegremente no canto. Um grande bule de café preto descansava no centro da mesa, cercado por pratos vazios, copos de leite e talheres.
A mulher usava uma blusa branca e uma saia de tweed xadrez. Ambos os meninos usavam jeans gastos, camisetas e tênis.
Como ainda não o tinham notado, Miller ficou de pé na entrada, enquanto risos e pequenas conversas borbulhavam ao redor dele.
— Terão que perguntar ao seu pai — a mulher estava dizendo com severidade. — Esperem até ele voltar.
— Ele disse que podíamos — protestou um dos meninos.
— Bem, pergunte de novo.
— Ele está sempre mal humorado pela manhã.
— Hoje não. Ele teve uma boa noite de sono. A febre do feno não o incomodou. Foi o novo anti-histamínico que o médico lhe deu.
Ela olhou no relógio.
— Vá ver por que ele está demorando, Don. Ele estará atrasado para o trabalho.
— Ele estava procurando o jornal — um dos rapazes afastou a cadeira e levantou. — O entregador errou a varanda e o jornal de novo caiu entre as flores.
O menino virou-se para a porta e encontrou-se confrontando face a face com Miller. Passou por sua mente que o garoto parecia familiar. Caramba, familiar, como alguém que conhecia, porém mais jovem.
Ele se preparou para o impacto, quando o menino se deteve abruptamente.
— Caramba! — Exclamou o menino. — Você me assustou!
A mulher olhou rapidamente para Miller.
— O que você está fazendo aí, George? — Ela perguntou. — Venha e termine seu café!
Miller entrou lentamente na cozinha. A mulher estava terminando seu café; os meninos estavam de pé e começaram a rodeá-lo.
— Você não me disse que podíamos acampar durante o fim de semana com o grupo da escola? — Indagou um deles. — Você disse que eu poderia pegar emprestado um saco de dormir porque o que eu tinha você deu pro Exército da Salvação porque você era alérgico a ele.
— Sim — murmurou Miller com incerteza.
Don. Esse era o nome do menino. E seu irmão, Ted. Mas como ele sabia disso?
A mulher tinha se levantado da mesa e estava levando os pratos sujos para pia.
— Eles disseram que você já tinha prometido — disse ela por cima do ombro.
Os pratos se precipitaram na pia e ela começou a espalhar gotas de sabão sobre eles.
— Mas você se lembra daquela vez que eles queriam dirigir o carro e do jeito que eles disseram, você pensaria que eles tinham o seu consentimento. E não tinham, é claro.
Miller afundou sem forças à mesa.
Sem querer, distraiu-se com o cachimbo. Colocou-o no cinzeiro de cobre e examinou a manga de seu casaco. O que estava acontecendo?
Sua cabeça girava. Levantou-se abruptamente e correu para a janela sobre a pia.
Casas, ruas. As montanhas distantes além da cidade. Visões e sons de pessoas.
O cenário projetado em três dimensões era totalmente convincente; ou não era projeção? Como poderia ter certeza. O que estava acontecendo?
— George, qual é o problema? — Marjorie perguntou enquanto amarrava o avental de plástico rosa em volta da cintura e ligava a água quente à pia. — É melhor você tirar o carro e ir trabalhar. Você não estava dizendo a noite passada que o velho Davidson estava gritando sobre os funcionários chegarem atrasados e ficarem em torno do bebedouro batendo papo e matando tempo na empresa?
Davidson. A palavra ficou na mente de Miller. Ele sabia disso, é claro. Uma imagem clara de um homem alto, de cabelos brancos, magro e severo. Usava relógio de bolso. E veio a imagem do escritório inteiro da Sumprimentos Eletrônicos. Um prédio de doze andares no centro de São Francisco. O jornaleiro e a charutaria no lobby. Motoristas aborrecidos. Estacionamentos cheios. O elevador apertado com secretárias bem-humoradas cheirando a perfume.
Saiu da cozinha, atravessou o corredor, passou por seu próprio quarto e de sua esposa, e a sala de estar. A porta da frente estava aberta então saiu para a varanda.
O ar era frio e doce de uma brilhante manhã de Abril. Os gramados ainda estavam
úmidos de orvalho. Os carros seguiam pela Virginia Street em direção a avenida Shattuck. O trânsito do início da manhã, homens de negócios a caminho do trabalho. Do outro lado da rua, Earl Kelly alegremente acenou com seu jornal Oakland Tribune enquanto corrida em direção ao ponto de ônibus.
Ao longe Miller podia ver a ponte da baia, a ilha Yerba Buena e Treasure Island. Além disso, a própria São Francisco. Em alguns minutos ele mesmo estaria atravessando a ponte em seu Buick, a caminho do escritório juntamente com milhares de outros funcionários com seus ternos azuis risca-de-giz.
Ted chegou junto dele.
— Então, tudo bem? Você não se importa se nós formos acampar?
Miller lambeu os lábios secos.
— Ted, ouça. Tem algo estranho.
— Com o quê?
— Eu não sei — Miller vagou nervosamente na varanda. — É sexta-feira, não é?
— Certo.
Eu pensei que era. Mas como sabia que era sexta-feira? Como ele sabia de tudo isso?
Mas é claro que era sexta-feira. Fora uma longa e dura semana com o velho Davidson respirando no seu cangote. Quarta-feira, especialmente, quando o pedido da General Electric foi cancelado devido a uma greve.
— Deixe-me perguntar uma coisa — disse Miller a seu filho. — Esta manhã eu deixei a cozinha para pegar o jornal.
Ted assentiu. — Sim. E?
— Eu me levantei e sai. Quanto tempo demorou? — Ele procurou as palavras, mas sua mente era um labirinto de pensamentos discordantes. — Eu estava sentado na mesa de café da manhã com todos vocês, e depois me levantei e fui procurar o jornal. Certo? E então voltei. Certo? — Sua voz subiu desesperadamente. — Acordei, fiz a barba e troquei de roupa. Eu tomei o café da manhã. Torrada e café. Bacon. Certo?
— Certo — concordou Ted. — E?
— Como sempre faço.
— Nós só temos bolo na sexta-feira.
Miller balançou a cabeça lentamente.
— Isso mesmo. Na sexta-feira. Porque seu tio Frank come conosco sábado e domingo e ele não gosta de bolo, então paramos de ter bolo nos fins de semana. Frank é o irmão de Marjorie. Ele esteve na Marinha na Primeira Guerra Mundial. Ele era um cabo.
— Tchau! — disse Ted quando Don veio para se juntar a ele. — A gente se vê de noite.
Agarrados aos livros escolares os meninos se dirigiram para a grande e moderna
escola no centro de Berkeley.
Miller entrou na casa e começou a procurar automaticamente no armário por sua pasta. Onde estava? Droga, ele precisava dela. Todos dados do negócio com a Throckmorton estava nela; Davidson gritaria com ele se tivesse largado-a em qualquer lugar, como na Cafeteria True Blue, quando todos estavam comemorando a vitória do time dos Yankees. Onde diabo estava?
Ele se endireitou lentamente e a memória veio. Claro. Deixara a pasta na mesa, depois de tirar as fitas de pesquisa. Quando Fleming estava falando com ele. Na Agência de História.
Se juntou à esposa na cozinha.
— Olhe — disse com a voz rouca. — Marjorie, talvez eu não vá ao escritório esta manhã.
Marjorie virou-se alarmada.
— George, algo de errado?
— Estou... totalmente confuso.
— Sua febre do feno novamente?
— Não. Minha mente. Qual o nome daquele psiquiatra que tratou o filho da Sra. Bentley? ...Grunberg, eu acho. No prédio da Médico-Dental. Acho que vou passar por lá para vê-lo. Algo está errado, muito errado. E eu não sei o que é.
Adam Grunberg era um homem grande e pesado em seus 40 anos, com cabelos castanhos encaracolados e óculos com aro de chifre.
Depois que Miller terminou de falar, Grunberg limpou a garganta, escovou a manga de seu terno Brooks Bros, e perguntou pensativamente:
— Alguma coisa aconteceu enquanto você procurava o jornal? Algum tipo de acidente? Você pode ter deixado passar algo. Você se levantou da mesa do café da manhã, saiu na varanda, e começou a olhar ao redor nos arbustos. E então, o quê?
Miller esfregou sua testa.
— Eu não sei. Está tudo confuso. Eu não me lembro de estar procurando qualquer jornal. Lembro-me de voltar para casa. Mas antes disso tudo está tudo ligado à Agência de História e minha discussão com Fleming.
— Novamente sobre sua pasta? Fale sobre isso.
— Fleming disse que parecia um lagarto jurássico esmagado. E eu disse...
— Não. Quero dizer sobre procurá-la no armário e não encontrá-la.
— Olhei no armário e não estava lá, é claro. Está na minha mesa na Agência de História. No nível do século XX. Minha exposição.
Uma expressão estranha cruzou o rosto de Miller.
— Por Deus, Grunberg. Você percebe que isso tudo pode ser apenas uma exposição? Você e todos os outros, talvez você não seja real. Apenas peças dessa exposição.
— Isso não seria muito agradável para nós, não é? — Grunberg disse com um leve sorriso.
— As pessoas nos sonhos estão sempre seguras até o sonhador acordar — retrucou Miller.
— Então você está sonhando comigo — Grunberg riu tolerantemente. — Suponho que eu deveria agradecer a você.
— Eu não estou aqui porque eu particularmente gosto de você. Estou aqui porque não aguento Fleming e toda a Agência de História.
— Este Fleming. Você está ciente de pensar sobre ele antes de você sair procurando o jornal?
Miller levantou-se e passeou pelo escritório luxuoso, entre cadeiras de couro e a enorme mesa de mogno.
— Estou numa exposição. Uma réplica artificial do passado. Fleming disse que algo assim aconteceria comigo.
— Sente-se, Sr. Miller — Grunberg disse com uma voz suave, mas dominante.
Quando Miller tomou sua cadeira novamente, Grunberg continuou: — Eu entendo o que você quer dizer. Você tem uma sensação geral de que tudo ao seu redor é irreal. Um tipo de palco.
— Uma exibição.
— Sim, em um museu.
— Na Agência de História de N'York. Nível R, nível do século XX.
— E, além desse sentimento geral de... insubstancialidade, tem essas memórias de pessoas e lugares além deste mundo. Outro domínio em que este está contido. Talvez eu deva dizer, a realidade dentro da qual este é apenas uma espécie de mundo sombrio.
— Este mundo não parece sombrio para mim — Miller golpeou selvagemente o braço de couro da cadeira. — Este mundo é completamente real e isso é que está errado. Entrei para investigar os ruídos e agora não consigo voltar. Por Deus, eu tenho que vagar por aí numa réplica o resto da minha vida?
— Você sabe, é claro, que este sentimento é comum à maior parte da humanidade. Especialmente durante períodos de grande tensão. Onde, por sinal, estava o jornal? Você achou?
— Pelo que me diz respeito...
— Isso é uma fonte de irritação com você? Vejo que você reage fortemente a uma menção do jornal.
Miller balançou a cabeça com cansaço. — Esqueça...
— Sim. O entregador joga descuidadamente o jornal nos arbustos, não na varanda. Isso dá raiva. Isso acontece uma vez ou outra. No início do dia, quando vai começar a preparar-se para trabalhar. Parece simbolizar toda su afrustração e derrotas do seu trabalho. Toda a sua vida.
— Pessoalmente não dou a mínima para o jornal — e examinou o relógio de pulso. — Já estou indo, é quase meio dia. O velho Davidson vai gritar comigo porque não estou no escritório... — ele interrompeu-se. — Aí está de novo.
— O que?
— Tudo! — Miller gesticulou impaciente à janela. — Este mundo maldito. Essa exposição.
— Eu tenho uma ideia — disse o Dr. Grunberg devagar. — Me diga o que acha. Sinta-se livre para rejeitá-la caso não se encaixe — levantou os olhos astutos e profissionais. Já viu crianças brincando com foguetes?
— Senhor — disse Miller — vi foguetes comerciais transportando carga entre a Terra e Júpiter, aterrando no porto espacial de La Guardia.
Grunberg sorriu ligeiramente.
— Me acompanhe, por favor. Uma pergunta. Você sente tensão no trabalho?
— O que você quer dizer?
— Seria bom — disse Grunberg sem graça — viver no mundo do amanhã. Com robôs e foguetes para fazer todo o trabalho. Você poderia simplesmente se sentar calmamente, sem preocupações, sem frustrações.
— Minha posição na Agência de História requer muitos cuidados e tem frustrações — Miller disse abruptamente. — Olhe, Grunberg. Ou isso é uma exposição no nível R da Agência de História, ou eu sou um funcionário classe média com uma fantasia de fuga. Até agora não consegui decidir qual. Um minuto eu acho que isso é real, e no próximo minuto...
— Podemos decidir facilmente — disse Grunberg.
— Como?
— Você estava procurando o jornal. Na varanda, no gramado. Onde estava? Estava na varanda? Na calçada? Tente lembrar-se.
— Eu não tenho que tentar. Acabei de saltar sobre a barra depois das telas de segurança.
— No pavimento. Então volte para lá. Encontre o lugar exato.
— Por quê?
— Você então pode provar a si mesmo que não há nada do outro lado.
Miller respirou devagar. — Suponha que haja?
— Não pode. Você disse que apenas um dos mundos pode ser real. Este mundo é real — Grunberg bateu a mão na sua enorme mesa de mogno. — Você não encontrará nada no outro lado.
— Sim — disse Miller depois de um momento de silêncio.
Uma expressão peculiar atravessou seu rosto e ficou lá.
— Você encontrou o erro.
— Que erro? — Grunberg estava intrigado. — O que...
Miller moveu-se em direção à porta do escritório.
— Estou começando a entender. Eu tenho feito a pergunta errada, tentando decidir qual mundo é real — sorriu sem graça para Grunberg. — Ambos são reais, é claro.
Pegou um táxi e voltou para a casa. Não tinha ninguém em casa. Os garotos estavam na escola e Marjorie tinha ido ao centro para fazer compras. Esperou dentro de casa até ter certeza de que ninguém estava vendo da rua, e então começou a fazer o caminho para o pavimento. O encontrou sem problemas.
Havia um leve brilho no ar e através dele ele podia ver formas fracas.
Ele estava certo. Lá estava, completo e real. Tão real como a calçada sob ele.
Uma barra metálica longa. Ele a reconheceu; a barra de segurança que ele havia saltado para entrar na exposição. Além dela o sistema da tela de segurança.
Desligado, é claro. E além, o resto do nível e as paredes distantes.
Ele deu um passo cauteloso na névoa fraca que brilhava ao redor dele.
As formas além se tornaram mais definidas. Uma figura em movimento com uma túnica azul escuro. Um curioso que examinava a exposição. A figura moveu-se e sumiu.
Ele podia ver sua própria mesa de trabalho agora. Seu escaner de fita e montes de bobinas de estudo. Ao lado da mesa estava a pasta dele, exatamente onde ele esperava que estivesse.
Enquanto estava pensando em pegar a maleta, Fleming apareceu.
Um instinto interior fez Miller voltar-se para Fleming que se aproximava.
Talvez fosse a expressão no rosto de Fleming. Em todo caso, Miller estava de volta e de pé firmemente no pavimento de concreto, quando Fleming parou logo além da junção, o rosto vermelho, os lábios retorcidos com indignação.
— Miller — disse grave. — Saia já daí.
Miller riu. — Seja um bom sujeito, Fleming. Jogue-me a minha pasta. É aquela coisa estranha na mesa. Eu mostrei para você, lembra?
— Pare de brincar e me escute! Isso é sério. Carnap já sabe. Eu tive que contar para ele.
— Bom para você. O fiel burocrata.
Miller inclinou-se para acender seu cachimbo. Inalou e soprou uma grande nuvem de tabaco cinzento através do ponto fraco, para o nível R.
Fleming tossiu e recuou. — O que é isso?
— Tabaco. Uma das coisas que tem por aqui. Substância muito comum no século XX. Você não saberia sobre isso, seu período é o século 2 a.C. O mundo helenístico. Eu não sei o quanto você gostaria de viver por lá. Eles não tinham um bom encanamento e a expectativa de vida era muito curta.
— Do que você está falando?
— Em comparação, a expectativa de vida do meu período de pesquisa é bastante alta. E você deveria ver o banheiro que eu tenho. Azulejo amarelo. Não temos nada assim na Agência.
Fleming resmungou amargamente.
— Em outras palavras, você quer ficar lá.
— É um lugar agradável — disse Miller. — Claro, minha situação é bem melhor que a média. Deixe-me descrevê-la para você. Eu tenho uma esposa atraente, o casamento é permitido e até mesmo sancionado neste século. Eu tenho dois filhos inteligentes... ambos meninos... e que vão acampar neste fim de semana. Eles moram comigo e minha esposa... temos a total custódia deles. O Estado ainda não tem o poder de tirá-los de mim. Eu tenho um Buick novo...
— Ilusões — Fleming retrucou. — Delírios psicóticos.
— Você tem certeza?
— Você é um idiota! Eu sempre soube que você possuia muito ego recessivo para enfrentar a realidade. Você e seus retiros anacrônicos.
— Às vezes tenho vergonha. Eu sou um teórico, mas queria ter feito engenharia.
Os lábios de Fleming se contraíram.
— Você está louco. Você está parado no meio de uma exposição artificial, que pertence à Agência de História, um monte de plástico e metal e estruturas. Uma réplica de uma era passada. Uma imitação. E você prefere isso ao mundo real.
— Estranho — disse Miller pensativo. — Parece que ouvi a mesma coisa recentemente. Você não conhece um médico chamado Grunberg, conhece? Um psiquiatra.
Sem formalidades o diretor Carnap chegou com sua comitiva de assistentes e especialistas. Fleming recuou rapidamente.
Miller encontrava-se diante de uma das figuras mais poderosas do século vinte e dois.
— Você é um imbecil insano — retrucou Carnap. — Saia daí antes de arrastarmos você para fora. Se tivermos que fazer isso, você está acabado. Você sabe o que eles fazem com psicóticos em estados avançados. Será eutanásia para você. Eu lhe darei uma última chance de vir para fora dessa exposição...
— Desculpe — disse Miller. — Não é uma exposição.
O rosto pesado de Carnap demonstrou surpresa repentina. Por um breve instante, sua pose desapareceu. — Você ainda tenta manter...
— Este é um portão de tempo — disse Miller calmamente. — Você não pode me tirar daqui, Carnap. Você não pode me alcançar. Eu estou no passado, duzentos anos atrás. Eu cruzei de volta para uma existência anterior. Eu encontrei uma ponte e que escapou do seu continuum. E não há nada que você possa fazer sobre isso.
Carnap e seus especialistas se amontoaram em uma rápida conferência técnica.
Miller esperou pacientemente. Ele tinha muito tempo e decidiu que não se apresentaria no escritório até segunda-feira.
Depois de um tempo Carnap com cuidado aproximou-se da junção.
— Uma teoria interessante, Miller. Essa é a parte estranha sobre os psicóticos. Eles racionalizam seus delírios em um sistema lógico. A priori, seu conceito resiste bem. Ele é internamente consistente. Somente...
— Somente o quê?
— Somente que não é verdade — Carnap recuperou sua confiança, ele parecia estar gostando do diálogo. — Você acha que está realmente de volta ao passado. Sim, esta exposição é extremamente precisa. Seu trabalho sempre foi bom. A autenticidade dos detalhes é inigualável se comparada a qualquer outra exposição.
— Eu tento fazer o melhor no meu trabalho — murmurou Miller.
— Você usou roupas e falas arcaicas. Você fez tudo o que é possível para voltar no tempo. Você se dedicou ao seu trabalho — Carnap bateu na grade de segurança com a unha. — Seria uma vergonha, Miller. Uma vergonha terrível ter que demolir uma réplica tão boa.
— Eu entendo seu ponto — disse Miller depois de um tempo. — Concordo com você, certamente. Sou muito orgulhoso do meu trabalho e odiaria ver tudo destruido. Mas isso realmente não vai resultar em nada. Tudo o que você conseguirá será fechar o portal.
— Você tem certeza?
— É claro. A exposição é apenas uma ponte, um link com o passado. Passei pela exposição, mas não estou nela agora. Estou além da exposição — sorriu. — A demolição não pode me alcançar. Mas pode selar a passagem. Mas não acho que vou querer voltar mesmo. Eu gostaria que você pudesse ver este lado, Carnap. É um lugar muito agradável aqui. Liberdade, oportunidade. Governo limitado, responsável pelo povo. Se você não gosta de um emprego aqui, você se demite. Não há eutanásia, aqui. Venha! Vou apresentá-lo à minha esposa.
— Nós vamos pegar você — disse Carnap. — E todas as suas manifestações psicóticas junto com você.
— Duvido que alguma delas esteja preocupada. Grunberg não estava. Eu não acho que Marjorie...
— Já começamos os preparativos para a demolição — Carnap disse calmo. — Nós vamos retirar peça por peça, não será de uma vez só. Então você poderá ter a oportunidade de apreciar a maneira científica e artística com que desfazemos seu mundo imaginário.
— Você está perdendo seu tempo — disse Miller.
Se virou e caminhou descendo o pavimento até o caminho do cascalho e subiu a
varanda da frente da casa. Na sala de estar se jogou na poltrona e ligou o
aparelho de televisão. Então foi até a cozinha e pegou uma lata de cerveja gelada.
Voltou para a sala de estar segura e confortável.
Enquanto estava sentado na frente do aparelho de televisão, notou algo enrolado
sobre a mesa baixa. Sorriu ironicamente. Era o jornal da manhã.
Marjorie havia trazido para dentro com o leite, como de costume. E, claro, esqueceu de avisá-lo.
Bocejou com satisfação e esticou o braço para alcançá-lo.
Confiantemente o desdobrou e leu a principal manchete.
RÚSSIA REVELA POSSUIR UMA BOMBA DE COBALTO
DESTRUIÇÃO MUNDIAL À CAMINHO
FIM.
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