segunda-feira, 20 de novembro de 2017

O ESTRANHO ENFORCADO - Philip K. Dick







(“The Hanging Stranger” foi publicado pela primeira vez na revista Science Fiction Adventure em Dezembro de 1953).



As cinco horas Ed Loyce lavou-se, pegou o chapéu e o casaco, tirou o carro da garagem e dirigiu em direção a sua loja de vendas de TV na cidade. Estava cansado. Suas costas e ombros doíam de cavar e retirar a terra do porão para o quintal. Mas para um homem de quarenta anos, ele dera conta do trabalho. Janet poderia usufruir do dinheiro que ele economizara; e ele gostou da idéia de realizar ele próprio os reparos na casa.

Estava ficando escuro. O sol irradiava raios longínquos sobre os passageiros, cansados ​​e sombrios, mulheres carregadas de pacotes, estudantes indo para casa, vindos da universidade, misturando-se com funcionários, empresários e secretários entediados.
Ele parou seu Packard em um sinal de trânsito vermelho e então partiu de novo.
Sua loja estava aberta sem ele,  chegaria a tempo de pedir o jantar, examinar os registros do dia, talvez até fechar algumas vendas. Passou lentamente pelo pequeno quadrado verde no centro da rua, o parque da cidade. Não havia vagas para estacionar em frente da LOYCE VENDA E CONSERTO DE TV. Ele amaldiçoou em voz baixa e fez a volta. Mais uma vez passou pelo pequeno quadrado verde com seu bebedouro solitário, o banco e seu único poste de luz.

Algo pendia do semáforo. Algo escuro e sem forma, balançando um pouco com o vento. Como um manequim de algum tipo. Loyce desceu a janela e olhou para fora. Que diabos era aquilo? Uma exibição de algum tipo? Às vezes a Câmara de Comércio fazia exposições na praça.
Mais uma vez ele fez o carro fazer uma curva em U e passou pelo parque, concentrado naquela coisa sombria.

Não era um manequim.
Os pêlos em seu pescoço se levantaram e ele engoliu com dificuldade.
O suor deslizou no rosto e nas mãos.
Era um corpo. Um corpo humano.

— Olhe para isso! — Loyce exclamou. — Venham aqui fora!

Don Fergusson saiu lentamente da loja, abotoando seu casaco com dignidade.

— Você viu? Está lá à quanto tempo? — Sua voz aumentou excitadamente. — O que há de errado com todos vocês? Isso é impossível!

Don Fergusson acendeu um cigarro lentamente.

— Calma, meu velho. Deve haver uma boa razão, ou não estaria lá.

— Uma razão! Que tipo de razão?

Fergusson encolheu os ombros.

— Como quando o Conselho de Segurança do Tráfego colocou aquele carro todo amassado lá para todos verem. Algum tipo de coisa cívica. Como eu vou saber?

Jack Potter da sapataria se juntou a eles.

— O que está acontecendo, meninos?

— Há um corpo pendurado no poste — disse Loyce. — Eu vou chamar a policía.

— Eles devem saber sobre isso — disse Potter. — Ou, de outra forma, não estaria lá.

— Eu tenho que voltar ao trabalho — Fergusson voltou para a loja. — Negócios antes do prazer.

Loyce começou a ficar histérico.

— Você está vendo aquilo? Está vendo? Um corpo de um homem! Um homem morto!

— Claro, Ed. Eu vi esta tarde quando saí para tomar café.

— Você quer dizer que está lá toda a tarde?

— Claro. Qual é o problema? — Potter olhou para o relógio. — Tenho que correr. Até mais tarde, Ed.

Potter se apressou, juntando-se ao fluxo de pessoas que se moviam pela calçada. Homens e mulheres, passando pelo parque. Alguns olharam com curiosidade para aquela coisa escura... e então continuavam. Ninguém parou. Ninguém prestou atenção.

— Estou ficando louco — Loyce sussurrou.

Abriu caminho e atravessou entre os carros. Buzinadas raivosas foram ouvidas por sua causa. Chegou até a outra calçada e pisou no pequeno quadrado verde.
Era um homem de meia idade. Sua roupa estava rasgada, um terno cinza coberto com lama seca.
Um estranho.
Loyce nunca o tinha visto antes. Não era um homem local. Seu rosto parcialmente virado, e no vento da noite ele girava um pouco, suavemente, silenciosamente. Sua pele estava machucada e cortada. Cortes vermelhos, arranhões profundos de sangue seco. Os óculos com aro de aço pendia de uma orelha, pendurado de forma tola. Os olhos baixos, a boca estava aberta, uma língua grossa e azul.

— Pelo amor de Deus — murmurou Loyce enojado. Aguentou a náusea e voltou para a outra calçada.

Estava tremendo, com repulsa e medo.
Por quê? Quem era o homem? Por que ele estava ali enforcado? O que isso significava?
E... porque ninguém mais se importava?
Ele esbarrou em um homem pequeno apressado.

— Cuidado! — O homem disse. — Oh, é você, Ed.

Ed assentiu aturdido: — Olá, Jenkins.

— Qual é o problema? — O funcionário da papelaria percebeu Ed confuso: — Você parece doente.

— O corpo lá no parque.

— Claro, Ed — Jenkins levou-o para a frente da loja de televisão.  — Se acalme.

Margaret Henderson da joalheria se juntou a eles.

— Algo errado?

— Ed não está se sentindo bem.

Loyce se afastou dos dois.

— Como vocês podem ficar parados? Não enxergam aquilo? Pelo amor de Deus...

— Sobre o que ele está falando? — Margaret perguntou nervosamente.

— O corpo! — Ed gritou. — O homem enforcado lá!

Mais pessoas apareceram: — Ele está doente? É Ed Loyce. Você está bem, Ed?

— O corpo! — Loyce gritou lutando para passar por eles. Mãos tentando segurá-lo. Ele se soltou.

— Deixem-me ir! Polícia! Chamem a polícia!

— Ed...

— Melhor chamar um médico!

— Ele deve estar doente

— Ou bêbado.

Loyce atravessou entre a pequena multidão. Tropeçou e quase caiu. Através de um borrão, viu fileiras de rostos curiosos, preocupados, ansiosos. Homens e mulheres se detiveram para ver o que ocorria. Ele lutou contra eles em frente da sua loja.
Viu Fergusson conversando com um homem, mostrando-lhe um aparelho de televisão Emerson.
Pete Foley na parte de trás no balcão de serviço, mexendo em um novo Philco.
Loyce gritou com eles freneticamente. Sua voz era engolida no rugido do trânsito e os murmúrios ao seu redor.

— Façam alguma coisa! — Ele gritou. — Não fiquem parados! Façam alguma coisa! Algo está errado! Algo aconteceu! Coisas estão acontecendo!

A multidão respeitosamente abriu-se para os dois policiais ​​se movendo eficientemente para alcançar Loyce.

— Nome? — O policial com o caderno murmurou.

— Loyce — ele esfregou sua testa cansada. — Edward C. Loyce. Ouça-me.  Vá até...

— Endereço? — O policial exigiu saber.


O carro da polícia movia-se rapidamente através do trânsito entre os carros e ônibus.
Loyce caiu contra o assento, esgotado e confuso.
Respirou profundamente e estremeceu.

— 1368 Hurst Road.

— Isso é aqui em Pikeville?

— Correto — Loyce ergueu-se com esforço. — Ouça-me. Dê a volta. Na praça. Pendurado no poste...

— Onde você esteve hoje? — O policial atrás do volante quis saber.

— Onde? — Loyce ecoou.

 — Você não esteve na sua loja, esteve?

— Não — balançou sua cabeça. — Não, eu estava em casa. No porão.

— No porão?

— Cavando. Um novo piso. Tirei a terra para derramar cimento. Porquê? O que isso tem a ver?

— Alguém mais estava com você?

— Não. Minha esposa estava no centro da cidade. Meus filhos estavam na escola.

Loyce olhou de um policial para outro. A esperança brilhou no seu rosto, uma esperança selvagem.

— Você quer dizer que eu estava lá embaixo e perdi... a explicação para isso? Por isso eu não entendi como todos os outros entenderam?

Após uma pausa, o policial com o caderno disse: — Isso é certo. Você perdeu a explicação.

— Então é oficial? O corpo? Era esperado estar lá?

— É para todos verem.

Ed Loyce sorriu fraco.

— Bom Deus. Eu acho que eu dormi profundamente. Pensei que talvez alguma coisa tivesse acontecido. Você sabe, algo como o Ku Klux Klan. Algum tipo de violência. Comunistas ou fascistas assumindo o poder.

Ele enxugou o rosto com o lenço do bolso, as mãos tremendo.

— Estou feliz em saber que está tudo bem.

— Está tudo bem.

O carro da polícia estava se aproximando do Salão da Justiça. O sol tinha desaparecido. As ruas eram sombrias e escuras e as luzes ainda não haviam sido ligadas.

— Eu me sinto bem melhor — disse Loyce. — Fiquei muito excitado por um minuto. Agora que eu entendi, não há necessidade de me levar, ok?

Os dois policiais não disseram nada.

— Eu deveria estar de volta na minha loja. Meus colegas não jantaram ainda. Estou bem, agora. Não há mais problemas. Não existe necessidade de...

— Não vai demorar muito — interrompeu o policial atrás do volante. — Um processo curto. Apenas alguns minutos.

— Espero que seja curto — murmurou Loyce.

O carro desacelerou em um semáforo.

— Eu acho que eu meio que perturbei a paz. Engraçado, ficar assim e...

Loyce abriu a porta e pulou para fora.
Os carros estavam se movendo ao seu redor, ganhando velocidade à medida que o sinal de trânsito mudava. Saltou para o meio-fio e correu entre as pessoas, atravessando a multidão.
Atrás dele ele ouvia sons, pessoas correndo.
Aqueles não eram policiais. Percebera isso imediatamente. Ele conhecia todos os policiais de Pikeville. Um homem não podia possuir uma loja, operar um negócio em uma pequena cidade por vinte e cinco anos sem conhecer todos os policiais. Não eram policiais e não havia nenhuma explicação.
Potter, Fergusson, Jenkins, nenhum deles sabia por que o corpo estava lá. Eles não sabiam e eles não se importavam.
Essa era a parte estranha.
Loyce mergulhou para dentro de uma loja de ferragens. Correu para os fundos depois de deixar para trás clientes assustados. Saiu num beco, tropeçou numa lata de lixo, subiu por uma cerca e saltou para o outro lado, ofegante.
Não havia som algum atrás dele. Tinha conseguido fugir.
Estava na entrada de um beco, escuro e coberto de tábuas e caixas quebradas e pneus. Podia ver a rua na extremidade distante. Luzes. Homens e mulheres. Lojas. Placas de neon. Carros.
E à sua direita a delegacia de polícia.
Estava perto, terrivelmente perto. Passou pela área de carga de um supermercado e viu o concreto branco do Salão da Justiça. Barras nas janelas. A antena da polícia. Uma grande parede de concreto subindo na escuridão. Um lugar ruim para ele estar perto. Ele estava muito perto. Tinha que seguir em frente, sempre em movimento, ficar o mais afastado possível deles.
Eles?

Loyce moveu-se cautelosamente pelo beco.
Além da Delegacia de Polícia estava a Câmara Municipal, a antiga estrutura amarela de madeira e latão dourado e cimento. Ele podia ver as infinitas fileiras de escritórios, janelas escuras de cedro e jardins de flores de cada lado da entrada.
E algo mais.
Acima da prefeitura havia um pedaço de escuridão, um cone de escuridão mais denso do que a noite ao redor. Um prisma preto que se espalhava e se perdia no céu.
E ele ouviu. Bom Deus, ele podia ouvir algo. Algo que o fez lutar freneticamente para tampar os ouvidos, sua mente, para anular o som. Um zumbido. Um zumbido distante e silencioso como um grande enxame de abelhas.

Loyce olhou para cima, rígido de horror. A escuridão sobre a Prefeitura. A escuridão tão grossa parecia quase sólida. No vórtice algo se movia. Formas cintilantes. Coisas descendo do céu, pairando momentaneamente acima da prefeitura, um enxame denso e caindo silenciosamente sobre o telhado.
Formas. Formas ondulantes vindas do céu, da abertura das trevas que pendia acima dela.
Durante muito tempo, Loyce observou agachado atrás de uma cerca flácida de uma piscina de água fria.
Estavam desembarcando em grupos, pousando no telhado da Câmara Municipal e desaparecendo  dentro. Eles tinham asas. Como insetos gigantes de algum tipo. Voavam e voavam e desciam e então se arrastavam de forma carangueira, de lado, atravessando o telhado e entrando no prédio.
Ele estava enojado. E fascinado.
O vento frio da noite soprava ao redor dele e ele estremeceu. Estava cansado, atordoado pelo choque. Nos degraus da Prefeitura estavam homens, aqui e ali. Grupos de homens saindo do prédio e pararam por um momento antes de continuar.

Haveria mais deles?

Não parecia possível. O que ele vira descendo do abismo negro não eram homens, eram alienígenas de algum outro mundo, de alguma outra dimensão. Deslizando por essa fenda, esta quebra na concha do universo. Entrando por essa lacuna, insetos alados de outro reino.
Nos degraus da Prefeitura um grupo de homens parou. Alguns avançaram para um carro esperando por eles. Uma das formas restantes começou a voltar à Prefeitura. Mudou de idéia e se virou para seguir os outros.
Loyce fechou os olhos com horror. Ficou apertando a cerca flácida.
A forma de homem abruptamente flutuava entre os outros. Voou para a calçada e veio ficar entre eles. Pseudo-homens. Homens de imitação. Insetos com habilidade de disfarçar-se como homens. Como outros insetos da Terra. Camuflagem protetora. Mimetismo.
Loyce se afastou. Levantou-se lentamente.
Era noite. O beco estava totalmente escuro. Mas talvez eles pudessem ver no escuro. Talvez a escuridão não fizesse diferença para eles.
Deixou o beco com cautela e saiu para a rua. Homens e mulheres passavam, mas não tantos agora. Nas paradas de ônibus havia grupos esperando. Um ônibus enorme atravessou a rua, suas luzes piscando na escuridão noturna.

Loyce avançou para ele, abrindo caminho entre aqueles que esperavam e, quando o ônibus parou, entrou e sentou-se na parte de trás, perto da porta.
Um momento depois o ônibus começou a mover-se descendo a rua.
Loyce relaxou um pouco. Estudou as pessoas ao seu redor. Caras encolhidas e cansadas. Pessoas indo para casa. Rostos bastante comuns. Nenhum deles prestou atenção nele. Todos se sentavam silenciosamente, afundados em seus assentos, balançando com o movimento do ônibus.
O homem sentado ao lado dele desdobrou um jornal e começou a ler a seção de esportes, seus lábios se movendo. Um homem comum. Terno azul. Gravata. Um homem de negócios ou um vendedor à caminho de sua esposa e família.
Do outro lado do corredor, uma jovem, talvez vinte anos. Olhos e cabelos escuros, um pacote no colo. Nylon e salto-altos. Casaco vermelho e camisa branca olhando distraidamente, à frente dela um garoto do ensino médio em jeans e jaqueta preta.
Uma mulher grande com uma imensa bolsa de compras carregada com pacotes e encomendas. Seu rosto rude escurecido com cansaço.
Pessoas comuns. O tipo que andava de ônibus todas as noites. Indo para suas casas. Jantar.
Indo para casa, as mentes mortas.
No controle, sob aquela máscara, um ser alienígena que apareceu do nada e tomou posse deles, a cidade era deles, suas vidas. Ele mesmo teria sido vítima se não estivesse no fundo do porão em vez de na loja. De alguma forma ele tinha sido negligenciado. Eles o perderam. Seu controle não era perfeito, infalível.
Talvez houvesse outros como ele.

A esperança cintilou em Loyce. Eles não eram onipotentes. Cometeram um erro, não conseguiram o controle dele. Sua rede, seu campo de controle, passou por ele. Aparentemente sua zona de influência era limitada.
A alguns assentos no corredor, um homem estava olhando para ele. Loyce interrompeu sua corrente de pensamento. Um homem magro, com cabelos escuros e um pequeno bigode. Bem vestido, terno marrom e sapatos brilhantes. Um livro entre as mãos pequenas. Ele estava observando Loyce, estudando-o atentamente. Ele se virou rapidamente.
Loyce ficou tenso. Seria um deles? Ou outro que eles perderam?
O homem estava olhando para ele de novo. Pequenos olhos escuros, vivos e inteligentes. Astuto. Um homem muito perspicaz para eles, ou uma das coisas em si, um inseto alienígena do além.
O ônibus parou.
Um homem idoso subiu lentamente os degraus e deixou cair moedas no coletor. Veio pelo corredor e sentou-se bem em frente de Loyce.
O homem idoso tinha olhos afiados. Por uma fração de segundo, algo. Um olhar rico com significado.
Loyce levantou-se.
O ônibus estava em movimento.
Correu para a porta.
Puxou a alavanca de emergência.

— Ei! — O motorista gritou quando os freios foram bloqueados. — Que diabos...?

Loyce se contorceu. O ônibus estava diminuindo a velocidade. Casas de todos os lados. Um bairro residencial, gramados e edifícios de apartamentos.
Atrás dele o homem de olhos brilhantes saltou de seu assento.
O homem idoso também estava de pé.
Estava vindo atrás dele.
Loyce saltou do ônibus e atingiu o pavimento com uma força enorme e rolou. A dor percorreu-o. Dor e uma vasta maré de escuridão. Desesperadamente lutou contra aquilo.
O ônibus parou. As pessoas estavam saindo.
Loyce tateou desnorteado. Seus dedos fechados sobre algo. Uma pedra. Arrastou-se grunhindo com dor. Uma forma surgiu diante dele. Um homem, o homem de olhos brilhantes com o livro.
Loyce chutou-o e o homem ofegou e caiu. Loyce levantou a pedra e acertou-o com ela.
O homem gritou e tentou se afastar.

— Pare! Pelo amor de Deus, escute!

Ele bateu novamente. Um som hediondo. A voz do homem dissolveu em um gemido borbulhante. Loyce ficou de pé. Os outros estavam lá ao seu redor.
Correu desajeitadamente, mas nenhum deles o seguiu. Eles pararam e se curvaram sobre o corpo inerte do homem com o livro, o homem de olhos brilhantes que tinha vindo atrás dele.
Ele cometera um erro? Mas era tarde demais para se preocupar com isso. Ele tinha que sair de perto deles. Para longe de Pikeville, além da fenda da escuridão, a passagem entre os mundos.


— Ed! — Janet Loyce recuou nervosamente. — O que é isso? O que...

Ed Loyce bateu a porta atrás dele e entrou na sala de estar.

— As cortinas! Rápido!

Janet se moveu em direção à janela.

— Mas...

— Faça o que eu digo. Quem mais está aqui além de você?

— Ninguém. Apenas os gêmeos. Eles estão no quarto do andar de cima. O que aconteceu? Você parece tão estranho. Por que você está em casa?

Ed trancou a porta da frente. Na cozinha, da gaveta debaixo da pia ele agarrou a grande faca de açougue e passou o dedo por ela. Afiada. Muito afiada. E voltou para a sala de estar.

— Ouça — disse. — Eu não tenho muito tempo. Eles sabem que eu escapei e vão procurar por mim.

— Escapou? — O rosto de Janet se torceu em perplexidade e medo. — Quem?

— A cidade foi tomada. Eles estão no controle. Eu descobri tudo. Eles começaram no topo, na Prefeitura e depois no departamento de polícia. O que eles fizeram com os humanos de verdade...

— Do que você está falando?

— Nós fomos invadidos. De algum outro universo, alguma outra dimensão. São insetos. Mimetismo. E mais... Podem controlar as mentes. Sua mente.

— Minha mente?

— O ponto de entrada é aqui, em Pikeville. Eles controlam todos vocês. Toda a cidade, exceto eu. Estamos lutando contra um inimigo incrivelmente poderoso, mas eles têm suas limitações. Essa é a nossa esperança. Eles são limitados! Eles podem cometer erros!
Janet balançou a cabeça.

— Eu não entendo Ed. Você ficou louco.

— Louco? Não. Apenas sortudo. Se eu não estivesse no porão, eu seria como o resto de vocês — Loyce olhou pela janela. — Mas eu não posso ficar aqui falando. Pegue seu casaco.

— Meu casaco?

— Estamos saindo de Pikeville. Precisamos encontrar ajuda. Lutar. Eles podem ser derrotados. Eles não são infalíveis. Estão perto, mas podemos conseguir se nos apressarmos. Vamos! — Agarrou seu braço. — Pegue seu casaco e chame os gêmeos. Estamos partindo! Não há tempo para as malas.
Pálida, sua esposa se moveu em direção ao armário e de lá trouxe seu casaco.

— Pra onde estamos indo?

Ed abriu a gaveta da mesa e derramou o conteúdo no chão. Abriu um mapa rodoviário.

— Eles devem ter fechado a estrada, é claro. Mas há uma estrada alternativa por Oak Grove. Eu passei por ela uma vez. O lugar é praticamente abandonado. Talvez eles tenham se esquecido dela.

— Road Ranch? Bom Deus, está completamente fechada. Ninguém deveria dirigir por lá.

— Eu sei  — Ed guardou o mapa no casaco. — Essa é a nossa melhor chance. Agora chame os gêmeos e vamos! Seu carro está abastecido, não?
Janet estava aturdida.

— O Chevy? Eu abasteci ontem à tarde — ela foi para as escadas. — Ed, eu...

— Os gêmeos, agora!

 Ed destrancou a porta da frente e olhou para fora.
Nada se movia. Nenhum sinal de vida. Tudo bem até agora.

— Venham aqui embaixo — Janet chamou com uma voz vacilante. — Vamos sair por um tempo.

— Agora? — A voz de Tommy.

— Apresse-se — Ed gritou. — Venham aqui os dois!

Tommy apareceu no topo da escada.

— Eu estava fazendo minha lição de casa. Estamos começando a estudar frações. Miss Parker disse que se não fizermos isso...

— Pode esquecer as frações!

Ed agarrou seu filho quando ele desceu as escadas e o empurrou para a porta.

— Onde está Jim?

— Ele está vindo.

Jim começou lentamente a descer as escadas.

— O que é, pai?

— Vamos dar uma volta.

— Um passeio? Onde?

Ed voltou-se para Janet.

— Vamos deixar as luzes acesas. E o aparelho de TV... vá ligá-lo! Vão pensar que ainda estamos aqui.

Ele ouviu o zumbido e quase deixou cair a longa faca de açougueiro.
Viu aquilo descendo as escadas, deixando um borrão de movimento.
Ainda tinha uma vaga semelhança com Jimmy. Era pequeno, um bebê. Um breve vislumbre... o que se precipitava para ele, frio, olhos desumanos de várias lentes. Asas, corpo ainda vestido de camiseta amarela e jeans. Seu corpo girou quando chegou até ele. O que estava fazendo?
Um ferrão!
Loyce apunhalou-o descontroladamente. A coisa recuou zumbindo freneticamente. Loyce rolou e rastejou em direção à porta. Tommy e Janet ficaram parados como estátuas sem cor, assistindo sem expressão. Loyce esfaqueou-o novamente. Desta vez a faca penetrou. A coisa gritou e vacilou, saltou contra a parede e caiu.

Algo percorreu sua mente. Um muro de força, energia, uma mente alienígena investigando-o. De repente ficou paralisado. A mente tocou-o brevemente, chocante! Uma presença alienígena absoluta, colocando-se sobre a dele... e então sumiu quando a coisa se desfez em pedaços sobre o tapete.
Estava morto. Virou-o com o pé. Era um inseto, uma mosca de algum tipo.
Camisa amarela, jeans. Seu filho Jimmy... 
Era tarde demais para pensar sobre isso. Pegou de volta sua faca e se dirigiu para a porta.
Janet e Tommy permaneceram imóveis, sem nenhum movimento.
O carro estava do lado de fora.
Eles nunca conseguiriam. Estariam esperando por ele. Estavam a pouco mais de 15 km a pé, sobre terreno áspero, campos abertos e colinas de floresta virgem.
Ele teria que ir sozinho.
Loyce por um breve momento olhou para a esposa e o filho, então bateu a porta atrás dele e correu pelos degraus da varanda.
Um minuto depois estava a caminho, correndo na escuridão, em direção à periferia da cidade.


A luz do sol da manhã cedo era cegante. Loyce parou respirando fundo, o suor escorreu em seus olhos. Sua roupa estava rasgada, rasgada por espinhos através dos quais ele tinha rastejado sobre as mãos e joelhos. Rastejando através da noite. Seus sapatos cobertos de lama.
Estava completamente exausto, mas à frente dele se via Oak Grove.
Respirou fundo e começou a descer a colina. Por duas vezes tropeçou e caiu, levantando-se e caminhando.
Ele estava longe de Pikeville.
Um fazendeiro num campo ficou boquiaberto ao vê-lo.
De uma casa, uma jovem observava com admiração.
Loyce chegou à estrada e diante dele havia um posto de gasolina e um drive-in.
Um par de caminhões, algumas galinhas bicando na sujeira e um cachorro amarrado com uma corda.
O atendente de branco observava-o assustado, cambaleando até a estação.

— Graças a Deus — disse amparando-se na parede. — Eu não pensei que iria conseguir. Eles me seguiram pela maior parte do caminho. Eu podia ouvi-los zumbindo. Zumbindo e flutuando atrás de mim.

— O que aconteceu? — O atendente quis saber: — Você sofreu um acidente? Foi atacado?

Loyce balançou a cabeça com cansaço.

— Eles capturaram toda a cidade. A Câmara Municipal e a Delegacia de Polícia. Eles enforcaram um homem num poste de luz. Foi a primeira coisa que vi. Eles bloquearam todas as estradas. Eu os vi pairando sobre os carros que chegam. Por volta das quatro horas da manhã eu consegui deixá-los para trás. Soube imediatamente. Eu podia senti-los se afastando. E então o sol surgiu.

O atendente mordeu o lábio nervosamente.

— Você está fora de si. É melhor eu chamar um médico.

— Me leve a Oak Grove — Loyce ofegou afundando no cascalho. — Nós temos que começar... a eliminá-los. Temos que começar imediatamente.


Mantiveram um gravador de fita ligado o tempo todo em que falou.
Quando terminou o comissário desligou o gravador e ficou de pé. Permaneceu assim parado por um momento, pensando profundamente. Finalmente tirou um cigarro e acendeu lentamente, com uma expressão franzida no rosto corpulento.

— Você não acredita em mim — disse Loyce.

O Comissário lhe ofereceu um cigarro. Loyce afastou-o com impaciência.

— Como quiser — o Comissário se aproximou da janela e ficou um momento olhando para a cidade de Oak Grove. — Eu acredito em você — disse abruptamente.

Loyce se sentiu aliviado: — Graças a Deus.

— Então você escapou. — O Comissário sacudiu a cabeça. — Você estava em seu porão em vez de estar no trabalho. Uma chance em um milhão.

Loyce tomou um pouco do café preto que trouxeram.

— Eu tenho uma teoria — murmurou.

— Sobre?

— Quem eles são. Eles tomam conta de uma área por vez, começando do mais alto nível de autoridade. Partindo de lá em um círculo crescente. Quando eles estão firmemente no controle, eles seguem para a próxima cidade. Eles se espalham, lentamente, muito gradualmente. Eu acho que isso está acontecendo faz um bom tempo.

— Muito tempo?

— Milhares de anos. Não acho que seja algo novo.

— Por que você diz isso?

— Quando eu era criança... Uma imagem que nos mostravam no Clube da Bíblia. Uma imagem religiosa, uma cópia antiga. Os deuses inimigos, derrotados por Jeová. Moloch, Belzebu, Moab, Baalin, Ashtaroth...

— E?

— Todos eram representados por figuras — Loyce levantou os olhos para o comissário. — Belzebu foi representado como... uma mosca gigante.

O Comissário grunhiu. — Uma luta antiga.

— Eles foram derrotados. A Bíblia é um relato de suas derrotas. Eles avançam, mas são derrotados.

— Por que são derrotados?

— Eles não podem pegar todos. Eles não conseguiram me alcançar. E eles nunca chegaram aos hebreus. Os hebreus levaram a mensagem para o mundo inteiro. Um alerta. Os dois homens no ônibus. Eu acho que eles sabiam. Tinham escapado, como eu — apertou os punhos. — Eu matei um deles. Eu cometi um erro. Eu tive medo.

O Comissário assentiu.

— Sim, eles sem dúvida haviam escapado como você o fez. Acidentes acontecem. Mas o resto da cidade estava firmemente sob controle — virou-se da janela. — Bem, Sr. Loyce. Você parece ter descoberto tudo.

— Não tudo. O homem pendurado. O homem morto pendurado no poste. Eu não entendo isso. Por que? Por que eles o penduraram deliberadamente lá?

— Parece simples — o Comissário sorriu. — Uma isca.

Loyce ficou rígido. Seu coração parou de bater.

— Isca? O que você quer dizer?

— Para revelar você. Fazer você se entregar. Então eles saberiam quem estava sob controle e quem escapou.
 Loyce recuou com horror.

— Então eles esperavam falhas! Eles anteciparam... com uma armadilha.

— E você se mostrou. Você reagiu. Você se tornou visível — o Comissário se moveu abruptamente para a porta. — Venha, Loyce. Há muito a fazer. Precisamos agir. Não há tempo a perder.
Loyce começou a se levantar lentamente, adormecido.

— E o homem. Quem era o homem? Nunca o vi antes. Ele não era um homem local. Ele era um estranho. Todo enlameado e sujo, seu rosto cortado, cortado...

Havia um olhar estranho no rosto do Comissário quando ele respondeu:

— Talvez — disse suavemente — você entenda isso. Venha comigo, Sr. Loyce.

Loyce vislumbrou a rua em frente da delegacia. Policiais numa plataforma de algum tipo. Um poste de telefone e uma corda!

— Fácil assim! — Disse o Comissário sorrindo friamente.


Quando o sol se pôs o vice-presidente do Banco de Oak Grove saiu da sala do cofre, ativou as fechaduras de tempo, pegou o chapéu e o casaco e seguiu para a saída. Apenas algumas pessoas ainda estavam por lá, apressando-se para ir jantar em casa.

— Boa noite — disse o guarda trancando a porta atrás dele.

— Boa noite — murmurou Clarence Mason.

Na rua ele tomou a direção do carro dele. Estava cansado, tinha trabalhado o dia inteiro no cofre, examinando a disposição das caixas de segurança para ver se havia espaço para outro nível. Ele estava feliz por ter terminado.
Na esquina ele parou. As luzes da rua ainda não haviam sido ligadas. Olhou em volta e congelou.
Do poste de telefone em frente à delegacia, algo grande e sem forma pendia.
Movia-se um pouco com o vento.
Mas que diabos era aquilo? Mason aproximou-se cautelosamente.
Queria chegar em casa logo. Estava cansado e com fome.
Pensou em sua esposa, seus filhos, uma refeição quente na mesa de jantar.
Mas havia algo sombrio naquilo, algo errado e feio.
A luz era ruim e ele não sabia o que era, no entanto se aproximou para ver melhor.
A coisa o deixou incomodado e assustado.
Amedrontado e fascinado.
E a parte mais estranha era que ninguém mais parecia se importar.

FIM

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