quarta-feira, 15 de novembro de 2017

O PASSAGEIRO - Philip K. Dick




O PASSAGEIRO
(O conto “The Commuter” foi publicado pela primeira vez na revista Amazing em 1953.)

O pequeno homem estava cansado.

Ele abriu caminho lentamente na multidão, da entrada da estação até a janela de venda de bilhetes.
Esperou sua vez com impaciência, seus ombros caídos demonstrando a fadiga, seu casaco marrom flácido.

— Próximo — Ed Jacobson, o vendedor de bilhetes chamou.

O homem jogou uma nota de cinco dólares no balcão.

— Me dê uma cartela de bilhetes. A antiga acabou — olhou para o relógio da parede além de Jacobson. — Meu Deus, já é tão tarde assim?

Jacobson aceitou os cinco dólares.

— OK, senhor. Uma cartela. Para onde?

— Macon Heights.

— Macon Heights. Macon Heights. Não existe este lugar.

O rosto do homem se endureceu.

— Você está tentando ser engraçado?

— Senhor, não existe Macon Heights. Não posso vender um bilhete a menos que este lugar exista.

— O que quer dizer? Eu moro lá!

— Olhe, eu vendo passagens há seis anos e não existe esse lugar.

Os olhos do pequenino se abriram ainda mais em espanto.

— Mas eu tenho uma casa lá. Eu vou para lá todas as noites. Eu...

— Aqui — Jacobson puxou a tabela com as linhas de trem. — Procure você.

O homem pequeno puxou a folha para si e a estudou freneticamente, seu dedo tremendo ao descer a lista das cidades.

— Encontrou? — Jacobson perguntou descansando os braços no balcão. — Não está aí, não é?

O pequeno sacudiu a cabeça, atordoado.

— Não entendo. Não faz sentido. Algo deve estar errado. Certamente deve haver...

De repente ele desapareceu.

A tabela caiu no chão de cimento.

O pequeno homem se fora, deixou de existir.

— Minha Mãe do Céu! — A boca de Jacobson abriu e fechou.

Apenas a folha no chão de cimento.
O pequeno homem deixara de existir.


— E então? — Bob Paine perguntou.

— Eu saí e peguei a tabela.

— Ele realmente se foi?

— Desapareceu, ok — Jacobson esfregou a testa. — Eu queria que você tivesse visto. Foi como uma luz, apagou! Completamente. Sem som, sem movimento.

Paine acendeu um cigarro, recostando-se na cadeira.

— Você já o viu antes?

— Não.

— A que horas foi isso?

— Por volta das cinco.

Jacobson moveu-se em direção à janela de bilhetes.

— Macon Heights — Paine virou as páginas do guia da cidade e do estado. — Não aparece em nenhuma lista de nenhum livro. Se o sujeito reaparecer, quero falar com ele. Traga ele ao escritório.

— Claro. Não quero ter nada a ver com ele. Isso não é natural.

Jacobson virou-se para a janela. — Sim, senhora.

— Dois bilhetes de ida e volta para Lewisburg.

Paine esmagou seu cigarro e acendeu outro.

— Continuo achando que já ouvi esse nome antes — se levantou e percorreu o mapa da parede com os olhos. — Não. Não está ai.

— Não está porque não existe — disse Jacobson. — Você acha que eu ficaria aqui diariamente, vendendo um bilhete após o outro e não saberia? — Voltou-se para a janela.

— Sim senhor.

— Eu gostaria de uma cartela para Macon Heights — disse o homem pequeno olhando nervosamente para o relógio na parede. — E rápido.

Jacobson fechou os olhos. Ficou firme.

Quando abriu os olhos novamente o sujeito ainda estava lá com seu rosto enrugado. Perdendo cabelo. Óculos. Casaco velho.

Jacobson virou-se e foi ao escritório de Paine.

— Ele voltou — Jacobson engoliu em seco, com o rosto pálido.  -É ele novamente.

Os olhos de Paine cintilaram.

-Traga-o até aqui.

Jacobson assentiu e voltou para a janela.

— Senhor, por gentileza. O senhor poderia entrar? — Indicou a porta. — O vice-presidente gostaria de vê-lo por um momento.

O rosto do homem alterou-se sombriamente.

— O que está acontecendo? O trem está prestes a sair — grunhiu em voz baixa enquanto abria a porta e entrava no escritório. — Esse tipo de coisa nunca me aconteceu antes. Certamente fica difícil comprar um bilhete assim. Se eu perder o trem, vou processar sua empresa...

— Sente-se — disse Paine indicando a cadeira em frente da mesa. — O senhor é o cavalheiro que quer comprar um bilhete para Macon Heights?

— Há algo estranho sobre isso? Qual é o problema com vocês? Por que você não pode me vender um bilhete como sempre?

— Como... como sempre fazemos?

O homem pequeno se manteve no lugar com grande esforço.

— Em dezembro passado minha esposa e eu nos mudamos para Macon Heights. Tenho andado de trem dez vezes por semana, duas vezes por dia, por seis meses. Todos os meses eu compro uma nova cartela de bilhetes.
Paine inclinou-se para ele.

— Qual exatamente dos nossos trens você viaja, Senhor...

— Critchet. Ernest Critchet. O trem B. Você não conhece seus próprios horários?

— O trem B?

Paine consultou o gráfico do trem B, passando o lápis por ele. Nada de Macon Heights.

— E de quanto tempo é a viagem? Quanto tempo demora?

— Exatamente quarenta e nove minutos — Critchet olhou para o relógio da parede.

Paine calculou mentalmente. Quarenta e nove minutos. Quase cinquenta quilometros fora da cidade.
Ele se levantou e foi ao grande mapa estadual com suas linhas de trem.

— O que está errado? — Perguntou Critchet com uma suspeita acentuada.

Paine desenhou um círculo de cinquenta quilômetros no mapa. O círculo cruzava várias cidades, mas nenhuma delas era Macon Heights. E na linha B não havia nada.

— Que tipo de lugar é Macon Heights? — Paine perguntou. — Quantas pessoas você diria que vivem por lá?

— Eu não sei... Cinco mil talvez. Eu passo a maior parte do tempo na cidade. Sou um guarda-livros na Bradshaw Seguros.

— Macon Heights é nova?

— É bem moderna. Temos uma casa de dois quartos, tem poucos anos — Critchet agitou-se inquieto. — E o bilhete?

— Sinto — Paine disse devagar — que não possa vender-lhe uma passagem.

— O que? Por que não?

— Nós não temos nenhuma linha que atenda Macon Heights.

Critchet saltou.

— O que você quer dizer?

— Não há tal lugar. Veja o mapa você mesmo.

Critchet então se virou com raiva para o mapa da parede, olhando-o atentamente.

— Esta é uma situação curiosa, Sr. Critchet — murmurou Paine. — Não está no mapa, e nem no diretório de cidades do estado. Não temos um cronograma que a inclua. Não há livros de viagem feitos para ela. Nós não... — parou de falar.

Critchet desaparecera.

Um momento estava lá, estudando o mapa da parede e no momento seguinte não.
Desapareceu.

— Jacobson! — Paine gritou. — Ele se foi!

Os olhos de Jacobson cresceram. O suor se destacou em sua testa. — Você viu!

Paine estava pensativo, contemplando o lugar vazio que Ernest Critchet ocupara.

— Algo está acontecendo — murmurou. — Algo estranho.

De repente Paine agarrou seu casaco e se dirigiu para a porta.

— Não me deixe sozinho! — Jacobson implorou.

— Se precisar de mim estarei no apartamento de Laura. O número está na minha mesa.

— Não é hora para brincadeira!

Paine abriu a porta.

— Eu duvido — disse sombriamente — que se trate de uma brincadeira.


Paine subiu as escadas para o apartamento de Laura Nichols, dois degraus de cada vez. Empurrou o botão da campainha até a porta se abrir.

— Bob! — Laura piscou surpresa. A que devo a honra...

Paine passou por ela, entrando no apartamento.

— Espero não estar interrompendo nada.

— Não, mas...

— Preciso de ajuda. Posso contar com você?

— Comigo?

Laura fechou a porta. Seu apartamento de aparência atraente e moderna estava em meio a sombras. No fundo um sofá verde, uma luminária. As cortinas pesadas puxadas e o aparelho de som desligado.
— Talvez eu esteja ficando louco — Paine se atirou no sofá verde. — Preciso descobrir.

— Como posso ajudar? — Laura veio com os braços cruzados, um cigarro entre os lábios. Afastou o longo cabelo de seus olhos. — O que você tem em mente?

Paine sorriu para a garota.

— Você vai ficar surpresa. Quero que você vá ao centro amanhã de manhã e...

— Amanhã de manhã! Eu tenho um emprego, lembra? E o escritório começa uma nova série de relatórios nesta semana.

— Esqueça! Tire a manhã de folga. Vá para a biblioteca principal no centro. Se você não puder obter a informação lá, vá até o tribunal do condado e comece a olhar os registros de impostos antigos, até encontrar.

— Encontrar o que?

Paine acendeu um cigarro.

— Qualquer coisa sobre um lugar chamado Macon Heights. Eu sei que ouvi esse nome antes. Anos atrás. Percorra os jornais antigos na sala de leitura. Revistas antigas. Relatórios. Propostas de projetos. Propostas rejeitadas.

Laura sentou-se lentamente no braço do sofá.

— Você está brincando?

— Não.

— Quão longe devo procurar?

— Talvez dez anos se necessário.

— Deus, eu devo ter que...

— Fique lá até encontrar — Paine levantou-se abruptamente. — Vejo você mais tarde.

— Você já vai? Não vai me pagar nem o jantar?

— Desculpa — Paine foi na direção da porta. — Estarei ocupado. Ocupado mesmo.

— Fazendo o que?

— Visitando Macon Heights.


Do lado de fora do trem apenas campos infinitos, a monotonia quebrada por uma fazenda ocasional.
Postes telefônicos escuros subindo em direção ao céu da tarde-noite.
Paine olhou para o relógio ao pulso. Não demoraria muito agora.
O trem passou por um par de postos de gasolina, barracas de vendas de beira de estrada, lojas de televisão. Parou na estação, som de freios. Lewisburg.
Alguns passageiros sairam, homens com sobretudos e jornais da tarde.
As portas fecharam e o trem partiu.
Paine afundou em seu assento, pensativo.
Critchet desapareceu enquanto olhava para o mapa da parede. Desapareceu primeiro quando Jacobson lhe mostrou a tabela. . . Quando lhe foi mostrado que não havia um lugar chamado Macon Heights.

Seria um tipo de indício? A coisa toda era irreal, de sonho.

Olhou para fora. Estava quase lá... se houvesse tal lugar.

Fora do trem os campos castanhos se estendiam a perder de vista. Campos e mais campos. Postes telefônicos. Carros ao longo da rodovia do estado, pequenas manchas negras apressadas no crepúsculo.

Mas nenhum sinal de Macon Heights.

O trem seguia seu caminho. Paine consultou seu relógio. Cinquenta e um minutos se passaram. E ele não vira nada. Nada além de campos.

Caminhou até a locomotiva e sentou-se ao lado do condutor, um velho senhor de cabelos brancos.

— Já ouviu falar de um lugar chamado Macon Heights? — Paine perguntou.

— Não senhor.

— Você tem certeza de que nunca ouviu falar de algum lugar com esse nome?

— Positivo, Sr. Paine.

— Há quanto tempo você está nesta linha?

— Onze anos, Sr. Paine.

Paine saltou na próxima parada, Jacksonville, e se transferiu para o trem B voltando para a cidade.
O sol se fora e o céu era quase preto.
Dificilmente ele conseguiria distinguir o cenário lá fora além da janela.
Estava tenso, reprimindo a respiração. Um minuto. Quarenta segundos. Havia alguma coisa para se ver? Campos. Postes telefónicos esquisitos. Uma paisagem estéril e desperdiçada entre cidades.
O trem atravessando a escuridão.

Paine olhou fixamente. Viu que havia algo lá fora. Alguma coisa nos campos?
Acima dos campos, uma longa massa de névoa translúcida. Uma massa homogênea, prolongada por quase quilômetro. O que seria? Fumaça de trem? Mas o motor era diesel. De um caminhão ao longo da rodovia? Fogo? Nenhum dos campos parecia queimado.
De repente o trem começou a diminuir a velocidade.
Paine estava alerta e sentiu o trem parando, parando. Os freios gritaram, os vagões se agitaram. E então silêncio.

Do outro lado do corredor um homem alto com um casaco leve, levantou-se e colocou o chapéu no alto da cabeça e se moveu em direção à porta.
Saltou do trem para o chão.
Paine o observou fascinado.
O homem caminhava através dos campos escuros, se movendo com propósito, indo em direção à neblina cinza.
O homem ergueu-se. Estava caminhando a pé e virou para a direita. E ergueu-se do chão novamente, agora a três metros do chão. Por um momento caminhou paralelamente, ainda se afastando do trem e então desapareceu na névoa.
Se foi.
Paine correu pelo corredor, mas o trem já começara a ganhar velocidade.
Encontrou o jovem condutor com a cara cheia de espinhas encostado à parede do carro.

— Escute! O que foi essa parada?

— Perdoe, senhor?

— Nós paramos! Onde diabos nós estávamos?

— Nós sempre paramos aí — disse alcançando seu casaco. Dele trouxe um punhado de folhas com horários. Arrumando-os, passou uma delas para Paine. — O B sempre para em Macon Heights. Você não sabia disso?

— Não!

— Está no horário. Sempre pára lá. Sempre. Sempre vai parar.

Era verdade. Macon Heights, entre Jacksonville e Lewisburg.
Exatamente a quarenta e oito quilometros da cidade.
A nuvem de névoa cinzenta. A vasta nuvem, ganhando forma rapidamente. Como se alguma coisa existisse dentro dela. Algo estava acontecendo.
Macon Heights!


Ele encontrou Laura em seu apartamento na manhã seguinte. Ela estava sentada na mesa de café com uma camisola rosa pálida e calças escuras. Diante dela havia uma pilha de notas, um lápis e uma borracha e um copo com leite maltado.

— Como se saiu? — Paine perguntou.

— Bem. Consegui a sua informação.

— E qual é a história?

— Havia bastante material — ela acariciou a pilha de notas. — Eu resumi as principais partes para você.

— Me dê a versão sumarizada.

— Há sete anos, em agosto, o conselho de supervisores do condado votou para que três novos loteamentos suburbanos fossem instalados fora da cidade. Macon Heights era um deles. Houve um grande debate. A maioria dos comerciantes da cidade se opôs às novas áreas. Iriam atrair muito negócio de varejo para longe daqui.

— Continue.

— Foi uma guerra. Finalmente dois foram aprovados. Waterville e Cedar Groves. Mas não Macon Heights.

— Entendi — murmurou Paine pensativamente.

— Macon Heights foi derrotado. Duas novas paradas em vez de três. As estações foram construídas imediatamente. Você sabe. Passamos por Waterville uma tarde. Bonito lugar.

— Mas não Macon Heights.

— Não. Macon Heights foi abandonada.

Paine esfregou a mandíbula. — Essa é a história então.

— Essa é a história. Você percebe que eu perdi meio dia de trabalho por isso? Você tem que me recompensar esta noite. Talvez eu deva arranjar outro namorado. Estou começando a achar que você não é uma boa aposta.

Paine assentiu distraidamente. — Sete anos atrás —  de repente um pensamento lhe ocorreu. — O voto! Como foi a votação de Macon Heights?

Laura consultou suas anotações.

— O projeto foi derrotado por um único voto.

— Um único voto. Sete anos atrás — Paine levantou-se saindo. — Obrigado querida. As coisas estão começando a fazer sentido. Muito mesmo!

Pegou um táxi na rua.
O táxi correu por toda a cidade em direção à estação de trem.
Do lado de fora sinais e ruas passavam. Pessoas e lojas e carros.
Sua intuição estava correta. Ele já ouvira o nome antes. Sete anos atrás. Um amplo debate no condado sobre projetos para novas cidades fora proposto. Dois aprovados. Um derrotado e esquecido.
Mas agora a cidade esquecida existia, sete anos depois. A cidade e uma fatia indeterminada de realidade junto com ela. Por quê? Alguma coisa mudou o passado? Ocorrera uma alteração no continuum passado?

Isso parecia ser a explicação. A votação foi bem próxima. Macon Heights quase tinha sido aprovada. Talvez algumas partes do passado fossem instáveis. Talvez esse período particular, sete anos depois, tenha sido crítico. Talvez nunca tenha se fixado.

Um pensamento estranho... o passado mudando, depois que já havia acontecido.
De repente o olhar de Paine se concentrou do outro lado da rua, numa loja a meio caminho do quarteirão, um estabelecimento pequeno e discreto.
Enquanto o táxi avançava Paine viu o letreiro.

BRADSHAW SEGUROS
[OU]
CARTÓRIO PÚBLICO

O local de trabalho de Critchet. Ele também veio e se foi? Ou sempre esteve lá?
Algo sobre isso o deixou desconfortável.

— Acelere — Paine ordenou ao motorista. — Vamos rápido!


Quando o trem desacelerou em Macon Heights, Paine pôs-se rapidamente de pé e foi até a porta. As rodas pararam e Paine saltou para o cascalho quente e olhou ao redor.
À luz do sol da tarde, Macon Heights brilhava, suas fileiras de casas se estendiam em todas as direções.

Viu a marquise do teatro no que devia ser o centro da cidade. Um teatro de verdade.
Paine seguiu em frente. Cruzou um estacionamento e saiu na rua principal.
Uma fila dupla de lojas à frente dele. Viu uma loja de ferragens, duas drogarias do tipo mercado e bar, uma loja de produtos baratos e uma moderna loja de departamentos.
Paine caminhava com as mãos nos bolsos, olhando para Macon Heights.
Um prédio de apartamentos fechado, alto e gordo. Um empregado estava lavando os degraus da frente.

Tudo parecia novo e moderno. As casas, as lojas, o pavimento e as calçadas.
Os parquímetros.
Um policial uniformizado de marrom estava aplicando uma multa.
Árvores em intervalos regulares, cortadas e podadas.
Passou por um grande supermercado.
Na frente havia uma banca de frutas, laranjas e uvas. Pegou uma uva e experimentou. A uva era real. Uma grande uva negra, doce e madura.
No entanto, vinte e quatro horas atrás, não havia nada alí além de um campo estéril.
Paine entrou em uma das lojas e folheou algumas revistas e depois sentou num dos tamboretes do balcão do bar e pediu uma xícara de café para a pequena garçonete de bochechas vermelhas.

— É uma cidade agradável — Paine disse quando ela trouxe o café.

— Sim, não é?

Paine hesitou. — Como... há quanto tempo você trabalha aqui?

— Três meses.

— Três meses? — Paine estudou a bela loira. — Você mora aqui em Macon Heights?

— Ah, sim.

— Há quanto tempo?

— Dois anos, eu acho — ela se afastou para atender um jovem soldado.

Paine bebeu o café e fumou olhando distraidamente as pessoas do lado de fora. Pessoas comuns. Homens e mulheres, principalmente mulheres. Algumas carregavam sacos de supermercado em pequenos carrinhos de mão de arame. Os carros passavam lentamente para lá e para cá.
Uma pequena cidade suburbana de dar sono.
Moderna, classe média alta. Uma cidade de qualidade.
Nenhuma pobreza.
Casas pequenas e atraentes e lojas com letreiros de néon.
Algumas crianças do ensino médio irromperam pela porta, rindo e tropeçando entre si. Duas moças com blusas brilhantes sentaram-se ao lado de Paine e pediram refrigerantes com limão. Conversavam alegremente.
Ele olhou para elas. Eram reais. Batom e unhas vermelhas. Camisas e mochilas de livros escolares. Centenas de crianças do ensino médio agarrando-se na loja.
Paine esfregou sua testa cansada.
Não parecia possível.
Talvez estivesse fora de si.
A cidade era real. Completamente real.
Deveria ter sempre existido. Uma cidade inteira não pode surgir do nada; de uma nuvem cinzenta.
Cinco mil pessoas, casas, ruas e lojas.
Lojas.
Bradshaw Seguros.
A percepção o arrepiou. De repente ele entendeu.
Estava se espalhando!
Além de Macon Heights até a cidade. A cidade também estava mudando.
Bradshaw Seguros. O local de negócios de Crichet.
Macon Heights não poderia existir sem deformar a cidade. Elas se interligaram.
As cinco mil pessoas vieram da cidade. Seus empregos. A vida deles. A cidade estava sendo envolvida. Mas quanto? O quanto mudou a cidade?
Paine jogou umas moedas no balcão e correu para fora, em direção à linha de trem. Tinha que voltar para a cidade.
Laura. Ela ainda estaria lá? A vida era segura?
O medo o agarrou.
Laura, todas suas posses, seus planos, esperanças e sonhos.
De repente Macon Heights não tinha importância.
Seu próprio mundo estava correndo perigo.
Apenas uma coisa importava agora, ele precisava se certificar de que sua própria vida ainda estava lá, intocada pelo círculo de mudanças que estava avançandoa partir de Macon Heights.


— Para onde, amigo? — O taxista perguntou quando Paine veio correndo para fora da estação de trem.

Paine deu-lhe o endereço do prédio de Laura.
O táxi avançou no trânsito lento.
Do lado de fora da janela passavam ruas e prédios de escritórios. Trabalhadores de colarinho branco já estavam começando a sair dos escritórios, engrossando as multidões nas calçadas e em cada esquina.
O quanto mudou? Concentrou-se na fileira de edifícios.
A grande loja de departamentos. Sempre esteve lá? A pequena loja ao lado dela. Ele nunca tinha percebido-a antes.

MORRIS MÓVEIS.

Ele não se lembrava. Mas como poderia ter certeza?
Sentiu-se confuso.
O táxi o deixou em frente ao prédio de Laura.
Ficou por um momento apenas olhando ao redor dele.
No final do quarteirão o dono da delicatessen italiana estava recolhendo o toldo.
Já tinha visto uma delicatessen lá antes? Não conseguiu se lembrar.
O que aconteceu com o grande mercado de carne do outro lado da rua? Não havia mais do que pequenas casas; casas antigas que pareciam ter estado lá por muito tempo. Algum mercado de carne já esteve ali? As casas pareciam sólidas.
No quarteirão seguinte a fachada de uma barbearia brilhava.
Sempre houve uma barbearia lá?
Talvez sempre estivera ali. Talvez, talvez não.

Tudo estava mudando.

Novas coisas surgiam, outras sumiam. O passado estava se alterando, e a memória estava ligada ao passado. Como ele poderia confiar em sua memória? Como ele poderia ter certeza?

O horror o abraçou.
Laura. Seu mundo.
Correu escada acima e abriu a porta do prédio. No segundo andar a porta do apartamento estava destrancada. Abriu e entrou com o coração na boca, rezando silenciosamente.
A sala de estar estava escura e silenciosa. As sombras pareciam meio puxadas. Ele olhou ao redor. O sofá azul claro, revistas espalhadas em seus braços. A mesa baixa de carvalho. O aparelho de televisão. Mas o lugar estava vazio.

— Laura! — Gritou ofegante.

Laura veio da cozinha, os olhos arregalados.

— Bob! O que você está fazendo em casa? Alguma coisa importante aconteceu?

Paine relaxou aliviado.

— Oi querida — e a beijou, segurando-a contra ele. Era quente e completamente real.

— Não, nada está errado. Tudo está bem.

— Você tem certeza?

— Tenho certeza.

Paine tirou o casaco bruscamente e o deixou cair sobre o encosto do sofá. Vagou pela sala, examinando as coisas, recuperando sua confiança.
Seu confortável sofá azul, os braços queimados por pontas de cigarro. Seu estrado esfarrapado. A mesa onde ele fazia seu trabalho à noite. Suas varas de pesca encostadas contra a parede junto da estante de livros.

O grande aparelho de televisão que ele havia comprado no mês passado, também estava seguro.
Tudo, tudo o que ele possuía, estava intocado.
Seguro.
Ileso.

— O jantar estará pronto em meia hora — murmurou Laura ansiosamente, soltando o avental. — Eu não esperava que você estivesse em casa tão cedo. Acabei de arrumar a cozinha e limpei o fogão. Alguns vendedores me deram uma amostra de um novo detergente.

— Tudo bem — ele examinou uma cópia de seu Renoir favorito na parede. — Não tenha pressa. É bom ver todas essas coisas novamente. Eu...

Do quarto surgiu o som de um choro. Laura virou-se rapidamente.

— Acho que acordamos Jimmy.

— Jimmy?

Laura riu.

— Querido, você não se lembra do seu próprio filho?

— É claro que lembro — murmurou Paine irritado e seguiu Laura até o quarto.

— Por um momento tudo me pareceu estranho — esfregou a testa. — Estranho e desconhecido. Meio fora de foco.

Eles ficaram junto ao berço, olhando para o bebê.

Jimmy olhou para sua mãe e seu pai.

— Deve ter sido o sol — disse Laura. — Está quente demais.

— Deve ter sido isso. Estou bem agora.

Paine se abaixou e cutucou o bebê. Depois passou o braço em volta de sua esposa, abraçando-a.

— Deve ter sido o sol — disse Paine e olhou nos olhos dela e sorriu.


FIM.

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