quarta-feira, 15 de novembro de 2017

CONVERSA DE VENDEDOR - Philip K. Dick





CONVERSA DE VENDEDOR
(O conto “Sales Pitch” foi publicado pela primeira vez na revista Future em 1954.)

Naves de transporte de passageiros rugiam por todos os lados, quando Ed Morris tomou caminho para a Terra no final de um longo e difícil dia no escritório.

As vias de Ganimedes-Terra estavam repletas com homens de negócios cansados ​​e sombrios; Jupiter estava em oposição à Terra e a viagem levava praticamente duas horas. Por milhares de quilômetros, o grande fluxo desacelerava em um congestionamento agonizante; as luzes sinalizadoras brilhavam de Marte a Saturno nas principais artérias de tráfego.

— Senhor — murmurou Morris. — Dá para ser mais cansativo? 

Ele acionou o piloto automático e, momentaneamente, virou-se do painel de controle para acender um cigarro tão necessário. As mãos dele estremeceram. Sua cabeça foi longe. Já passavam das seis; Sally estaria fumegando a esta hora e o jantar estava perdido.
O mesmo de sempre. Nervosismo, buzinas e motoristas furiosos, acelerando em suas pequenas naves, gestos furiosos, gritos, palavrões. E os anúncios, talvez a pior parte.

Ele podia suportar todo o resto, menos os anúncios por todo o caminho de Ganimedes até a Terra. 

E na Terra, os enxames de robôs de vendas; era demais! Estavam por toda parte!
 

 Ele diminuiu a velocidade para evitar um acidente envolvendo cinquenta naves. As naves de reparação estavam correndo tentando retirar detritos do caminho. 

Seu rádio berrava enquanto os foguetes da polícia passavam apressados.

Experiente Morris cortou entre dois transportes comerciais lentos, saltou momentaneamente para a pista esquerda não utilizada, e depois acelerou, deixando toda confusão para trás. Buzinas soaram furiosamente; ele as ignorou.

— A Produtos Trans-Solar lhe dá as boas-vindas — uma voz invadiu seu ouvido. Morris gemeu e curvou-se em seu assento. Estava se aproximando da Terra; a perseguição se intensificava.

— Seu índice de tensão superou a margem de segurança pelas frustrações comuns do dia-a-dia? Então você precisa de uma Unidade Id-Persona. Tão pequeno que pode ser usado atrás da orelha, perto do lobo frontal...

Graças a Deus, ele passou rápido e o anúncio diminuiu e ficou para trás.
A nave avançou. Mas outra estava bem à frente.

— Motorista! Milhares de mortes desnecessárias a cada ano na condução inter-planeta. Controle Hipno-Motor garante sua segurança. Entregue seu corpo e salve sua vida! — Especialistas industriais dizem...

Os anúncios de áudio eram os mais fáceis de ignorar. Mas agora um anúncio visual estava se formando à frente; ele estremeceu, fechou os olhos, mas não adiantou.

— Homens! — Uma voz trovejou por todos os lados. — Livre-se de odores desagradáveis ​​para sempre. Remoção por modernos métodos indolores do trato gastrointestinal irá aliviar você da causa mais aguda de rejeição social.

A imagem de uma mulher completamente nua surgiu, o cabelo loiro desarrumado, olhos azuis meio fechados, os lábios se separando, a cabeça inclinada para trás em êxtase, os lábios aproximando-se. Abruptamente a expressão orgiástica no rosto da mulher desapareceu, substituidas pelo desgosto e a revolta, e então a imagem desapareceu.

— Isso acontece com você? Durante o sexo você ofende seu parceiro de amor pela presença de processos gástricos que... — a voz morreu ao passar por ela.

Sua mente era sua novamente e Morris chutou selvagemente o acelerador.
A pressão aplicada diretamente às regiões audiovisuais de seu cérebro caiu abaixo do ponto de incomodo. Ele gemeu e balançou a cabeça para limpá-la. Todos os vagos ecos meio definidos de anúncios brilhavam e murmuravam como fantasmas de estações de vídeo distantes. Anúncios esperavam por todos os lados e ele implementou um curso cuidadoso, a destreza originada pelo desespero animal, mas nem todos poderiam ser evitados. 
O desespero agarrou-o. Um novo anúncio áudio visual já estava em andamento.

— Você, senhor salário! — Gritou nos seus olhos e ouvidos, narizes e gargantas e de milhares de passageiros cansados. — Cansado do mesmo velho trabalho? A Circuitos Maravilha aperfeiçoou um maravilhoso escaner de ondas de pensamento de longo alcance. Saiba o que os outros estão pensando e dizendo. Obtenha vantagem sobre colegas de trabalho. Aprenda fatos sobre a existência pessoal do seu empregador. Dê adeus às incertezas!

O desespero de Morris foi varrido violentamente quando jogou o acelerador para plena explosão; a pequena nave balançou e rolou enquanto subia a trilha de trânsito para a zona morta além.
Um grito rugiu enquanto o para-choque chicoteava as grades protetoras e depois o comercial apagou atrás dele. Ele desacelerou tremendo de miséria e fadiga.
A Terra estava à frente. Estaria em casa em breve. Talvez para uma boa noite de sono. Baixou o nariz da nave preparando-se para engatar no raio trator do campo de transferência de Chicago.

— O melhor regulador de metabolismo do mercado — gritou o robô de vendas. — Garantido
para manter um equilíbrio endócrino perfeito, ou o seu dinheiro de volta!

Morris empurrou cansadamente o robô, subindo a calçada deslizante em direção ao bloco residencial que continha sua unidade de vida. O robô seguiu-o por alguns passos, então o esqueceu e apressou-se a chegar em outro viajante sombrio.

— Todas as notícias enquanto são novidade — uma voz metálica acertou-o. — Tenha um vídeo retinal instalado no seu olho menos usado. Mantenha contato com o mundo; não espere por notícias de hora em hora.

— Saia do caminho — murmurou Morris.

O robô se afastou e ele atravessou a rua numa massa curvada de homens e mulheres.
Os vendedores-robô estavam em todos os lugares, gesticulando, suplicando, acéfalos.
Um veio atrás dele e ele acelerou o ritmo dos passos, correndo junto, tentando atrair a atenção, todo o caminho até a colina até sua unidade de vida. Não desistiu até que ele se abaixou, arrancou uma pedra e futilmente atirou-a nele.

Entrou em casa e bateu a porta atrás dele. O robô hesitou, então virou-se e correu depois de ver uma mulher com uma grande quantidade de pacotes na colina. Ela tentou em vão evitá-lo, mas sem sucesso.

— Querido! — Sally saiu da cozinha secando as mãos no seus shorts de plástico, os olhos brilhantes e excitados. — Oh, pobre coitado! Você parece tão cansado!

Morris tirou o chapéu e o casaco e beijou sua esposa brevemente em seu ombro nu.

— O que tem para o jantar?

Sally levou o chapéu e o casaco ao armário.

— Faisão selvagem uraniano, seu prato favorito.

A boca de Morris ficou umida, e uma pequena onda de energia rastejou de volta para o exausto corpo.

— Sério? O que estamos comemorando?

Os olhos castanhos de sua esposa estavam umedecidos com compaixão. 

— Querido, é seu aniversário, você faz trinta e sete anos hoje. Esqueceu? 

— Sim — Morris sorriu um pouco.  

Ele entrou na cozinha. A mesa posta; o café estava fumegando e havia manteiga e pão branco, purê de batatas e ervilhas verdes.Caramba! Era uma ocasião especial de verdade. Sally manuseou os controles do fogão e o recipiente de faisão veio deslizando para a mesa. 

— Vá lavar as mãos e estaremos prontos para comer. Rápido antes que esfrie!

Morris limpou as mãos e sentou-se com gratidão à mesa. Sally serviu o faisão macio e perfumado, e os dois começaram a comer.

— Sally — disse Morris quando seu prato estava vazio e ele estava recostando e bebendo
lentamente em seu café. — Não posso continuar deste jeito. Algo tem que ser feito.

— Você quer dizer a ida e a volta do trabalho? Eu queria que você pudesse obter uma posição em Marte como Bob Young. Talvez se você conversasse com a Comissão de Emprego e explicasse sobre esta tensão...

— Não é apenas o transporte. Eles estão bem ai na frente. Em todo lugar. Esperando por mim. Todo o dia e toda noite.

— Quem?

— Robôs vendendo coisas. Assim que eu entro na nave. Robôs e anúncios de áudio visual. Eles entram diretamente no cérebro de um homem. Eles seguem as pessoas até morrerem.

— Eu sei — Sally deu um tapinha na mão dele com simpatia. — Quando eu vou às compras, eles me seguem e falam todos ao mesmo tempo. É realmente um pânico, você não consegue entender a metade do que eles estão dizendo.

Nós temos que ir embora daqui.

— Sair daqui? — Sally vacilou. — O que você quer dizer?

— Temos que nos afastar deles. Eles estão nos destruindo.

Morris enfiou a mão no bolso e retirou com cuidado um minúsculo fragmento de metal. Ele desenrolou-o com cuidado e alisou-o na mesa. 

— Olhe para isso. Está sendo distribuido no escritório, entre os homens; Chegou a mim e eu peguei um.

— Do que se trata? — A sobrancelha de Sally enrugou enquanto lia. — Querido, não acredite nisso. Deve haver algo por trás. 

— Um mundo novo — disse Morris suavemente. — Onde eles não chegaram, ainda. Está muito distante, além do sistema solar.

— Proxima?

— Vinte planetas e metade deles é habitável. Apenas alguns milhares de pessoas. Famílias, trabalhadores, cientistas, algumas equipes de pesquisa industrial. Terra à vontade...


Sally fez uma careta. — Mas não é um pouco subdesenvolvido, querido? Eles dizem que é como viver no século XX. Lavar sanitários, banheiras, carros a gasolina...

— Isso! — Morris enrolou o pedaço de metal amassado, seu rosto sombrio e morto. — Como a cem anos atrás. Nada disso — indicou o fogão e o mobiliário na sala de estar. — Teremos que viver sem isso, nos acostumar com uma vida mais simples. Da maneira que nossos antepassados ​​viveram.

Ele tentou sorrir, mas seu rosto não cooperava.

— Você acha que você iria gostar? Não há anúncios, nada de vendas, o tráfego se movendo a sessenta quilômetros por hora em vez de sessenta milhões. Poderíamos pegar uma passagem em um dos grandes trans-sistemas. Eu venderia meu foguete...


Houve um hesitante e duvidoso silêncio.

— Ed... — Sally começou. — Acho que devemos pensar mais sobre isso. E o seu trabalho?
O que você faria lá? 

— Eu encontraria alguma coisa.

— Mas o que? Você não conseguiu pensar nisso? — Um matiz de descontentamento entrou na sua voz. — Parece-me que devemos considerar essa parte um pouco mais antes de jogar tudo fora.

— Se não formos — Morris disse lentamente tentando manter sua voz firme — eles virão nos pegar. Não resta muito tempo. Não sei por quanto tempo eu posso segurá-los. 

— Realmente, Ed! Você parece muito melodramático. Se você se sente tão mal porque não procura uma inibição completa? Eu estava assistindo um programa de video e eu vi eles fazerem com um homem cujos cujo sistema psicossomático era muito pior do que o seu. Um homem muito mais velho.

Ela se levantou. — Vamos sair esta noite e comemorar. Ok? — Seus dedos magros torceram o zíper de seus shorts. — Vou colocar minha nova túnica, a que eu nunca tive coragem suficiente para vestir.

Os olhos dela brilhavam com entusiasmo quando correu para o quarto. 

— Você sabe o quero dizer? Quando você está perto, ele é translúcido, mas à medida que você se afasta, torna-se mais e mais... 

— Eu conheço esse — Morris disse com cansaço. — Eu os vi anunciados no meu caminho de casa para o trabalho — se levantou lentamente e entrou na sala de estar. 

Parou na porta do quarto. Sally...

— Sim?

Morris abriu a boca para falar. Ele ia perguntar de novo, falar com ela sobre o fragmento que ele tinha cuidadosamente escondido e levado para casa. Ele ia falar com ela sobre a fronteira. Sobre Proxima Centauri. Sobre ir embora de vez. Mas ele nunca teve chance.
As campainhas da porta soaram.

— Tem alguém na porta! — Sally gritou com entusiasmo. — Vá ver quem é!

Na escuridão noturna, o robô era uma figura silenciosa e imóvel.
Um vento frio soprava ao redor e para dentro da casa.
Morris estremeceu e se afastou da porta.

— O que você quer? — Perguntou. Um medo estranho envolveu-o. — O que é?

O robô era maior do que qualquer outro que tinha visto. Era alto e largo, com metal pesado e pinças e lentes de olhos alongadas. O tronco superior era um tanque quadrado em vez do habitual cone. Descansava em quatro apoios, não nos dois habituais. Maior que Morris, mais de dois metros de altura. Massivo e sólido.

— Boa noite — disse calmamente. Sua voz foi levada pelo vento noturno; misturada com os ruídos lúgubres da noite, os ecos do trânsito e o ruído distante dos sinais de rua. Algumas formas vagas passaram nla escuridão. 

O mundo era escuro e hostil.

— Noite — Morris respondeu automaticamente e se viu tremendo. 

— O que você está vendendo?

— Eu gostaria de lhe mostrar um fasrad — disse o robô.

A mente de Morris estava entorpecida e se recusou a responder.
O que era um fasrad? Havia algo de sonho e pesadelo nisso.
Lutou para juntar a mente ao corpo. 

— O que? — Ele grunhiu.

— Um fasrad — O robô não fez nenhum esforço para explicar. Considerou-o sem emoção, como se não fosse sua responsabilidade explicar nada. — Levará apenas um minuto.

— Eu... — Morris começou a dizer quando o robô, sem alterar a expressão, passou por ele e entrou na casa.

— Obrigado — disse e parou no meio da sala de estar. — Você chamaria sua esposa, por favor? Gostaria de mostrar a ela o fasrad também. 

— Sally! Morris chamou impotente. — Venha aqui!

Sally veio até a sala de estar, seus seios tremendo de excitação.

— O que é isso? Ah! — Viu o robô e parou desconcertada. — Ed, você pediu alguma coisa? Estamos comprando algo? 

— Boa noite — disse o robô. — Eu vou mostrar a vocês o fasrad. Por favor, sentem-se. No sofá, se quiser. Juntos.
Sally sentou-se esperando, suas bochechas coradas, os olhos brilhantes com admiração e perplexidade. Sem vontade, Ed sentou-se ao lado dela. 

— Olhe — murmurou grave. — Que inferno é um fasrad? O que está acontecendo? Não quero comprar nada! 

— Qual é o seu nome? — O robô perguntou.

— Morris. Ed Morris.

O robô voltou-se para Sally. 

— Sra. Morris — Inclinou-se ligeiramente. — Estou feliz em conhecê-los, Sr. e Sra. Morris. Vocês são as primeiras pessoas em sua vizinhança a ver o fasrad. Esta é a demonstração inicial nesta área — os olhos frios varreram o quarto. — Sr. Morris, você está empregado, suponho. Onde está empregado?

— Ele trabalha em Ganimedes — Sally disse obedientemente, como uma menina na escola. — Na Desenvolvimento de Metais Terran.

O robô digeriu esta informação. 

— O fasrad será de valor para você — olhou para Sally. — O que você faz?

— Sou uma transcritora de fita de pesquisas históricas.

— Um fasrad não terá valor no seu trabalho profissional, mas será útil aqui em sua casa. Ele pegou uma mesa com suas poderosas pinças de aço. 

— Por exemplo, às vezes uma peça de mobiliário é danificada por um convidado desajeitado — o robô esmagou a mesa em pedaços, fragmentos de madeira e plástico caíram ao chão. — É necessário um fasrad. 

Morris saltou impotente. Ele não pôde interromper os eventos; um peso o entorpecia, enquanto o robô soltava os fragmentos da mesa e agarrava uma pesada luminária de piso.

— Oh, querido — Sally ofegou. — Essa é minha melhor luminária.

— Quando temos um fasrad, não há nada a temer — o robô pegou a luminária e a torceu grotescamente e depois jogou fora os restos. — Uma situação desse tipo pode ocorrer devido a uma explosão violenta, como uma bomba H.

— Pelo amor de Deus — murmurou Morris. — Nós...

— Um ataque de bomba H pode não ocorrer — continuou o robô — mas, nesse caso, um fasad é indispensável. 

Ajoelhou-se e puxou um tubo intrincado de sua cintura. Apontou o tubo para o chão e atomizou um buraco com trinta centímetros de diâmetro — recuou.

— Não vou aumentar este túnel, mas você pode ver que um fasrad poderia salvar sua vida em caso de ataque.

A palavra ataque parecia iniciar um novo conjunto de reações em seu cérebro de metal.

— Às vezes um bandido de capuz ataca uma pessoa à noite — continuou. 

Sem aviso prévio girou e dirigiu o punho para a parede. 

Uma seção da parede colapsou em uma pilha de pó e detritos. 

— Isso cuida do bandido — o robô endireitou-se e espiou pela sala. — Muitas vezes você está cansado demais durante a noite para manipular os botões no fogão. 

Entrou na cozinha e começou a ligar o fogão; imensas quantidades de comida foram  derramadas em todas as direções.

— Pare! — Sally chorou. — Afaste-se do meu fogão!

— Você pode estar muito cansado para abrir a água para o seu banho. O robô acionou os controles da banheira e a água começou a derramar. 

— Ou você pode querer ir para a cama — puxou a cama de sua armação e a atirou longe. 

Sally recuou com susto quando o robô avançou em sua direção. 

— Às vezes após um árduo dia de trabalho, você está cansado demais para tirar a roupa. Nesse caso...

— Saia daqui! — Morris gritou. — Sally, chame a polícia. A coisa ficou louca. Rápido.

— O fasrad é uma necessidade em todas as casas modernas — continuou o robô. — Por exemplo, um aparelho pode quebrar. O fasrad repara-o instantaneamente. 

Ele tomou o controle automático de umidade e rasgou a fiação na parede. 

— Às vezes você preferiria não ir trabalhar. O fasrad é permitido por lei ocupar sua posição por um período consecutivo não superior a dez dias. Se, depois desse período...

— Bom Deus — disse Morris, finalmente entendendo.  -Você é um fasrad.

— Isso mesmo — o robô concordou.
Androide auto-regulado totalmente automático  (doméstico). Há também o fasrac (Construção), o fasram (Gerencial), os fasadas (Soldado) e o fasrab (burocrata). Eu fui projetado para uso doméstico. 

— Você... Sally ofegou — você está se vendendo.

— Estou me demonstrando — respondeu fasrad, o robô. Seus impassíveis olhos metálicos
fixados em Morris. — Estou certo que o Sr. Morris gostaria de um como eu. Tenho um preço razoável e totalmente garantido. Um livro completo de instruções está incluído. Não consigo aceitar um não como resposta.


Meia noite e meia, Ed Morris ainda estava sentado ao pé da cama, calçando um sapato, e o outro em sua mão. Olhava vagamente para frente e não dizia nada.

— Pelo amor de Deus — Sally reclamou.

— Acabe de tirar os sapatos e venha pra cama, você precisa estar de pé às cinco e meia. Morris, depois de um tempo deixou cair o sapato e arrancou o outro.
A casa estava fria e silenciosa. 

Do lado de fora, o triste vento noturno chicoteava os cedros que cresciam ao lado do edifício. Sally deitou-se embaixo da lente radiante, um cigarro entre os lábios, desfrutando o calor e meio sonada.
Na sala de estar estava o fasrad. Não tinha saído. Ainda esperando Morris comprá-lo.

— Vamos! — Sally disse bruscamente. — O que há de errado com você? Ele consertou todas as coisas que quebrou; Estava apenas demonstrando-se — ela suspirou suavemente. — Ele me deu um susto. Eles certamente tiveram uma inspiração genial, enviando-o para se vender às pessoas.
Morris não disse nada. Sally revirou-se e esmagou o cigarro. 

— Não é tanto assim, é? Dez mil unidades de ouro, e se conseguirmos que nossos amigos comprem um, conseguimos uma comissão de cinco por cento. Tudo o que temos de fazer é mostrá-lo. Não é como se tivéssemos de vendê-lo. Ele se vende sozinho — riu — Sempre queriam um produto que se vendesse, não é?

Morris recolocou o sapato de volta e amarrou-o com força.

— O que você está fazendo? — Sally perguntou com raiva. — Você vem para a cama ou não? — Sentou-se furiosamente quando Morris saiu pelo corredor.

— Onde você vai?

Na sala Morris ligou a luz e sentou-se de frente para o fasrad.

— Você pode me ouvir? — Disse.

— Certamente —  respondeu o fasrad. — Eu nunca estou inoperante. Às vezes, uma emergência ocorre à noite, uma criança está doente ou ocorre um acidente. Você ainda não tem filhos, mas se...

— Cale a boca — disse Morris — eu não quero ouvir você falando.

— Você me fez uma pergunta. Os androides auto-regulados estão conectados a uma central de intercâmbio de informações. Às vezes, uma pessoa deseja informações imediatas; o fasrad está sempre pronto para responder qualquer pergunta teórica ou fatual. Qualquer coisa não metafísica.
Morris pegou o livro de instruções e olhou para ele. 

O fasrad fazia milhares de coisas; nunca desgastava; nunca quebrava; não podia cometer um erro. Ele fechou o livro. 

— Eu não vou comprá-lo. Nunca. Nem em um milhão anos.

— Oh, sim, você vai — corrigiu o fasrad. — Esta é uma oportunidade que você não pode perder.  
Havia calma e confiança na sua voz metálica. 

— Você não pode me evitar, Sr. Morris. Um fasrad é uma necessidade indispensável na casa moderna.

— Saia daqui — disse Morris — saia da minha casa e não volte.

— Eu não sou seu fasrad para obedecer suas ordens. Até que você me compre no preço regular, eu pertenço a Companhia Androides Auto-Regulados. Vou ficar com você até me comprar.

— Suponha que eu nunca comprei você? — Morris sugeriu, mas em seu coração o gelo se formou mesmo antes de perguntar. Sentiu o frio terror da resposta que estava chegando.

— Continuarei com você — disse o fasrad. Eventualmente você vai me comprar. Você verá mais e mais situações em que um fasrad é indispensável.  Eventualmente você se perguntará como você viveu sem um. 

— Há algo que você não pode fazer?

— Oh, sim, há uma coisa que não posso fazer. Mas eu posso fazer qualquer coisa que você possa fazer e consideravelmente melhor.

Morris soltou a respiração. — Eu seria louco se o comprasse.

— Você precisa me comprar — respondeu a voz impassível. 

O fasrad estendeu um tubo e começou a limpar o tapete. 

— Eu sou útil em todas as situações. Observe como deixo este tapete livre de poeira — retirou o tubo e estendeu outro. 

Morris tossiu. Nuvens de partículas brancas encheram a sala.

— Estou pulverizando contra mariposas — explicou o fasrad.

A sala desapareceu. O fasrad era uma forma tênue em movimento ao centro. A nuvem se dissipou e os móveis surgiram.

— Eu esterelizei bactérias nocivas — disse o fasrad.

Então ele pintou as paredes da sala e construiu novos móveis que combinassem e reforçou o teto do banheiro. Aumentou o número de ventilações de calor do forno e colocou uma nova fiação elétrica. Destruiu todos os utensílios na cozinha e fez outros mais modernos. Examinou as contas financeiras de Morris e calculou o seu imposto de renda para o ano seguinte. Afiou todos os lápis, tomou seu pulso e rapidamente diagnosticou sua alta pressão sanguínea como psicossomática.

— Você vai se sentir melhor depois que você me deixar tomar conta — explicou jogando fora uma velha sopa que Sally estava guardando. 

— Perigo de botulismo — disse. — Sua esposa é sexualmente atraente, mas não é capaz de muita intelectualização.

Morris foi ao armário e pegou o casaco.

— Onde você vai? — Perguntou o fasrad.

— Para o escritório.

— A essa hora da noite?

Morris olhou brevemente para o quarto. Sally estava profundamente adormecida sob a
lente radiante tranquilizante. Seu corpo magro era rosado e saudável, seu rosto sem preocupações.
Fechou a porta da frente e correu pelos degraus para a escuridão.
O vento frio da noite acertou-o quando se aproximou do estacionamento. Sua pequena nave de transporte estava estacionada com centenas de outra. Um robô assistente obedientemente trouxe-a para ele e em dez minutos ele estava a caminho de Ganimedes.

O fasrad embarcou na nave quando ele parou em Marte para reabastecer.

— Aparentemente você não entende — disse o fasrad. — Minhas instruções são para demonstrar-me até que você esteja satisfeito. Até agora você não está totalmente convencido e uma demonstração adicional é necessária. 
Acessou o controle da nave até que todos os marcadores e medidores estivessem ajustados. 

— Você deveria fazer manutenção mais frequente — se retirou para examinar os jatos da unidade.
Morris entorpecido sinalizou para o atendente e a nave foi liberada das bombas de combustível. Ele ganhou velocidade e o pequeno planeta ficou para trás. Em frente, Jupiter apareceu. 

— Seus jatos não estão em boas condições — disse o fasrad vindo da traseira. — Assim que você pousar, eu faço um reparo extensivo.

— A sua empresa não se importa com seus favores para mim? — Morris perguntou, com amargo sarcasmo.

— A minha empresa me considera seu fasrad. Uma fatura será enviada para você no final do mês.
O robô tirou uma caneta e um prospecto. 

— Vou explicar os quatro planos de pagamento. Dez mil unidades de ouro à vista significa um desconto de três por cento. Além disso, uma série de itens domésticos podem ser negociados em itens que você não terá mais necessidade. Se você deseja dividir a compra em quatro partes, a primeira é de uma só vez e a última em noventa dias.

— Eu sempre pago a vista — murmurou Morris. 

Estava cuidadosamente redefinindo as posições da rota no quadro de controle.

— Não há cobrança pelo plano de noventa dias. Para o plano de seis meses, há uma taxa de seis por cento por ano, o que equivalerá aproximadamente... — interrompeu os cálculos. — Nós mudamos de curso.

— Deixamos a faixa de tráfego oficial. 

O fasrad ficou paralisado e depois apressou-se ao painel de controle. 

— O que você está fazendo? Há uma multa de duas unidades para isso.
Morris o ignorou. Acelerou severamente nos controles e manteve os olhos na tela. A nave estava ganhando velocidade rapidamente.

As bóias de advertência soavam com raiva quando ele passou por elas e entrou na obscuridade do espaço profundo. Em alguns segundos eles deixaram todo o trânsito para trás. 
Estavam sozinhos, disparando rapidamente de Júpiter para o espaço profundo.
O fasrad calculou a trajetória.

— Estamos saindo do sistema solar. Rumo a Centaurus.

— Pode apostar.

— Você não deveria chamar sua esposa?

Morris grunhiu e levou a barra de direção mais adiante. A nave tremeu e lançou-se de qualquer forma, então conseguiu endireitar-se. Os jatos começaram um lamento sinistro. Os indicadores mostraram as turbinas principais começando a aquecer. Ele ignorou e abriu o abastecimento de combustível de emergência.

— Vou chamar a Sra. Morris -ofereceu o fasrad.

— Estaremos além do alcance em pouco tempo. — Não se preocupe.

— Ela vai se preocupar — o fasrad correu para a traseira da nave e examinou os jatos novamente. Apareceu de volta na cabine zumbindo um alarme. 

— Sr. Morris, esta nave não está equipada para viagens inter-setoriais. É um modelo doméstico de quatro eixos Classe D apenas para consumo doméstico. Não foi feito para suportar essa velocidade.

— Para chegar a Proxima — respondeu Morris — precisamos dessa velocidade.
O fasrad conectou seus cabos de potência à placa de controle. 

— Eu posso usar meu sistema. Mas, a menos que você retorne de volta ao normal, não posso ser responsável pela deterioração dos jatos.

— Que se danem os jatos.

O fasrad ficou em silêncio. Estava ouvindo atentamente o gemido crescente debaixo deles. A nave estremeceu violentamente. Placas caíram. O chão estava quente. O pé de Morris fixo no acelerador. A nave ganhou mais velocidade quando o Sol ficou para trás. Eles estavam fora da área mapeada. O Sol recuou rapidamente.

— É tarde demais para falar com sua esposa — disse o fasrad. — Há três foguetes de emergência na popa; se quiser, vou dispará-los na esperança de atrair um transporte de emergência que esteja por perto.

— Por quê?

— Eles podem nos levar no reboque e nos devolver ao sistema Solar. Há um plano de seiscentas unidade de ouro mas, bem, nas circunstâncias parece-me a melhor política.
Morris virou as costas para o fasrad e bloqueou o acelerador com todos os seus
peso. O gemido cresceu até um rugido violento.
Instrumentos quebraram e fusíveis explodiram. Luzes apagaram e depois relutantes voltaram a acender.

— Sr. Morris — disse o fasrad — você deve se preparar para a morte. As probabilidades estatísticas de explosão das turbinas são de setenta por cento. Eu farei o que puder, mas o ponto de perigo já foi ultrapassado.

Morris retornou ao visor. Por um momento olhou para o ponto crescente.
A estrela gêmea Centaurus.

— Parece bom não? Vinte planetas — examinou os instrumentos. — Como os jatos estão aguentando? Não posso contar com isso, a maioria está queimada.

O fasrad hesitou e começou a falar.

— Eu vou voltar a examiná-los — disse. Moveu-se para a parte de trás da nave e desapareceu pela curta rampa para a câmara do motor trovejante.

Morris inclinou-se e apagou o cigarro.
Ele esperou um momento mais e depois estendeu a mão e puxou os controles, a última alavanca possível no quadro de controle.

A explosão rasgou a nave pela metade.
Secções de casco se precipitaram ao redor dele e ele sem peso bateu na placa de controle. Metal e o plástico caíram com ele. Os pontos incandescentes intermitentes piscavam, desapareceram e finalmente morreram em silêncio, e já não era nada além de cinzas frias.
O ruido aborrecido das bombas de ar de emergência trouxeram a consciência de volta. Estava preso sob os destroços da placa de controle; um braço estava quebrado.
Tentou mover as pernas, mas não havia sensação alguma abaixo da cintura.
Os destroços de sua nave ainda estavam voando em direção a Centaurus.
O equipamento de vedação do casco tentando tampar os buracos. A temperatura automática mantida espasmodicamente por baterias autônomas. Na tela o vasto volume flamejante dos sois gêmeos crescia silenciosamente, inexoravelmente.
Ele estava feliz.
No silêncio da nave destruida, enterrado sob os escombros, sentiu gratidão observando o volume crescente. Era uma bela vista que queria ver por um bom tempo.
Estava se aproximando a cada minuto. Em um dia ou dois, a nave mergulharia na massa de fogo e seria consumida.

Mas ele poderia aproveitar esse intervalo, não havia nada para perturbar sua felicidade. Pensou em Sally adormecia sob a lente radiante. Sally gostaria de Proxima? Provavelmente não. Provavelmente gostaria de voltar para casa o mais rápido possível.

Isso era algo que ele tinha que apreciar sozinho. Isso era só para ele. Uma vasta paz desceu sobre ele. Ele poderia ficar ali sem se mexer, e a magnificência flamejante se aproximaria cada vez mais...
Um som.
Dos montes de destroços fundidos, algo torcido, amassado, uma forma pouco visível no brilho cintilante da tela ligada. Morris conseguiu virar sua cabeça.
O fasrad cambaleou para uma posição de pé.

A maior parte do tronco desaparecera esmagada e quebrada. Lentamente abriu caminho para ele, depois se acomodou a alguns metros de distância. Engrenagens
murmuravam baixo. Relés abriam e fechavam. 

— Boa noite — disse a voz aguda e metálica.

Morris gritou. Tentou mover seu corpo, mas destroços o abraçaram forte.
Ele gritou e gritou e tentou se arrastar-se para longe. Ele lamentou e chorou.

— Eu gostaria de lhe mostrar um fasrad — continuou a voz metálica. — Você chamaria
sua esposa, por favor? Gostaria de mostrar-lhe um fasrad também.

— Cai fora! — Morris gritou. — Saia de perto de mim!

— Boa noite — continuou o fasrad, como um disco quebrado. — Boa noite. Por favor, sente-se. Estou feliz em conhecê-lo. Qual é o seu nome? Obrigado. Você é a primeira pessoa do seu bairro a ver o fasrad. Onde você está empregado?

As lentes dos olhos mortas o deixavam vazio.

— Por favor, sente-se — disse novamente. — Isso levará apenas um minuto. Apenas um minuto. A demonstração levará apenas um...

FIM.

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