domingo, 19 de novembro de 2017

HUMANO É - Philip K. Dick



HUMANO É
(O conto “Human Is” foi publicado pela primeira vez na revista Startling Stories, em 1955.)

Os olhos azuis de Jill Herrick se encheram de lágrimas ao encarar o marido com um horror indescritível.

— Você é... você é um monstro! — Ela disse.


Lester Herrick continuou organizando montes de notas e gráficos em pilhas precisas.

— Monstro — ponderou ele — é um julgamento de valor. Não contém fatos — completou passando ao escaner um relatório sobre a vida parasitária Centaurea. — Simplesmente uma opinião. Uma expressão de emoção, nada mais.

Jill voltou para a cozinha. Passiva, acenou com a mão para o fogão em atividade. Correias transportadoras na parede ganharam vida, trazendo a comida dos armários de armazenamento subterrâneo para a refeição da noite.

Ela se virou para o marido uma última vez.

— Nem mesmo um pouco? — Implorou. — Nem mesmo...

— Nem mesmo por um mês. Quando ele chegar, você pode dizer a ele. Se não tiver coragem, eu digo. Não posso ter uma criança correndo por aqui. Tenho muito trabalho a fazer. Este relatório de Betelgeuse XI está atrasado dez dias — Lester deixou cair um carretel de implementos fósseis Fomalhautan no escaner. — Qual é o problema com seu irmão? Por que ele não pode cuidar de seu próprio filho?

Jill esfregou os olhos inchados.

— Você não entende? Eu quero Gus aqui! Eu implorei a Frank para deixá-lo vir. E agora você...

— Ficarei feliz quando ele tiver idade suficiente para ser entregue ao governo — o rosto fino de Lester se torceu em aborrecimento. — Droga, Jill, o jantar ainda não está pronto? Já se passaram dez minutos! O que há de errado com esse fogão?

— Está quase pronto. 

O fogão mostrou um sinal vermelho. O garçom-robô saiu da parede e esperou pela comida.
Jill sentou-se e asoou seu pequeno nariz violentamente. Na sala de estar Lester trabalhava concentrado. O trabalho dele. Sua pesquisa. Dia após dia. Lester estava progredindo; não havia dúvida disso. Seu corpo magro estava dobrado sobre o escaner de fita, olhos cinzentos e frios, absorvendo a informação febrilmente, analisando, avaliando, suas faculdades conceituais funcionando como uma máquina.

Os lábios de Jill tremiam de amargura e ressentimento. Gus, o pequeno Gus. Como ela poderia dizer a ele? Novas lágrimas brotaram em seus olhos. Nunca mais veria o gordinho novamente. Ele nunca mais poderia voltar... porque suas risadas e brincadeiras infantis incomodavam Lester, interferindo com sua pesquisa.

O fogão clicou em verde. A comida deslizou para fora, para os braços do garçom-robô. Sinetas anunciaram que o jantar estava pronto.

— Eu ouvi — disse Lester desligando o escaner e ficando de pé. — Suponho que ele chegará enquanto estivermos comendo.

— Posso ligar para Frank e perguntar...

— Não. Vamos acabar logo com isso — Lester assentiu com impaciência para o robô. — Tudo bem, sirva! — Seus finos lábios eram uma linha irritada. — Maldição! Quero voltar logo ao meu trabalho.

Jill voltou às lágrimas.


O pequeno Gus entrou na casa quando eles estavam terminando o jantar. Jill gritou de alegria:

— Gussie! — E correu para pegá-lo em seus braços. — Estou tão feliz em vê-lo!

— Cuidado com o meu tigre — avisou Gus deixando cair o pequeno gatinho cinza ao tapete. O animal correu para debaixo do sofá. — Ele está se escondendo.

Os olhos de Lester cintilaram enquanto estudava o garotinho e a ponta da cauda cinzenta que se estendia por baixo do sofá.

— Por que você chama isso de tigre? Não passa de um gato viralata.

Gus parecia magoado. Ele franziu o cenho. — É um tigre. Ele tem listras.

— Os tigres são amarelos e bem maiores. Você pode aprender a classificar as coisas pelos seus nomes corretos.

— Lester, por favor — Jill implorou.

— Fique calada — disse seu marido zangado. — Gus tem idade suficiente para abandonar as ilusões infantis e desenvolver uma orientação realista. O que há de errado com os testes psicológicos? Não detectaram esse tipo de falha?

Gus correu e agarrou seu tigre. — Deixe-o em paz!

Lester contemplou o gatinho. Um sorriso estranho e frio escapou de seus lábios.

— Apareça no laboratório qualquer dia desses, Gus. Nós te mostraremos muitos gatos. Nós os usamos em nossa pesquisa. Gatos, porcos-da-india, coelhos...

— Lester! — Jill ofegou. — Como você pode!

Lester riu um pouco. Abruptamente parou e voltou para a mesa.

— Agora saia daqui. Tenho que terminar esses relatórios. E não se esqueça de falar com Gus.
Gus ficou entusiasmado.

— Falar o quê? — Suas bochechas estavam coradas. Os olhos brilhavam. — O que é? Alguma coisa para mim? Um segredo?

O coração de Jill estava pesado como chumbo. Colocou a mão no ombro da criança.
— Vamos, Gus. Vamos nos sentar no jardim e eu vou te dizer. Traga... traga seu tigre.

Um som de aviso e uma mensagem de emergência chegou.

Instantaneamente, Lester estava já de pé.

— Quietos — correu para lá, respirando rápido. — Ninguém fala!

Jill e Gus pararam à porta.

Uma mensagem confidencial deslizou para fora do aparelho. Lester agarrou-a e quebrou o selo.
Estudou-a atentamente.

— O que é? — Jill perguntou. — É coisa ruim?

— Ruim? — O rosto de Lester brilhava com um profundo brilho interior. — Não mesmo — olhou no seu relógio. — Apenas não tenho muito tempo. Vamos ver, eu vou precisar de...

— O que é?

— Vou fazer uma viagem, duas ou três semanas. Rexor IV.

— Rexor IV? Você está indo para lá? — Jill apertou as mãos ansiosamente. — Oh, eu sempre quis ver ruínas e cidades antigas! Lester, posso te acompanhar? Posso ir com você? Nunca temos férias e você sempre me prometeu?

Lester Herrick olhou para a esposa com espanto.

— Você? Ir junto? — Riu desagradavelmente. — Apresse-se e junte minhas coisas. Estive esperando por isso faz muito tempo — esfregou as mãos em satisfação. — Você pode ficar com o menino até eu voltar. Mas não mais que isso. Rexor IV! Mal posso esperar!


— Você precisa fazer concessões — disse Frank. — Afinal de contas, ele é um cientista.

— Não me importo — disse Jill. — Vou deixá-lo! Assim que ele voltar de Rexor IV. Já decidi.
Seu irmão ficou pensativo. Estendeu os pés no gramado do pequeno jardim. — Bem, se você o deixar estará livre para se casar novamente. Você ainda é classificada como sexualmente adequada, não?
Jill assentiu com firmeza. — Pode apostar. Eu não teria problemas. Talvez eu possa encontrar alguém que goste de crianças.

— Você pensa muito em crianças — percebeu Frank. — Gus gosta de visitá-la. Mas ele não gosta de Lester. Les o perturba.


— Eu sei. A semana passada foi o paraíso, com Lester fora. Eu me diverti muito com Gus. Me fez sentir-me viva novamente.

— Quando ele estará de volta?

— Qualquer dia desses — Jill apertou os punhos pequenos. — Nós estamos casados há cinco anos e a cada ano fica pior. Ele é tão... desumano. Totalmente frio e implacável. Ele e seu trabalho. Dia e noite.

— Les é ambicioso. Ele quer chegar ao topo em sua área — Frank acendeu um cigarro com preguiça. — Um carreirista. Bem, talvez ele consiga. O que ele faz?

— Toxicologia. Ele desenvolve novos venenos para os militares. Ele inventou o sulfato de cobre que usaram em Calisto.

— É um campo pequeno. Agora veja o meu caso — Frank inclinou-se satisfeito contra a parede da casa. — Existem milhares de advogados. Eu poderia trabalhar durante anos e nunca fazer qualquer diferença. Estou contente em apenas ser eu mesmo. Eu faço o meu trabalho. Eu gosto disso.
— Eu queria que Lester se sentisse assim.

— Talvez ele mude.

— Ele nunca mudará — disse Jill amarga. — Sei disso agora. É por isso que decidi deixá-lo. Ele nunca vai mudar.


Lester Herrick voltou de Rexor IV um homem diferente.

Feliz, entregou sua mala nos braços do robô caseiro que o esperava e agradeceu a ele.

Jill disse sem rodeios. — Les! O que...

Lester tirou o chapéu, curvando-se um pouco.

— Bom dia, minha querida. Você está linda. Seus olhos estão azuis como um lago virgem, alimentado por córregos da montanha — e cheirou o ar. — Que cheiro delicioso de lar.

— Oh, Lester — Jill piscou com incerteza, uma fraca esperança inchando seu peito. — Lester, o que aconteceu com você? Você está tão diferente.

— Estou minha querida? — Lester moveu-se pela casa, tocou coisas e suspirou. — Que casinha adorável. Tão doce e amigável. Você não sabe o quão maravilhoso é estar de volta. Acredite em mim.
— Tenho medo de acreditar — disse Jill.

— Acreditar no que?

— Tudo isso. Você não parece ser o mesmo. Do jeito que você sempre foi.

— Que jeito?

— Mesquinho e cruel.

— Eu? — Lester franziu a testa, esfregando o lábio. — Hmm. Interessante. Bem, isso é passado. O que temos para o jantar? Estou com fome.

Jill olhou para ele com incerteza enquanto ia para a cozinha. — Tudo o que quiser comer, Lester. Você sabe que o nosso fogão cobre a lista máxima de seleção.

— Claro — Lester tossiu rapidamente. — Bem, devemos tentar o bife de lombo ao ponto, com cebolas? Com molho de cogumelos e pãezinhos brancos. E café. Talvez sorvete e torta de maçã para sobremesa.

— Você nunca pareceu se importar muito com a comida — disse Jill pensativa.

— É?

— Você sempre disse que esperava que eles criassem a ingestão intravenosa universalmente aplicável — estudou o marido com atenção. — Lester, o que aconteceu?

— Nada, nada — Lester tirou descuidadamente seu ciachimbo e acendeu-o rapidamente, um tanto desajeitadamente. Pedaços de tabaco cairam para o tapete. Ele se curvou nervosamente e tentou pegá-los novamente. — Por favor, não se importe comigo. Talvez eu possa ajudá-la a preparar algo... ou, posso fazer qualquer coisa para ajudar você?

— Não — disse Jill. — Eu posso fazer isso. Você pode voltar ao seu trabalho, se quiser.

— Trabalho?

— Sua pesquisa. As toxinas.

— Toxinas! — Lester demostrou confusão. — Bem, as toxinas podem ir pro inferno!

— O que?

— Quero dizer, eu realmente me sinto muito cansado agora. Eu vou trabalhar mais tarde.
Lester se moveu vagamente ao redor da sala. — Acho que vou sentar e curtir estar em casa novamente. Longe daquele horrível Rexor IV.

— Horrível?

— Horrível — um espasmo de desgosto cruzou o rosto de Lester. — Seco e morto. Castigado pelo vento e pelo sol. Um lugar terrível, querida.

— Lamento ouvir isso. Sempre quis visitá-lo.

— Oh, não! — Lester gritou com sentimento. — Melhor ficar aqui mesmo, querida. Comigo. Nós dois — seus olhos vagaram pela sala. — Nós dois, sim. A Terra é um planeta maravilhoso, úmido e cheio de vida — sorriu feliz. — Na medida certa.


— Eu não entendo — disse Jill.

— Repita todas as coisas de que você se lembra — disse Frank. Seu lápis-robô se colocou em prontidão. — As mudanças que você notou nele. Estou curioso.

— Por quê?

— Sem motivo. Vá em frente. Você diz que sentiu isso imediatamente? Que ele era diferente?

— De imediato. A expressão em seu rosto. Não era aquele olhar duro e pragmático. Uma espécie de olhar suave. Descontraído. Tolerante. Uma espécie de calma.



— Entendo — disse Frank. — O quê mais?

Jill olhou nervosamente para a porta dos fundos para a casa. — Ele não pode nos ouvir?

— Não. Ele está brincando com Gus na sala de estar. Eles são homens-lontra venusianos hoje. Seu marido construiu uma lontra deslizante em seu laboratório. Eu o vi desembrulhando-a.
— Sua fala.

— O quê?

— A maneira como ele fala. Sua escolha de palavras. Palavras que ele nunca usou antes. Frases novas inteiras. Metáforas. Nunca o ouvi usar uma metáfora em todos os nossos cinco anos juntos. Ele dizia que metáforas eram inexatas. Enganadoras. E...

— E o que?

— E são palavras estranhas. Palavras antigas. Palavras que você não ouve mais.

— Fraseologia arcaica? — Perguntou Frank tenso.

— Sim — Jill caminhava de um lado para outro pelo gramado pequeno, com as mãos nos bolsos de suas bermudas plásticas. — Palavras formais. Como se tivessem...

— Saidas de um livro?

— Exatamente! Você percebeu?

— Percebi — o rosto de Frank era sombrio. — Continue.

— O que você está pensando? Você tem uma teoria?

— Preciso de mais fatos.

Ela refletiu. — Ele brinca com Gus. Ele o toca e brinca. E ele... ele come.

— Ele não comia antes?

— Não como faz agora. Agora ele ama a comida. Ele entra na cozinha e tenta infinitas combinações. Quando vai para o fogão, prepara todo tipo de coisa estranha.

— Achei que ganhou peso.

— Sim, quase cinco quilos. Ele come, sorri e ri. Ele é constantemente educado — Jill olhou para trás com carinho. — E é até mesmo... romântico! Ele sempre disse que romantismo era algo irracional. E ele não está mais interessado em seu trabalho. Sua pesquisa em toxinas.

— Entendo — Frank mordeu o lábio. — Algo mais?

— Uma coisa me deixou muito confusa. Eu notei isso de novo e de novo.

— E o que é?

— Ele parece ter lapsos estranhos de...

Uma risada. Lester Herrick com os olhos brilhantes de alegria veio correndo para fora da casa, e o pequeno Gus logo atrás.

— Nós temos um anúncio a fazer! — Lester disse quase sem fôlego.

— Um anunciamento! — Ecoou Gus.

Frank guardou as anotações no bolso do casaco e se levantou lentamente.

— O que é?

— Você fala — disse Lester pegando a mão do pequeno Gus e levando-o para frente.

O rosto gordo de Gus se fechou em concentração então falou:

— Vou morar aqui — afirmou observando ansioso a expressão de Jill. — Lester diz que posso. Posso? Posso tia Jill?

O coração de Jill inundou de tanta alegrial. Ela olhou de Gus para Lester.

— Você... você realmente quer isso? — Sua voz era quase inaudível.
Lester colocou o braço em volta dela, segurando-a perto dele.

— É claro — disse gentilmente. Seus olhos estavam quentes e compreensivos. — Nós não brincaríamos sobre isso, minha querida.

— Não é brincadeira — Gus gritou com entusiasmo.

Ele e Lester e Jill juntaram-se num abraço.

Frank estava um pouco distante, seu rosto sombrio.


Jill notou e se separou abruptamente.

— O que é? — Ela vacilou. — É sobre...

— Quando você terminar — disse Frank para Lester Herrick — eu gostaria que viesse comigo.
Um arrepio atravessou o coração de Jill. — Por quê? Posso ir também?

Frank balançou a cabeça negativamente e se moveu na direção de Lester ameaçador.

— Vamos, Herrick. Vamos. Você e eu vamos fazer uma pequena viagem.


Os três agentes federais ocuparam posições a poucos metros de Lester Herrick, armas vibro-tubos seguras em atenção.

O diretor Douglas estudou Herrick por um longo tempo.

— Você tem certeza? — Finalmente disse.



— Absolutamente — afirmou Frank.

— Quando ele voltou de Rexor IV?

— Uma semana atrás.

— E a mudança foi percebida prontamente?

— Sua esposa percebeu logo que o viu. Não há dúvida do que ocorreu em Rexor — Frank pausou significativamente. — E você sabe o que isso significa.

— Eu sei — Douglas caminhou lentamente ao redor do homem sentado, examinando-o por todos os ângulos.

Lester Herrick sentado calmamente, seu casaco cuidadosamente dobrado sobre o joelho. Apoiou as mãos na bengala de marfim, o rosto calmo e inexpressivo. Usava um terno cinza suave, gravata e sapatos pretos brilhantes. Não dissera nada.

— Seus métodos são simples e exatos — disse Douglas. — Os conteúdos psíquicos originais são removidos e armazenados em algum tipo de suspensão. A assimilação do substituto é instantânea. Lester Herrick provavelmente estava vasculhando as ruínas da cidade de Rexor, ignorando as precauções de segurança e eles o pegaram.

O homem sentado agitou-se.

— Eu gostaria muito de me falar com Jil — murmurou. — Ela certamente está preocupada.
Frank afastou-se, o rosto em repulsa. — Deus. Ainda está fingindo.

O diretor Douglas continha-se com esforço.

— É certamente uma coisa incrível. Nenhuma mudança física. Você poderia olhar para ele e nunca saber — moveu-se em direção ao homem sentado. — Ouça-me, qualquer que seja seu nome. Você pode entender o que eu digo?

— É claro — respondeu Lester Herrick.

— Você realmente pensou que conseguiria? Nós pegamos os outros... antes de você. Todos os dez, mesmo antes de chegarem aqui — Douglas sorriu friamente. — Fritamos um após o outro.

A cor deixou o rosto de Lester Herrick. O suor apareceu em sua testa que ele secou com um lenço de seda.

— Oh — deixou escapar.

— Você não está nos enganando. Toda Terra está em alerta quanto a vocês Rexorianos. Estou surpreso que tenha conseguido partir de Rexor. Herrick deve ter sido extremamente descuidado. Pegamos os outros a bordo da nave no espaço profundo.

— Herrick tinha uma nave particular — murmurou o homem sentado. — Ele contornou a estação de checagem. Não havia registro de sua chegada. Ele nunca foi checado.

— Fritem ele! — Douglas gritou.

Os três agentes avançaram levantando os tubos.

— Não — Frank balançou a cabeça. — Não podemos. Vai nos deixar numa situação ruim.

— O que você quer dizer? Por que não podemos? Nós fritamos os outros...

— Eles foram apanhados no espaço profundo. Aqui é a Terra. Temos a lei terráquea, aqui não se aplica a lei militar — Frank acenou para o homem sentado. — E ele está em um corpo humano. Ele está sujeito a leis civis. Devemos provar que não é Lester Herrick, que é um infiltrado rexoriano. Isso vai ser difícil. Mas pode ser feito.

— Como?

— Sua esposa, a esposa de Herrick. Seu testemunho. Jill Herrick pode afirmar a diferença entre Lester Herrick e essa coisa. Ela sabe, e acho que podemos fazer com que vá ao tribunal.


Era tarde e Frank dirigia seu cruzador de superfície lentamente. Nem ele nem Jill falavam.

— Então é isso — disse finalmente Jill. Seu rosto estava cinza. Seus olhos sem emoção. — Eu sabia que era bom demais para ser verdade — tentou sorrir. — Parecia tão maravilhoso.

— Eu sei — disse Frank. — É uma coisa terrível.

— Por que ele fez isso com o corpo de Lester?

— Rexor IV é velho. Um planeta moribundo. A vida está desaparecendo.

— Lembro-me agora. Ele disse algo assim sobre Rexor. Foi uma alegria para ele fugir de lá.

— Os Rexorianos são uma raça antiga. Os poucos que sobreviveram são fracos. Eles tentaram migrar por séculos. Mas seus corpos são muito fracos. Alguns tentaram migrar para Vênus, mas morreram instantaneamente. Eles conhecem este sistema há um século.

— Mas conhecem muito sobre nós. Falam nosso idioma.

— Não tão bem. As mudanças que você mencionou. A dicção estranha. Os Rexorianos têm apenas um vago conhecimento dos seres humanos. Uma espécie de abstração ideal, tirada de objetos que encontraram em Rexor. Livros principalmente. Dados secundários. A ideia rexioriana da Terra baseia-se em literatura terráquea de séculos atrás. Romances do passado. Língua, costumes de livros antigos. Isso explica sua qualidade arcaica e estranha. Estudaram a Terra, sim, mas de forma indireta.
— Frank sorriu com ironia. — Os Rexorianos estão duzentos anos atrás no tempo, o que é uma vantagem para nós. Assim somos capazes de detectá-los.

— Esse tipo de coisa é comum? Isso acontece muitas vezes? Parece inacreditável — Jill esfregou a testa cansada. — É difícil perceber que realmente aconteceu. Estou apenas começando a entender o que isso significa.

— A galáxia está repleta de formas de vida alienígenas. De entidades parasiticas e destrutivas. A ética terráquea não significa nada para eles. Temos de nos manter constantemente atentos contra esse tipo de coisa. Lester não se protegeu... e essa coisa assumiu o seu corpo.

Frank olhou para a irmã. O rosto de Jill era inexpressivo. Um pequeno rosto severo, de olhos arregalados. Ela se sentava rigida, olhando fixamente à frente, com as mãos pequenas ao colo.

— Nós podemos dar um jeito para que você não precise comparecer no tribunal — Frank prosseguiu.

— Você só precisa dar uma declaração e ela será apresentada como evidência. Estou certo de que sua declaração servirá. Os tribunais federais nos ajudarão com tudo o que puderem, mas eles precisam de alguma evidência.

Jill ficou em silêncio.

— O que me diz? — Perguntou Frank.

— O que acontecerá depois que o tribunal tomar a decisão?

— Então nós usaremos o vibro-raio, destruindo a mente Rexoriana. Uma nave patrulha Terráquea será enviada para Rexor IV para localizar o "conteúdo original”.

Jill ofegou. Virou-se para o irmão com espanto.

— Você quer dizer...

— Oh, sim. Lester está vivo. Em animação suspensa em algum lugar de Rexor. Em uma das ruínas da cidade velha. Teremos que forçá-los a desistir. Eles não vão querer, mas eles vão ceder. Já fizeram isso antes. Então ele voltará para você. São e salvo. Assim como antes. E esse horrível pesadelo que você viveu será uma coisa do passado.

— Entendo.

— Chegamos.

O cruzador parou diante do imponente edifício Federal. Frank saiu rapidamente, segurando a porta para sua irmã descer. — Tudo OK? — Perguntou Frank.

— OK.

Quando eles entraram no prédio, os agentes os conduziram através das telas de verificação, descendo os longos corredores. Os saltos altos de Jill ecoaram no silêncio sinistro.

— Que lugar! — Observou Frank.

— Nada amigável.

— Pense como uma delegacia sofisticada — Frank parou diante de uma porta protegida. — Aqui estamos.

— Espere — Jill puxou-o para trás, seu rosto em pânico. — Eu...

— Esperaremos até que esteja pronta — Frank indicou ao agente que fosse embora. — Eu entendo. Não é nada fácil.

Jill ficou um momento com a cabeça baixa, respirando profundamente, seus pequenos punhos apertados. Seu queixo então se ergueu confiante. — Tudo certo.

— Está pronta?

— Sim.

Frank abriu a porta. — Aqui estamos.

O diretor Douglas e os três agentes ficaram expectantes quando Jill e Frank entraram.

Douglas disse com alívio: — Eu estava começando a me preocupar.

O homem sentado agarrou sua bengala de marfim com força, suas mãos estavam tensas. Não disse nada enquanto observava a mulher que entrara no recinto com Frank atrás dela.

— Esta é a Sra. Herrick — disse Frank. — Jill, este é o Diretor Douglas.

— Já ouvi falar de você — disse Jill fracamente.

— Então você conhece nosso trabalho.

— Sim. Conheço o seu trabalho.

— Este é um negócio infeliz. Já aconteceu antes. Eu não sei o que Frank lhe disse...

— Ele explicou a situação.

— Ótimo — Douglas ficou aliviado. — Fico satisfeito com isso. Não é fácil de explicar. Você entende então o que queremos. Os casos anteriores foram capturados no espaço profundo. Nós os vibramos e recuperamos o conteúdo original. Mas desta vez, devemos trabalhar através de canais legais — Douglas pegou um gravador de vídeo. — Precisamos da sua declaração, Sra. Herrick. Uma vez que nenhuma mudança física ocorreu, não temos provas diretas para o nosso caso. Teremos apenas o seu testemunho de alteração de caráter para apresentar ao tribunal.

Ele empunhava agora o gravador de vídeo.

— A sua declaração será indubitavelmente aceita pelo tribunal. O tribunal nos dará a liberação que queremos e então podemos seguir em frente. Se tudo correr bem, esperamos poder deixar as coisas exatamente como eram antes.

Jill olhava silenciosamente para o homem que estava no canto com o casaco e a bengala de marfim.

— Como antes? — Ela disse. — O que você quer dizer?

— Antes da mudança.

Jill voltou-se para o diretor Douglas. Calmamente ela colocou o gravador de vídeo na mesa.

— De que mudança está falando?

Douglas ficou palido. Todos os olhos estavam em Jill.

— A mudança nele — e apontou para o homem.

— Jill! — Frank reagiu. — Qual o problema com você? O que diabos você está fazendo? Você sabe muito bem o que significa a mudança?

— Isso é estranho — disse Jill pensativamente. — Não notei nenhuma mudança.

Frank e o diretor Douglas se olharam.

— Eu não entendo — murmurou Frank atordoado.

— Sra. Herrick... — Douglas começou.

Jill caminhou até o homem parado em silêncio no canto.

— Podemos ir agora, querido? — Ela perguntou e pegou o braço dele. — Ou há algum motivo para o meu marido ter que ficar aqui?


O homem e a mulher caminhavam silenciosamente pela rua escura.

— Vamos — disse Jill. — Vamos para casa.

O homem olhou para ela.

— É um belo final de tarde — disse ele respirando profundamente, enchendo os pulmões. — A primavera está chegando... eu acho. Não? Eu não tenho certeza. É um cheiro bom de plantas e terra e coisas crescendo.

— Sim.

— Vamos caminhando? Está longe?

— Não muito longe.

O homem olhou para ela com atenção, com uma expressão séria no rosto.

— Estou em dívida com você, querida.

Jill assentiu.

— Queria te agradecer — continuou. — Devo admitir que não esperava...

Jill virou-se abruptamente. — Qual é o seu nome? Seu nome de verdade.

Os olhos cinzentos do homem cintilaram. Sorriu um sorriso gentil.

— Receio que você não seja capaz de pronunciá-lo.

Jill ficou em silêncio enquanto caminhavam em pensamentos profundos. As luzes da cidade estavam ao redor deles. Manchas amarelas brilhantes na escuridão.

— O que você está pensando? — Perguntou o homem.

— Eu estava pensando que talvez eu ainda te chame de Lester — disse Jill. — Se você não se importar.

— Não me importo.

Ele colocou o braço em volta dela, aproximando-se e olhou com delicadeza enquanto caminhavam pela escuridão espessa entre os brilhos amarelos de luz que marcavam o caminho. — Tudo o que quiser. Tudo o que o te faça feliz.

FIM.

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