sexta-feira, 24 de novembro de 2017

PHILIP K. DICK'S ELECTRIC DREAMS


A notícia de que estava sendo produzida uma série para tv baseada na obra de Philip K. Dick, dividiu muitos de seus fãs entre alegria e medo.

Para um escritor com quarenta e tantos romances, mais de uma centena de contos curtos, não é exatamente uma novidade que a indústria do cinema e televisão se utilize de sua considerável produção (a família de PKD agradece).

Talvez somente o também americano Stephen King seja tão adaptado quanto.

(Consta que graças à anfetamina, PKD em sua máquina de escrever era capaz de produzir 68 páginas por dia. Stephen King no auge da produção fazia uma dúzia ao dia. Em 1974, imaginando-se parte de uma conspiração extraterrestre temporal, PKD escreveu um diário de OITO MIL páginas.)

Mas a comparação termina aí. PKD é dono de um estilo de escrita seco, pouco visual e não utiliza os 'caminhos fáceis' do terror de King.

A maior característica de PKD talvez seja sua imaginação desenfreada, a capacidade de sugerir ideias que nenhum outro escritor sequer rabiscou a superfície, temperada por sua doentia obsessão em questionar a compreensão da realidade, num viés quase paranoico. 

A série inglesa, produzida por americanos e britânicos, escolheu adaptar os primeiros contos e abusa de recursos dramáticos impossíveis de se encontrar na obra de PKD, como sentimentalismo, situações românticas ou interpretações poéticas e desfechos onde fica claro um moralismo desgastado (bem ao gosto de Hollywood), comprometendo negativamente a boa produção.

Alguns episódios como 'Crazy Diamond', simplesmente jogam fora a história, utilizando somente o germe da ideia ou o contexto, como no episódio 'Hood Maker'.

Enfim, não será ainda desta vez que farão jus à originalidade de um dos maiores escritores de FC que já existiu, mas vale a pena conhecer os contos originais.

Os contos utilizados pela série:

The Hood Maker - O Fabricante de Capuzes
Impossible Planet - O Planeta Impossível
The Commuter - O Passageiro
Crazy Diamond (Sales Pitch) - Conversa de Vendedor
Real Life (Exhibit Piece) - Peça de Exposição
Human Is - Humano é


(Tradução dos contos por Pedro Rangel e Carlos Abreu.)

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

A COISA-PAI - Philip K. Dick



A COISA-PAI


— O jantar está pronto — avisou a senhora Walton. — Vá buscar seu pai e diga-lhe para lavar as mãos. O mesmo se aplica a você, jovem. — Ela carregava uma caçarola fumegante para a mesa já pronta. — Vai achá-lo na garagem.

Charles tinha só oito anos de idade, e o problema que o aturdia teria confundido até um sábio como Hillel.

— Eu... — começou a dizer.

— O que há de errado? — June Walton captou o tom desconfortável na voz de seu filho e seu peito de mãe vibrou com alarme. — O Ted não está na garagem? Pelo amor de Deus, ele estava afiando as tesouras de podar. Ele não iria nos Andersons... o jantar está praticamente na mesa.

— Ele está na garagem — disse Charles. — Mas ele está... falando consigo mesmo.

— Falando consigo mesmo! — A senhora Walton tirou o avental de plástico brilhante e o pendurou sobre a maçaneta da porta. — O Ted nunca fala consigo mesmo. Vá dizer-lhe para vir aqui.

Ela despejou café preto fervendo nas pequenas xícaras de porcelana azul e branca e começou a servir o creme de milho.

— O que há de errado com você, Charlie? Vá já!

— Não sei com qual deles falar — Charles explodiu em desespero. — Ambos se parecem!

Os dedos de June Walton escorregaram da panela de alumínio. Por um momento, o milho cremoso quase entornou perigosamente.

— Jovem... — ela começava a falar com raiva, quando Ted Walton entrou na cozinha, inalando e esfregando as mãos.

— Ahhh— disse alegremente. — Ensopado de cordeiro!

— Guisado de carne — corrigiu June. — Ted, o que você estava fazendo lá fora?

Ted jogou-se em seu lugar à mesa e desdobrou o guardanapo.

— Afiei as tesouras. Lubrificadas e afiadas. Melhor não tocá-las... elas podem cortar sua mão fora.

Ted era um homem bonito em seus trinta e poucos anos, cabelo loiro, braços fortes, mãos firmes, rosto quadrado e olhos castanhos.

— Esse guisado parece bom. Foi um dia difícil no escritório... sexta-feira, você sabe como é. As coisas se acumulam e nós temos que dar conta. Al McKinley diz que o departamento poderia lidar com mais coisas se organizássemos o horário de almoço, vai nos realocar para que alguém esteja lá o tempo todo.

Ele acenou para Charles.

— Sente-se, vamos!

A senhora Walton serviu as ervilhas.

— Ted — ela disse enquanto lentamente se sentava — tem algo te perturbando?

— Perturbando? Não, nada incomum. Apenas as coisas de sempre. Por quê?

Com dificuldade June Walton olhou para o filho. Charles estava sentando-se em seu lugar, rosto sem expressão e branco como giz.
Ele não se moveu, não desdobrou o guardanapo nem tocou seu leite.
Havia tensão no ar e ela podia sentir isso.
Charles afastou sua cadeira do pai dele, tão longe quanto possível.
Seus lábios estavam se movendo, mas ela não conseguia entender.

— O que está dizendo? — Ela exigiu saber inclinando-se para ele.

— O outro — Charles estava murmurando em voz baixa. — O outro pegou ele.

— O que você quer dizer querido? — June Walton perguntou em voz alta. — Que outro?

Ted empurrou a cadeira para trás. Uma expressão estranha apareceu em seu rosto. Desapareceu imediatamente, mas em um breve instante, o rosto de Ted Walton perdeu toda a familiaridade.Algo alienígena e frio, uma massa se torcendo. Os olhos borraram e recuaram, como um brilho sobre eles.
A aparência normal de um marido cansado e de meia idade tinha desaparecido.
E então estava de volta... ou quase.
Ted sorriu e começou a atacar o guisado e as ervilhas e o creme de milho. Riu, agitou seu café e bebeu.

Mas algo estava errado.

— O outro — murmurou Charles pálido, as mãos começando a tremer. De repente ele saltou da cadeira e se afastou gritando.— Vá embora! Saia daqui!

Ted explodiu ameaçador.

— O que deu em você? — Apontou severamente para a cadeira do menino. — Sente-se e coma seu jantar, jovem. Sua mãe não cozinhou por nada.

Charles virou-se e correu para o quarto no andar de cima.
June Walton ofegou consternada.

— O que...

Ted continuou comendo. Seu rosto era sombrio, seus olhos pesados ​​e escuros.

— Esse garoto — murmurou — vai ter que aprender uma lição. Talvez ele e eu precisemos ter uma conversinha em particular.


Charles se agachou no corredor do segundo andar ouvindo.
A Coisa-Pai subia as escadas, cada vez mais perto e mais perto.

— Charles! — Gritou ele com raiva. — Você está ai em cima?

Ele não respondeu. Voltou para o quarto e fechou a porta. Seu coração batia forte.

O pai alcançara a porta, e em um momento entraria em seu quarto.
Charlie, aterrorizado,  foi até a janela e destrancou-a. Saiu para o telhado.
Com um grunhido pulou no jardim de flores próximo da porta da frente, cambaleou e ofegou, então correu da luz que escorria pela janela, um pedaço amarelo na escuridão noturna. Encontrou a garagem, um quadrado preto contra o horizonte.

Respirando rápido, procurou no bolso pela lanterna, deslizou com cautela a porta e entrou. A garagem estava vazia. O carro estacionado. À esquerda ficava a bancada de trabalho de seu pai. Martelos e serras na parede. Nos fundos o cortador de grama,
ancinho, pá e enxada. Um tambor de querosene.
Placas de carros pregadas em todos os lugares.
O chão era de concreto e sujo, uma grande mancha de óleo no centro.
Junto da entrada havia um grande barril de lixo. Dentro do barril pilhas de jornais e revistas mofadas e úmidas. Um cheiro de bolor e velharias subiu quando Charles começou a movê-las.
Aranhas caíram no cimento, as esmagou com o pé e continuou cavando.
A visão o fez gritar.

Largou a lanterna e afastou-se.
A garagem mergulhou na penumbra instantânea.
Ajoelhou-se e por um momento indefinido, tentou na escuridão encontrar a lanterna.
Quando conseguiu girou o feixe para dentro do barril, para o buraco que ficara após remexer as revistas.Entre revistas antigas e o papelão rasgado, os restos de cortinas e lixo tirado do sótão que sua mãe havia jogado no barril com a ideia de queimar um dia.
Aquilo no fundo do barril ainda parecia um pouco de seu pai, o suficiente para ele reconhecê-lo.  A visão o deixou doente.
Se segurou no barril e fechou os olhos até que finalmente conseguisse olhar novamente. No barril estava os restos de seu pai, o verdadeiro. Pedaços que a Coisa-Pai descartara. Pedaços sem uso.
Ele pegou o ancinho e revirou os restos. Estavam secos. Rachavam com o toque do ancinho, como uma pele de cobra descartada, escamosa e quebradiça ao toque. Uma pele vazia. O interior já havia desaparecido. A parte importante. Isso fora tudo o que sobrara dele, apenas pele quebradiça no fundo do barril de lixo.Tinha comido o resto. Pegou seu interior... e o lugar de seu pai.
Um som.
Deixou cair o ancinho e correu para a porta.
A Coisa-Pai estava vindo na direção da garagem. Os sapatos esmagavam o cascalho.

— Charles! — Chamou-se com raiva. -Você está ai? Espere até eu colocar minhas mãos em você, jovem!

A forma nervosa de sua mãe estava esboçada na entrada brilhante da casa.

— Ted, não o machuque! Ele está aborrecido por alguma coisa...

— Não vou machucá-lo — gritou o pai de volta. — Eu vou ter uma pequena conversa com ele. Ele precisa aprender boas maneiras. Deixando a mesa daquele jeito...

Charles saiu da garagem. A Coisa-Pai o viu e avançou rápido na direção dele.

— Venha aqui! — Gritou.

Charles correu. Conhecia o terreno como ninguém. Alcançou a cerca, subiu, saltou para o quintal dos Andersons, passou pelo varal, descendo pelo caminho do lado da casa e para a Rua Maple.
Ficou um tempo ouvindo agachado e sem respirar.
O pai não vinha mais atrás dele. Tinha voltado pra casa.
Respirou profundamente estremecido.
Tinha que continuar em movimento. Mais cedo ou mais tarde, ele o encontraria.
Olhou para a direita e para a esquerda, certificou-se de que não estava sendo observado, e então começou a correr.




— O que você quer? — Tony Peretti perguntou rude.

Tony tinha quatorze anos. Estava sentado na mesa de carvalho na sala de jantar dos Peretti. Livros e lápis espalhados por ela, metade de um sanduíche de manteiga de amendoim e uma Coca ao lado dele.

— Você é o Walton, não?

Tony Peretti trabalhava encaixotando fogões e refrigeradores após a escola, na loja dos Johnsons no centro da cidade. Ele era grande e mal encarado. Cabelo preto, pele verde-oliva, dentes brancos.
Algumas vezes ele tinha espancado Charles, havia espancado cada criança do bairro.
Charles disse: — Olhe, Peretti. Preciso que me faça um favor.

— O que você quer? — Peretti estava irritado. — Quer um hematoma?

Olhando para seus punhos fechados, Charles explicou o que acontecera com palavras murmuradas. Quando terminou Peretti soltou um assobio baixo.

— Tá brincando...

— É verdade — assentiu. — Vou te mostrar. Venha e eu vou te mostrar.

Peretti levantou-se devagar.

— Sim. Eu quero ver!

Ele pegou sua arma de ar comprimido no quarto e os dois caminharam silenciosamente pela rua escura em direção à casa de Charles. Nenhum deles abriu a boca. Peretti sério e solene. Charles ainda atordoado com a mente vazia.
Invadiram a entrada dos Andersons, atravessaram o quintal, subiram a cerca e se abaixaram cautelosamente no quintal de Charles.
Não havia movimento e o pátio estava em silêncio. A porta da frente da casa estava fechada. Olharam através da janela da sala de estar.
Sentada no sofá estava a senhora Walton, costurando com um olhar triste e perturbado em seu rosto largo. Trabalhava sem vontade, sem interesse.
Em frente dela a Coisa-Pai na poltrona do seu pai, calçara os chinelos e lia o jornal.
A TV estava ligada no canto. Uma lata de cerveja descansava no braço da poltrona.
A Coisa-Pai agia exatamente como seu próprio pai. Tinha aprendido.

— Parece exatamente com ele — Peretti sussurrou com desconfiança. — Você não está me sacaneando, está?

Charles levou-o para a garagem e mostrou-lhe o barril do lixo.
Peretti mergulhou seus longos e bronzeados braços para baixo dele e cuidadosamente puxou os restos secos e descamados. Eles se espalharam, desdobraram, até que toda a figura do pai de Charlie foi delineada. Peretti colocou os restos no chão e juntou as peças no lugar certo. Os restos eram quase transparentes, de um amarelo âmbar como papel seco e totalmente sem vida.

— Isso é tudo que restou — disse Charles. Lágrimas brotaram em seus olhos. — A coisa ficou com o interior.

Peretti estava pálido e tremendo.

— Isso é incrível — murmurou. — Você disse que viu os dois juntos?

— Conversando. Eles pareciam exatamente iguais. Eu fugi.

Charles enxugou as lágrimas não conseguindo segurá-las por mais tempo.

— Ele o comeu. Então veio pra casa. Fez como se fosse ele, mas não é. Ele o matou e comeu seu interior.

Por um momento Peretti ficou em silêncio.

— Eu vou te contar uma coisa — disse de repente. — Eu já ouvi falar sobre esse tipo de coisa. Você tem que usar sua cabeça e não se assustar. Você não está com medo, não é?

— Não — Charles conseguiu murmurar.

— A primeira coisa que temos que fazer é descobrir como matá-lo — ele chacoalhou a arma de ar comprimido. — Não sei se isso vai funcionar. Deve ter sido muito dificil dominar seu pai. Ele era um homem grande — Peretti considerou. — Vamos sair daqui. Ele pode voltar. Dizem que é o que um assassino faz.

Deixaram a garagem. Peretti se agachou e olhou pela janela de novo.
A senhora Walton estava de pé, falava com energia. Os sons vinham filtrados.
A Coisa-Pai largou seu jornal. Estavam discutindo.

— Pelo amor de Deus! — A Coisa-Pai gritou. — Não faça nada de estúpido!

— Algo está errado — a senhora Walton gemeu. — Algo terrível. Me deixe ligar para o hospital.

— Não vai ligar para ninguém. Ele está bem. Provavelmente está brincando na rua.

— Ele nunca saiu tão tarde. Nunca desobedeceu. Estava terrivelmente chateado... e  com medo de você! Eu não o culpo. O que há de errado com você? Você está tão estranho — saiu da sala e foi para o corredor de saída. — Vou ver nos vizinhos.

A Coisa-Pai observou-a sair e então aconteceu uma coisa terrível.
Charles ofegou e até Peretti resmungou em voz baixa.

— Olhe! O que...

— Deus... — deixou escapar Peretti com olhos arregalados.

Assim que a senhora Walton se foi, a Coisa-Pai caiu na cadeira, imóvel, com a boca aberta e os olhos vazios. Sua cabeça caiu para frente, como uma boneca de pano.
Peretti se afastou da janela.

— É isso — ele sussurrou.

— O que? — Charles ficou chocado e perplexo. — Parece que alguém o desligou.

— Exatamente — Peretti assentiu devagar, sombrio e abalado. — Ele é controlado de fora.

O horror tomou conta de Charles.

— Você quer dizer, algo fora do nosso mundo?

Peretti balançou a cabeça com desgosto.

— Fora de casa! No quintal. Tem ideia de como podemos achar esta coisa?

— Não, mas eu conheço alguém que é bom em encontrar coisas. Bobby Daniels.

— O negrinho? Ele é bom?

— O melhor.

— Tudo bem. Vamos buscá-lo. Temos que encontrar o que quer que esteja lá fora.


— Deve estar perto da garagem — Peretti disse ao pequeno menino negro e de rosto fino que se agachava ao lado deles na escuridão. — Quando ele atacou o pai de Charlie ele estava na garagem. Então, vamos olhar por lá.

— Na garagem? — Perguntou Daniels.

— Perto dela. Walton já olhou lá dentro. Olhe ao redor.

Havia uma pequena cama de flores crescendo junto da garagem e um grande emaranhado de bambu e lixo entre a garagem e a parte de trás da casa.
A lua havia surgido derramando uma luz gelada sobre tudo, filtrada pelas nuvens.

— Se demorar — Daniels disse — terei que voltar pra casa. Não posso ficar acordado até muito tarde.

Ele não era mais velho do que Charles. Talvez nove.

— Tudo bem — concordou Peretti. — Então comece a procurar!

Os três se espalharam e começaram a olhar o chão com cuidado. Daniels trabalhava com uma velocidade incrível, seu corpo pequeno e magro era um borrão em movimento enquanto rastejava entre as flores, separava os talos das plantas, passava as mãos experientes sobre folhas e caules e em emaranhados de ervas daninhas. Nenhum centímetro passava sem ser verificado.
Peretti parou a procura.

— Vou ficar de guarda. A coisa pode vir e tentar nos pegar.

Colocou-se com sua arma atrás enquanto Charles e Bobby Daniels procuravam.
Charles trabalhava lentamente, estava cansado e seu corpo entorpecido. Parecia impossível o que acontecera com seu próprio pai, seu verdadeiro pai. Mas o terror o estimulou. O que aconteceria com sua mãe ou com ele? Ou todos eles? Talvez o mundo inteiro!

— Encontrei! — Daniels alertou com sua voz fina e alta. — Venham aqui, rápido!

Peretti aproximou-se cautelosamente. Charles virou a luz amarela de sua lanterna para onde Daniels estava.

O menino negro levantara uma parte da laje de concreto. No solo úmido e apodrecido, a luz brilhou em um corpo metálico, uma coisa fina e articulada com infinitas pernas torcidas e estava cavando freneticamente. Como uma formiga de um vermelho-marrom, que se mexia rapidamente diante de seus olhos. Fileiras de pernas cavucavam o solo rapidamente por baixo dela. Sua cauda se torceu furiosamente enquanto lutava para entrar no túnel que fazia.
Peretti correu para a garagem e veio com o ancinho e com ele segurou a cauda do inseto contra o chão.

— Rápido! Atire nele!

Daniels pegou a arma, apontou e atirou. O tiro rasgou a cauda do bicho, que se contorcia freneticamente, a cauda arrastada inutilmente e algumas pernas partidas. Parecia uma centopeia de uns trinta centímetros e lutava desesperadamente para escapar.

— Atire novamente! — Ordenou Peretti.

Daniels tentou. O inseto deslizou para o lado e sibilou. Sua cabeça ia para frente e para trás, retorcia-se e atacava o ancinho. Os olhos pequenos brilhavam de ódio.
Então, abruptamente, sem aviso prévio, iniciou uma frenética convulsão que os fez recuar com medo.
Algo veio através do cérebro de Charles. Um zumbido, metálico e áspero, um bilhão de fios de metal dançando e vibrando ao mesmo tempo.
Foi jogado violentamente pela força; o choque fez com que ele ficasse surdo e confuso.
Quando ficou de pé, viu que o mesmo havia acontecido com os outros.

— Se não podemos matá-lo com a arma — Peretti ofegou — podemos afogá-lo. Ou queimá-lo. Ou enfiar um alfinete em seu cérebro — ainda lutava para segurar o ancinho, para manter o inseto preso.

— Eu tenho uma jarra de formaldeído — disse Daniels sem conseguir recarregar a arma. — Como isso funciona? Não consigo...

Charles tirou a arma dele dizendo: — Deixe comifo! Vou matá-lo — e fez a mira.

O inseto atacou de novo. Seu campo de força martelou em seus ouvidos.

— Tudo bem, Charles — disse a Coisa-Pai.

Dedos poderosos agarraram-no, uma pressão paralisante em torno de seus pulsos.
A arma caiu ao chão enquanto lutava.
A Coisa-Pai o empurrou contra Peretti. O menino saltou e o inseto, livre do ancinho, deslizou triunfante para dentro do túnel.

— Você vai levar uma surra, Charles. O que há com você? Sua pobre mãe está morrendo de preocupação! — A voz calma e sem emoção era uma paródia terrível de seu pai, murmurando perto de sua orelha enquanto o empurrava implacavelmente para a garagem. Sua fria respiração soprava em seu rosto, um odor gelado e doce, como solo em decomposição. Sua força era imensa, não havia nada que ele pudesse fazer.

— Não lute comigo — disse a coisa calmamente. — Vamos até a garagem. É para o seu próprio bem, Charles.

— Você o encontrou? — Ouviu sua mãe ansiosa na porta dos fundos.

— Sim, eu o encontrei.

— O que você vai fazer?

— Vou lhe dar umas palmadas — a coisa empurrou a porta da garagem.

Na meia-luz, um sorriso fraco, sem humor e sem emoção, tocou seus lábios.

— Volte para dentro, June. Eu cuidarei disso. É minha responsabilidade. Você nunca soube como castigá-lo.

A porta dos fundos fechou relutantemente.
Recuperado, Peretti arrastou-se até sua arma.
A Coisa-Pai congelou vendo-o se levantar.

— Vão para casa, meninos...

Peretti ficou indeciso, agarrando a arma.

— Vá! — Repetiu a coisa. — Pegue seu brinquedo e vá embora!

Moveu-se lentamente em direção a Peretti, agarrando Charles com uma mão e alcançando Peretti com a outra.

— Armas de ar comprimido são proibidas na cidade, filho. Seu pai sabe que você tem uma? É lei.

Acho melhor você dar ela para mm, antes que...
Peretti atirou bem em seu olho.
A Coisa-Pai gritou e agarrou o olho ferido, largando Peretti, que tentava recarregar a arma.
A Coisa-Pai pulou sobre ele e seus poderosos dedos arrancaram a arma de suas mãos. Silenciosamente a coisa esmagou-a contra a parede da casa.
Charles saltou livre, entorpecido. Onde poderia se esconder?
A coisa estava entre ele e a casa e já estava vindo pegá-lo.
Se houvesse algum lugar onde pudesse se esconder...
O bambuzal!
Correu para lá. Os talos eram enormes e velhos, fechando-se ao redor dele com um leve sussurro.
A Coisa-Pai estava mexendo no bolso e acendeu um fósforo.

— Charles — disse. — Eu sei que você está ai em algum lugar. Não adianta se esconder. Só está dificultando as coisas.

Com seu coração batendo forte, Charles se agachou. Sujeira e detritos, ervas daninhas, lixo, papéis, caixas, roupas velhas, pranchas, latas e garrafas.
Aranhas e salamandras se contorciam ao redor dele.
O bambu balançava com o vento noturno.
Insetos e sujeira e algo mais.
Uma forma, uma forma silenciosa que crescia em meio à sujeira, como um cogumelo noturno. Uma coluna branca, uma massa que reluzia úmida à luz da lua, coberta de teias, um casulo mofado. Tinha formas vagas de braços e pernas. Uma cabeça indistinta. Ainda assim, não totalmente formada, mas ele podia dizer o que era.

Uma Coisa-Mãe, crescendo na imundície e na umidade, entre a garagem e a casa, atrás do bambu alto. Estava quase completa. Mais alguns poucos dias e chegaria à maturidade. Ainda era uma larva, branca e macia. O sol endurecia sua concha. Tornava-a forte.
E um dia sua mãe entraria na garagem e...
Atrás da Coisa-Mãe havia outra larva branca pulposa, recentemente colocada pelo inseto. Bem pequena, apenas começando sua existência.
Pode ver onde a Coisa-Pai tinha crescido. Ali. E na garagem ao lado encontrou seu pai.
Charles começou a mover-se entre a podridão, a imundície, o lixo e as larvas.
Estendeu a mão para segurar a cerca e então a recolheu.
Outra larva. Não havia visto de início.
Não era branca. Já estava escura. A suavidade da pulpa e a umidade desapareceram. Estava pronta. Ela se moveu um pouco, moveu o braço de leve.
Uma Coisa-Charles.

O bambu se separou e a mão do pai apertou firmemente o pulso do menino.

— Você fica aqui — disse. — É exatamente o lugar para você. Não se mova!

Com a outra mão a coisa rasgou os restos do casulo da Coisa-Charles.

— Eu vou ajudar... ainda está um pouco fraca.

O último pedaço cinza úmido foi retirado e a Coisa-Charles cambaleou para fora.
A Coisa-Pai abriu um caminho até Charles.

— Por aqui, venha — gritou a Coisa-Pai — eu vou segurá-lo para você! Quando se alimentar você ficará mais forte.

A boca da Coisa-Charles abria e fechava e avançava avidamente para Charles.
O menino lutou de forma selvagem, mas a imensa mão o imobilizava.

— Pare com isso, jovem! Será muito mais fácil para você se...

Então gritou e girou em convulsões, soltando Charles, e cambaleou de costas. Seu corpo se contraia violentamente, bateu contra a garagem e rolou em uma dança de agonia. Choramingou, gemeu, tentou rastejar para longe e gradualmente ficou quieto.

A Coisa-Charles permanecia silenciosa entre os detritos, o bambu e o lixo, com um rosto vazio e em branco. Por fim cessou de se mexer.
Agora havia apenas o fraco sussurro do bambu no vento noturno.
Charles levantou-se desajeitadamente.
Na entrada de cimento, Peretti e Daniels se aproximaram cautelosos.

— Não se aproxime — Daniels ordenou bruscamente. — Ainda não está morto!

— O que você fez? — Charles perguntou.

Daniels soltou o tambor do querosene com um suspiro de alívio.

— Encontramos isso na garagem. Sempre usamos querosene para matar mosquitos na Virgínia.

— Daniels derramou o querosene no túnel do inseto — explicou Peretti. — Foi ideia dele.

Daniels chutou o corpo contorcido da coisa.

— Está morto agora. Morreu assim que o inseto morreu.

— Acho que o outro também morrerá — disse Peretti.

Ele afastou o bambu para examinar as larvas que cresceiam ali entre os detritos. A Coisa-Charles não se moveu quando Peretti bateu nele com uma vara.

— Morto.

— Melhor nos certificarmos — disse Daniels sombrio pegando o tambor pesado de querosene e o arrastando até o bambuzal.

— A coisa deixou cair alguns fósforos na entrada de automóveis. Você os pega, Peretti.
Eles se olharam.

— Claro — Peretti disse suavemente.

— É melhor ligar a mangueira d’água— disse Charles. — Para garantir que o fogo não se espalhe.

— Vamos continuar — disse Peretti com impaciência já saindo.

Charles o seguiu e eles começaram a procurar os fósforos na escuridão iluminada pela lua.

FIM.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

FORSTER, VOCÊ ESTÁ MORTO - Philip K. Dick


 
FOSTER, VOCÊ ESTÁ MORTO
(Foster, you’re dead, publicado originalmente na revista Star Science Fiction Stories No.3. em 1955)




A escola era uma agonia, como sempre. Só que naquele dia era ainda pior.
Mike Foster terminou de tecer suas duas cestas e sentou-se rígido, enquanto ao seu redor as outras crianças trabalhavam.
Fora do prédio de concreto e aço, o sol da tarde da tarde brilhava. As colinas verdes e marrons no ar fresco do outono. No céu alguns NATS circularam preguiçosamente acima da cidade.

A forma vasta e sinistra da Sra. Cummings, a professora, aproximou-se silenciosamente da sua escrivaninha.

— Foster, você já terminou?

— Sim, senhora — ele respondeu empurrando as cestas para cima do tampo. — Posso sair agora?
A Sra. Cummings examinou suas cestas de forma crítica.

— E a armadilha?

Ele mostrou sua intrincada armadilha para pequenos animais.

— Tudo terminado Sra. Cummings. E minha faca, também está — disse mostrando a ela a lâmina afiada de metal brilhante que ele tinha feito a partir de um tambor de gasolina descartado.
Ela pegou a faca e correu seu dedo experiente ao longo da lâmina.

— Não é forte o suficiente — afirmou — você afiou demais. Desça ao laboratório de armas principal e examine as facas que eles têm por lá. Em seguida, aperfeiçoe a sua fazendo uma lâmina mais grossa.

— Sra. Cummings, eu poderia consertar isso amanhã? Posso sair agora, por favor?

Todos na sala de aula estavam assistindo com interesse. Mike Foster corou; ele odiava ser observado e chamar a atenção, mas ele precisava sair. Não podia ficar na escola nem um minuto mais.
Inexorável, a Sra. Cummings gritou:

— Amanhã é dia de cavarmos. Você não terá tempo para trabalhar na sua faca.

— Eu terei, depois de cavar.

— Não, você não é muito bom em cavar.

A velha estava medindo os braços e as pernas do menino.

— Acho melhor você terminar sua faca hoje. E amanhã passar o dia no campo.

— Mas qual a utilidade de cavar?  — Mike Foster exigiu saber em desespero.

— Todo mundo tem que saber cavar — A Sra. Cummings respondeu pacientemente.

As crianças riam de todos os lados; ela os fez calar-se com um olhar hostil.

— Vocês todos sabem a importância de cavar. Quando a guerra começar, toda a superfície estará cheia de escombros. Se esperamos sobreviver, teremos que cavar, não é? Algum de vocês já assistiu a um esquilo cavando as raízes das plantas? Ele sabe que encontrará algo valioso embaixo da superfície. Todos nós seremos pequenos esquilos marrons. Teremos que aprender a cavar nos escombros e encontrar coisas boas, porque é lá que elas estarão.

Mike Foster sentou-se segurando sua faca, enquanto Mrs. Cummings se afastava. Algumas crianças sorriram com desprezo para ele, mas nada penetrou sua neblina de frustração. Cavar não adiantava nada. Quando as bombas caissem, ele seria instantaneamente morto.
Todas as vacinas em seus braços, coxas e nádegas, não serviriam de nada. Gastara seu dinheiro à toa, Mike Foster não estaria vivo para pegar nenhuma das pragas bacterianas. A menos que...
Ele se levantou e seguiu até a mesa da professora.

— Por favor, tenho que sair. Preciso fazer algo.

Os lábios cansados ​​da Sra. Cumming se torceram com raiva, mas o olhar do menino a trouxe de volta.

— O que foi? Está se sentindo mal?

O menino ficou parado, incapaz de responder. A classe murmurava e ria até que a Sra. Cummings bateu com raiva na mesa com um apagador.

— Fiquem quietos! Michael, se você não está sentindo-se bem, desça as escadas até a clínica psiquiátrica. Não adianta tentar trabalhar quando suas reações estão conflitantes. Miss Groves ficará feliz em tratar você.

— Não é isso — disse Foster.

— Então, o que é?

A turma se agitou. Vozes responderam por Foster.

— O pai dele é um anti-P — explicaram. — Eles não têm abrigo e ele não está registrado na Defesa Civil. Seu pai nem contribui para o NATS.

A Sra. Cummings olhou com espanto para o menino mudo.

— Você não tem abrigo contra bombas?

Ele balançou sua cabeça. Um sentimento estranho a acertou.

— Mas... — ela começou a dizer que ele iria morrer, porém mudou para... — Mas para onde você vai?.

— Lugar nenhum — as vozes responderam por ele. — Todo mundo vai para seus abrigos e ele estará aqui. Ele nem tem permissão para usar o abrigo da escola.

A Sra. Cummings estava chocada. Na sua cabeça, cada criança na escola tinha uma licença para as sofisticadas câmaras subterrâneas do prédio. Mas é claro que não. Somente crianças cujos pais faziam parte do CD, que contribuíram para armar a comunidade. E se o pai de Foster fosse um anti-P...

— Ele tem medo de ficar aqui — as vozes disseram. — Ele tem medo que aconteça enquanto está sentado aqui, e todos os outros estarão seguros no abrigo.


Mike vagou sem pressa, com as mãos enfiadas nos bolsos, chutando pedras na calçada.
O sol estava se pondo.
Os foguetes de comutação de nariz arrebitado descarregavam pessoas cansadas, mas felizes por estarem longe da fábrica, duzentos quilômetros a oeste.
Nas colinas distantes algo brilhou, uma torre de radar girando silenciosamente na escuridão noturna. Os NATS circundantes aumentaram em número.
As horas do crepúsculo eram as mais perigosas; Observadores visuais não conseguiam detectar mísseis de alta velocidade que se aproximassem voando próximo ao solo. Assumindo que os mísseis viriam.

Uma excitada máquina de notícias mecânica gritou para ele quando passou, sobre a guerra, a morte e incríveis novas armas desenvolvidas no exterior.
Ele curvou os ombros e continuou além das pequenas conchas de concreto que serviam de casas, cada uma exatamente igual, robustos cofres reforçados.
Em frente dele, brilhantes anuncios de néon na escuridão; o distrito de negócios, vivo com o trânsito e o movimento de pessoas.
A meio quarteirão do brilhante conjunto de néon, ele parou.
À sua direita estava um abrigo público, uma entrada escura de um túnel com uma catraca mecânica brilhando.
Entrada cinquenta centavos.

Se ele estivesse na rua e tivesse cinquenta centavos, estaria tudo bem com ele.
Havia se afundado muitas vezes em abrigos públicos, durante treinamentos de bombardeios. Mas outras vezes, horríveis, tempos de pesadelo que nunca sairam de sua mente, ele não tinha cinquenta centavos. Permaneceu mudo e aterrorizado, enquanto as pessoas empurravam-no passando por ele, com os gritos estridentes das sirenes soando por toda parte.
Continuou até chegar à mais brilhante mancha de luz, ao grande e brilhante Salão de Exposição da General Electronics, de dois quarterões de comprimento, iluminado por todos os lados.
Parou e examinou pela milionésima vez a exibição hipnotizante que sempre o atraiu quando ele estava por perto.

No centro havia um único objeto, uma gota elaborada de máquinas e suportes, vigas e paredes e fechaduras seladas.
Todos os holofotes estavam sobre ele.
Grandes cartazes anunciavam centenas de vantagens,... como se houvesse qualquer dúvida.

O NOVO ABRIGO SUBTERRÂNEO 1972 A PROVA DE BOMBAS
SELADO CONTRA RADIAÇÃO
ESTÁ AQUI!
VEJA ESTAS CARACTERÍSTICAS:
* elevação automática  — à prova de esmagamento, bloqueio automático, auto-alimentado e bloqueio e-z
* casco de camada tripla garantido para suportar 5g de pressão sem encurvamento
* Sistema de aquecimento e refrigeração auto-alimentado — rede de purificação de ar de manutenção automática
* Três estágios de descontaminação para alimentos e água
* quatro estágios higiênicos para exposição
* processamento completo de antibióticos
* plano de pagamento e-z

Ele observou o abrigo por muito tempo.
Era basicamente um grande tanque com um tubo em uma extremidade, qual um pescoço. Esse era o tubo de descida e no lado oposto, uma escotilha de emergência.
Era completamente autônomo, um mundo em miniatura que fornecia sua própria luz, calor, ar, água, remédios e comida quase inesgotável.
Quando estava completamente abastecido, teria fitas de áudio e vídeo, entretenimento, camas, cadeiras, telas, tudo o que havia em uma boa casa acima da superfície.
Era, na verdade, uma casa abaixo do solo.
E não faltava nada.
Uma família estaria segura, mesmo confortável, durante um ataque de bomba H e ataques bacterianos mais sérios.
Custava vinte mil dólares.
Enquanto ele olhava silenciosamente, um dos vendedores veio da cafeteria.

— Olá, filho — disse automaticamente quando passou por Mike Foster. — Não é nada mal, não é?

— Posso entrar? — Foster perguntou rapidamente. -Posso?

O vendedor parou reconhecendo o menino.

— Você é aquele garoto — disse devagar — aquele maldito garoto que sempre nos incomoda.

— Eu gostaria de entrar nele apenas por alguns minutos. Não vou mexer em nada... eu
prometo. Não vou tocar em nada.

O vendedor era jovem e loiro, um homem bem atraente, com vinte e poucos anos. Ele
hesitou, suas reações se dividiram. O garoto era uma praga. Mas ele tinha uma família, e isso significava uma razoável perspectiva. Os negócios iam mal, era final de setembro e a queda sazonal... Não havia lucro em expulsar o menino mas por outro lado, era ruim para os negócios encorajar aquelas pestes a ficar ao redor da mercadoria. Desperdiçavam seu tempo, quebravam coisas; roubavam quando ninguém estava olhando.

— Sem chance — disse o vendedor. — Olhe, mande o seu velho vir aqui. Ele sabe o que temos aqui?

— Sim — disse Mike Foster.

— E o que o está segurando? — O vendedor acenou amplamente para a grande exibição brilhante. — Vamos lhe pagar um bom preço pelo seu antigo, considerando a depreciação e a obsolescência. Qual modelo ele tem?

— Nós não temos nenhum.

O vendedor piscou: — Como assim?

— Meu pai diz que é um desperdício de dinheiro. Ele diz que eles estão tentando assustar as pessoas para comprar coisas de que não precisam. Ele disse...

— Seu pai é um anti-P?

— Sim — Mike Foster respondeu infeliz.

O vendedor suspirou.

— Tudo bem, criança. Desculpe, não podemos fazer negócios. Não é sua culpa — então desabafou — que diabos tem de errado com ele? Ele não apoia o NATS?

— Não.

O vendedor praguejou em voz baixa. Um aproveitador, seguro porque o resto da comunidade estava reunindo trinta por cento de sua renda para manter um sistema de defesa constantemente funcionando. Sempre havia alguns deles em cada cidade.

— Como sua mãe se sente à respeito? — O vendedor quis saber. — Ela o apoia?

— Ela diz que... — Mike Foster mudou o rumo da conversa. — Eu não poderia entrar nele por um momento? Não vou mexer em nada. Só uma vez!

— Como venderemos esse se deixarmos as crianças entrar nele? Não se trata de um modelo de demonstração, nós ficamos com eles muitas vezes.

A curiosidade do vendedor fora despertada.

— Como um homem consegue ser anti-P? Ele sempre se sentiu assim, ou ficou assim por algum motivo?

— Ele diz que vendem para as pessoas muitos carros e máquinas de lavar e aparelhos de televisão, tantos quanto as pessoas podem usar. Ele diz que a NATS e os abrigos de bombas não servem para nada. Ele diz que as fábricas vão continuar fazendo armas e máscaras de gases para sempre, enquanto as pessoas pensarem que se continuarem pagando por elas, não serão mortas. E que talvez um homem se canse de pagar um carro novo todos os anos e pare, mas ele nunca vai parar de comprar abrigos para proteger suas crianças.

— Você acredita nisso? — O vendedor perguntou.

— Eu gostaria que tivéssemos esse abrigo — respondeu Mike Foster. — Se tivéssemos um abrigo assim, eu iria dormir nele todas as noites. Estaria lá quando precisássemos dele.

— Talvez não aconteça uma guerra — disse o vendedor sentindo a tristeza do menino e
seu medo. Sorriu bem humorado. — Não se preocupe o tempo todo. Provavelmente você anda assistindo muitas fitas de vídeo. Saia um pouco para brincar, e as coisas vão melhorar.

— Ninguém está seguro na superfície — disse Mike Foster. — Temos que ficar abaixo da superfície. E não há lugar para onde eu possa ir.

— Mande o seu velho vir falar comigo — o vendedor murmurou com dificuldade. — Talvez possamos convencê-lo. Temos experiência no negócio e ótimos planos de pagamento. Diga-lhe para procurar por Bill O'Neill. OK?

Mike Foster se afastou para dentro da noite negra.
Sabia que era esperado estar já casa, mas seus pés se arrastavam e seu corpo estava pesado e aborrecido. Sua fadiga fez com que ele lembrasse o que o treinador atlético havia dito no dia anterior, durante os exercícios.
Eles estavam praticando suspensão da respiração, correndo e segurando o ar. Ele não tinha se saido bem. Os outros meninos ainda corriam quando ele parou, expulsou o seu ar, e ficou parado recuperando-se.

— Foster — o treinador disse com raiva. -Você está morto! Você sabe disso? Se este tivesse sido um ataque com gás...Vá e pratique sozinho. Você deve fazer melhor, se você espera sobreviver.
Mas ele não esperava sobreviver.

Quando pisou na varanda de entrada de casa, encontrou as luzes da sala acesas. Podia ouvir a voz de seu pai, e mais suavemente a voz de sua mãe na cozinha.
Entrou, fechou a porta atrás de si e começou a despir o casaco.

— É você? — Bob Foster estava sentado na cadeira, o colo cheio de fitas e folhas de relatórios de sua loja de móveis de varejo. — Onde estava? O jantar já está pronto faz meia hora.

Parecia cansado; seus olhos eram grandes e escuros, seus cabelos finos. Movia as fitas de uma pilha para outra.

— Desculpe — disse Mike Foster.

O pai examinou seu relógio de bolso; Era certamente o único homem que ainda carregava um relógio.

— Vá lavar as mãos. O que tem feito? — Examinou seu filho. — Você parece estranho. Está se sentindo bem?

— Eu estava no centro da cidade — disse Mike Foster.

— O que estava fazendo no centro da cidade?

— Olhando os abrigos.

Sem dizer uma palavra seu pai pegou um punhado de relatórios e os colocou em uma pasta. Seus lábios finos estavam juntos, linhas duras enrugavam a testa.
Ele resmungou furiosamente quando algumas fitas cairam e se curvou para pegá-las.
Mike Foster não fez nenhum movimento para ajudá-lo. Pendurou o casaco em um gancho. Quando se virou, sua mãe entrava na sala de jantar.
Eles comeram sem conversar entre si, com a intenção de comer.
Finalmente seu pai disse:

— O que você viu? A mesma porcaria de sempre, eu suponho.

— Os novos modelos 72 — respondeu Mike Foster.

— Eles são os mesmos que os modelos 71 — seu pai jogou seu garfo selvagemente sobre a mesa. — Tem algumas engenhocas novas, um pouco mais de cromo. Isso é tudo! — De repente ele estava encarando-o desafiadoramente. — Certo?

Mike Foster brincou com a galinha cremosa.

— Os novos têm um elevador de descida à prova de esmagamento. Você não vai ficar preso na metade do caminho. Tudo o que você precisa fazer é entrar, e ele faz o resto.

— No ano que vem haverá um que irá buscá-lo e levá-lo para baixo. Este será obsoleto assim que as pessoas o comprarem. É o que eles querem... querem que você continue comprando. Eles continuam lançando um novo modelo o mais rápido possível. Ainda estamos em 1971. O que está acontecendo? Eles não podem esperar?

Mike Foster não respondeu. Ele já havia ouvido tudo isso muitas vezes. Nunca houve
nada novo, apenas mais cromo; ainda assim, os antigos tornavam-se obsoletos.
O argumento do pai era sonoro, apaixonado, quase frenético, mas não fazia sentido.

— Vamos pegar um velho então — falou Mike. — Não me importo, ninguém vai se importar. Mesmo um de segunda mão.

— Não, você quer o novo. Brilhante, para impressionar os vizinhos. Muitos botões e alavancas. Quanto estão pedindo por ele?

— Vinte mil dólares.

Seu pai soltou a respiração.

— Ai está!

— Eles têm planos de pagamento de longa duração.

— Claro. Você paga o resto da sua vida. Juros, cobranças, e qual o tempo da garantia?

— Três meses.

— O que acontece quando termina a garantia? Vai parar de purificar e descontaminar, vai
desmoronar assim que terminarem os três meses.

Mike Foster sacudiu a cabeça.

— Não. Ele é grande e resistente.

Seu pai corou. Era um homem pequeno, delgado e leve, desossado. Pensou de repente nas batalhas perdidas de sua vida, pelo caminho mais difícil, de luta por algo, um emprego, dinheiro, sua loja de varejo, contabilista e finalmente proprietário.

— Eles estão nos assustando para manter a roda girando — gritou desesperadamente para sua esposa e filho. — Eles não querem outra depressão.

— Bob — disse sua esposa devagar — você tem que parar com isso. Eu não suporto mais.

Bob Foster piscou.

— Sobre o que está falando? Estou cansado! Esses impostos! Não é possível que uma loja pequena se mantenha aberta, não com as grandes cadeias de venda. Deveria haver uma lei! — Sua voz se apagou.

— Eu acho que estávamos comendo.

Ele afastou-se da mesa e ficou de pé.

— Vou deitar no sofá e tirar uma soneca.

O rosto magro de sua esposa ardia.

— Você tem que comprar um! Não suporto o modo como eles falam sobre nós. Todos os vizinhos e os comerciantes, todos os que sabem. Não posso ir a lugar algum ou fazer nada sem ouvir isso. Os Anti-P. Os últimos em toda a cidade. Essas coisas circulam por aí, e todos pagam, exceto nós.

— Não — disse Bob Foster. — Não posso pagar.

— Por que não?

— Porque não posso pagar.

Houve silêncio.

— Você colocou tudo naquela loja — Ruth disse finalmente. — E não está dando certo. Você é como um rato, acumulando tudo naquele pequeno buraco na parede. Ninguém quer mais móveis de madeira. Você é uma relíquia... uma curiosidade.

Ela bateu na mesa e foi juntar os pratos vazios. Correu da sala, voltou para a cozinha com os pratos. Bob Foster suspirou cansadamente.

— Não vamos brigar. Estarei na sala de estar. Deixe-me tirar uma soneca por uma hora ou mais.

Talvez possamos conversar sobre isso mais tarde.

— Sempre mais tarde — disse Ruth amargamente.

O marido desapareceu na sala de estar, uma figura pequena e encurvada, cabelo cinza, ombros como asas quebradas.

Mike levantou-se e disse: — Vou estudar minha lição de casa.

Seu pai olhou para ele com um olhar estranho no rosto.
A sala de estar estava quieta; o vídeo estava desligado e a luz desligada. Ruth estava na cozinha ajustando os controles sobre o fogão para as refeições do próximo mês.
Bob Foster estava deitado no sofá sem os sapatos, a cabeça no travesseiro. Seu rosto cinza de fadiga.
Mike hesitou por um momento e depois disse: — Posso te perguntar uma coisa?
Seu pai grunhiu e se agitou, abriu os olhos.

— O que?

Mike sentou-se de frente para ele.

— Diga-me novamente como você deu conselhos ao presidente.

— Eu não dei nenhum conselho ao presidente. Apenas falei com ele.

— Conte-me sobre isso.

— Eu lhe contei um milhão de vezes. Quando... você era um bebê. — Sua voz suavizou. — Você era apenas uma criança pequena, nós precisávamos carregá-lo.

— Como ele era?

— Bem — seu pai começou — ele era como vemos no vídeo, só que menor.

— Por que ele estava aqui? — Mike quis saber embora conhecesse todos os detalhes. O presidente era seu herói, o homem que ele mais admirava em todo o mundo.

— Por que ele veio até a nossa cidade?

— Ele estava em uma caravana — A amargura entrou na voz de seu pai. — Estava de passagem.

— Que tipo de caravana?

— Visitando cidades em todo o país — o tom ficou mais duro. — Vendo como estávamos
lidando com tudo. Vendo se nós pagávamos NATS e comprávamos abrigos e máscaras de gás e redes de radar para repelir o ataque. A General Electronics Corporation estava começando com as grandes exposições... tudo muito brilhante e caro. O primeiro equipamento de defesa disponível para comprar para casa — seus lábios se torceram. — Em leves prestações. Anúncios, holofotes, gardênias grátis para as senhoras. Foi o dia em que nossa cidade obteve a Bandeira de Preparação. Foi o dia em que ele veio nos dar a nossa bandeira. E eles colocaram no mastro no meio da cidade, e todos estavam lá gritando e vibrando.

— Você se lembra disso?

— Eu me lembro de pessoas e sons. E estava quente. Era junho, não? Dez de junho de 1965. Nem todas as cidades tinham a grande bandeira verde, então. As pessoas ainda estavam comprando carros e aparelhos de TV. Eles ainda não haviam se dado conta de que esses dias tinham acabado.

— E ele lhe deu a bandeira, não é?

— Bem, ele deu a todos nós comerciantes. A Câmara de Comércio organizou tudo.
Concorrência entre cidades, veja quem pode comprar o mais rápido possível. Melhore nossa cidade e ao mesmo tempo estimule negócios. É claro que, como eles diziam, a ideia era de que se tivessemos que pagar por nossas máscaras de gás e abrigos de bomba, nós cuidariamos melhor deles. Como se alguma vez danificássemos telefones e calçadas, ou estrada, porque o governo havia fornecido-os. Ou exércitos. Não houve sempre exércitos? O governo sempre organizou o seu povo para a defesa. Acho que a defesa custa demais. Acho que eles economizam muito dinheiro, reduzindo a dívida nacional.

— Diga-me o que ele te disse — Mike Foster sussurrou.

Seu pai procurou seu cachimbo e acendeu com mãos trêmulas.

— Ele disse: ‘Aqui está a sua bandeira. Você fez um bom trabalho’.

Bob Foster engasgou com a fumaça do cachimbo.

— Ele estava com rosto vermelho, queimado pelo sol. Suando e sorrindo. Ele sabia como lidar com isso. Ele conhecia muitos nomes. Contou uma piada engraçada.

Os olhos do menino estavam arregalados com admiração.


— Ele veio de longe e falou com você.

— Sim — disse seu pai. — Eu conversei com ele. Todos estavam gritando. A bandeira
estava subindo, a grande bandeira verde.

— Você disse...

— Eu disse a ele: ‘É tudo que você nos trouxe? Uma tira de pano verde?'. — Bob Foster
segurava tenso seu cachimbo. — Foi quando eu me tornei um anti-P. Só não sabia disso.
Tudo o que sabia era que estávamos sozinhos, por conta própria, exceto que tínhamos uma tira de pano verde. Deveríamos ser um país, uma nação inteira, cento e setenta milhões de pessoas trabalhando juntas para se defender. E, em vez disso, somos muitas pequenas cidades separadas, pequenas fortalezas muradas. De volta à Idade Média. Com nossos exércitos separados...

— O presidente vai voltar? — Mike perguntou.

— Eu duvido. Ele estava... apenas de passagem.

— Se ele voltar — sussurrou Mike, tenso e não ousou esperar — podemos ir ver ele?

Bob Foster sentou-se.
Seus braços secos estavam nus e brancos, o rosto magro era monótono de cansaço.
E renúncia.

— Quanto custava a maldita coisa que você viu?

— O abrigo de bombas? — O coração de Mike disparou. — Vinte mil dólares.

— Hoje é quinta-feira. Vou com você e sua mãe no próximo sábado. Vamos comprá-lo no plano de pagamento mais fácil. A temporada de compras de outono está chegando em breve. Eu costumo me sair bem, as pessoas compram móveis de madeira para dar de presente de Natal — levantou-se abruptamente do sofá.

— De verdade?

— Sim — disse seu pai lidando com a ansiedade. — Agora você não precisará ir até o centro e ficar olhando pela janela.


O abrigo foi instalado.
Por mais duzentos dólares para um trabalho rápido feito pela equipe de camisas marrons com as palavras GENERAL ELECTRONICS costurado em suas costas.
O pátio traseiro foi rapidamente restaurado, terra e arbustos espalhados no lugar, a superfície alisada e a conta respeitosamente colocada sob a porta da frente.
O caminhão de entrega pesado, agora vazio, sumiu na rua e o bairro ficou em silêncio.
Mike Foster estava de pé com sua mãe e um pequeno grupo de vizinhos na varanda dos fundos da casa.

— Bem — disse a Sra Carlyle — agora você tem um abrigo. O melhor que existe.

— Isso mesmo — concordou Ruth Foster consciente das pessoas à sua volta. Já fazia algum tempo que tantos tinham aparecido de uma só vez. — Certamente faz diferença — disse ela firme.

— Sim — o Sr. Douglas concordou. — Agora você tem um lugar para ir — pegou o grosso livro de instruções que os trabalhadores deixaram. — Isso diz que você pode estocar para um ano inteiro. Viver lá doze meses sem vir à superfície uma única vez. — Balançou a cabeça com admiração. — O meu é um antigo modelo 69. Apenas seis meses. Eu acho que talvez...

— Ainda é bom o suficiente para nós — sua esposa falou entrando na conversa. — Podemos descer e olhar por dentro, Ruth? Está tudo pronto, não?

Mike fez um barulho e se moveu bruscamente pra frente.
Sua mãe sorriu compreensiva.

— Ele tem que ir primeiro...  é realmente para ele, vocês sabem.


Com seus braços dobrados contra o vento frio de setembro, o grupo de homens e mulheres esperou e observou quando o menino se aproximou da entrada do abrigo e parou alguns passos na frente dele. Passou com cuidado pela entrada, quase com medo de tocar qualquer coisa. A abertura era grande para ele, fora construída para um homem adulto. O chão cedeu descendo tunel abaixo com um whoosh de tirar o fôlego, e ele caiu dentro do corpo do abrigo.
O elevador batera forte contra os amortecedores e o garoto tropeçou. O elevador então voltou à superfície, selando simultaneamente o abrigo subterrâneo, com uma cortina de aço e plástico intransponível no interior do túnel estreito.

Luzes acenderam ao seu redor automaticamente.
O abrigo estava vazio, nenhum suprimento havia ainda sido carregado. Cheirava a verniz e a óleo do motor, abaixo dele os geradores estavam latejando de leve.
Sua presença ativou os sistemas de purificação e descontaminação, medidores de parede e mostradores saltaram com a súbita atividade.
Se sentou ao chão, os joelhos esticados e os olhos arregalados.
Não havia som senão o dos geradores.

O contato com o mundo acima fora completamente cortado.
Ele estava em um pequeno cosmos autônomo e tudo estava aqui... ou estaria em breve. Comida, água, ar, coisas para fazer. Não precisaria de nada mais. Ele poderia chegar e pegar o que ele precisasse.
Poderia ficar aqui para sempre, durante todo o tempo, sem se mexer.
Completo e inteiro. Nada em falta, nada a temer, com apenas o som dos geradores
ronronando abaixo dele e as paredes absurdamente ascéticas ao redor e acima e por todos os lados, levemente quente, completamente amigável como um recipiente vivo.
De repente ele gritou um grito de júbilo que ecoou e saltou de parede para parede.
Ficou assustado com a reverberação.
Fechou os olhos com força e apertou os punhos.
Encheu-se de alegria e gritou novamente...  e deixou o rugido ecoar sua própria voz reforçada pelas paredes próximas e duras e incrivelmente poderosas.


As crianças na escola souberam mesmo antes dele aparecer na manhã seguinte. Saudaram-no enquanto aproximava-se, todos sorrindo e cutucando-se mutuamente.

— É verdade que seu pessoal comprou o novo modelo? S-72ft? — Earl Peters indagou.

— Isso mesmo — respondeu Mike. Seu coração inchou com uma confiança tranquilizadora que ele nunca havia conhecido.
Passou por eles consciente de seus olhares invejosos.

— Bem, Mike — disse a Sra. Cummings quando ele estava saindo da sala de aula no final da dia. — Como é?

Ele parou na sua mesa, tímido e cheio de orgulho silencioso.

— É bom — admitiu.

— Seu pai está contribuindo para o NATS?

— Sim.

— E você tem uma licença para o nosso abrigo escolar?

Feliz ele mostrou a ela o pequeno selo azul preso em torno de seu pulso.

— Agora você tem tudo que todos têm — a mulher idosa sorriu para ele. — Fico satisfeita com isso. Você agora é um Pró-P, exceto que não existe tal termo. Você é apenas... como todo mundo.


No dia seguinte as máquinas de notícias cuspiram notícias.
Novos armamentos soviéticos revelados.
Bob Foster ficou no meio da sala de estar, o boletim de notícias em suas mãos, seu rosto magro corado de fúria.

— Malditos! É um complô! — Sua voz aumentou em frenesi. — Nós acabamos de comprar a coisa e agora olhe! Olhe! — Empurrou a fita para a esposa. — Vê? — Eu disse a você!

— Eu vi — Ruth disse com raiva. — Suponho que você acha que o mundo inteiro estava apenas esperando você comprar o abrigo. Eles estão sempre melhorando as armas, Bob. Na semana passada foram flocos de impregnação. Esta semana, grãos perfurantes. Você não espera que eles parem as rodas do progresso porque você finalmente deu o braço a torcer e comprou um abrigo, espera?
Se encararam.

— O que diabos vamos fazer? — Perguntou Bob Foster.

Ruth voltou para a cozinha.

— Ouvi dizer que eles vão lançar adaptadores.

— Adaptadores! O que você quer dizer?

— As pessoas não terão que comprar novos abrigos. Vi num comercial. Eles vão lançar algum tipo de grade de metal no mercado, assim que o governo aprovar. Ela é espalhada pelo chão e intercepta os grânulos e os faz explodirem na superfície, para que não possam atravessar a parede do abrigo.

— Quanto vai custar?

— Eles não disseram.

Mike Foster estava sentado no sofá. Ele tinha ouvido as notícias na escola.
Eles estavam fazendo identificação de toxinas,examinando amostras em animais selvagens para distinguir as inofensivas das tóxicas, quando o sino anunciou uma
Assembleia Geral. O diretor leu as notícias sobre os grânulos e depois deu uma palestra de rotina sobre o tratamento de emergência de uma nova variante do tifo, recentemente desenvolvida.
Seus pais ainda estavam discutindo.

— Vamos ter que conseguir um — disse Ruth Foster calmamente. — Caso contrário não fará qualquer diferença se temos um abrigo ou não. Os grânulos foram projetados especificamente para penetrar na superfície e buscar calor. Assim que os russos tiverem iniciado a produção...

— Vou comprar uma — disse Bob Foster. — Uma grade anti-grânulos e qualquer outra coisa que eles tenham. Vou comprar tudo o que eles colocarem no mercado. Eu nunca vou parar de comprar.

— Não é tão ruim assim!

— Você sabe, este jogo tem uma vantagem sobre vender carros e aparelhos de TV. Temos que comprar. Não é um luxo, algo grande e chamativo para impressionar os vizinhos, algo que poderíamos ficar sem. Se não comprarmos, morreremos. Eles sempre disseram que a maneira de vender algo era criar necessidade nas pessoas. Crie uma sensação de insegurança... diga-lhes que eles cheiram mal ou tem cabelos engraçados. A piada faz vender desodorante e gel para cabelo. Você não pode escapar disso. A armadilha perfeita. Compre ou morra... novo slogan. Tenha um novo e brilhante refúgio de bomba em seu quintal ou morra.

— Pare de falar assim! — Ruth disparou.

Bob Foster sentou-se na mesa da cozinha.

— Tudo bem! Eu desisto! Eu me rendo!

— Acho que eles estarão à venda no Natal.

— Oh, sim — disse Foster. — No Natal! — Havia um olhar estranho em seu rosto. — Vou comprar uma das malditas coisas no Natal, e assim em todos os outros depois.


Os adaptadores de grade da GEC eram um sucesso.
Em Dezembro Mike Foster caminhava lentamente ao longo da rua lotada pela multidão, no crepúsculo da tarde. Adaptadores brilhavam em cada janela das lojas. Todas as formas e tamanhos, para todo tipo de abrigo. Todos os preços, um para cada bolso.
Multidões alegres e excitadas, típicas de natal, empurrando-se com naturalidade, carregadas com pacotes e vestindo sobretudos pesados.
O ar era branco pelas rajadas de neve.
Carros trafegavam cautelosamente ao longo das ruas lotadas.
Luzes e telas de néon, imensas janelas brilhantes das lojas por todos os lados.
Mas sua própria casa estava escura e silenciosa.
Seus pais não estavam em casa ainda. Ambos estavam na loja, trabalhando, os negócios não tinham sido bons e sua mãe estava tomando o lugar de um dos funcionários.
Mike segurou na mão a chave-código e a porta da frente deixou-o entrar.
O forno automático mantinha a casa quente e agradável.
Removeu seu casaco e guardou os livros escolares.
Ele não permaneceria na casa por muito tempo.
Seu coração batendo com entusiasmo, caminhou em direção à porta e da varanda dos fundos. Então se forçou a parar, virar-se e voltar a entrar na casa.
Era melhor não apressar as coisas.

Toda tarde, logo que chegava em casa, descia para o abrigo escondido e protegido em seu silêncio de aço, como desde o primeira dia. Agora ele estava cheio, não vazio,
repleto de infinitas latas de comida, travesseiros, livros, fitas de áudio e vídeo, quadros nas paredes, tecidos brilhantes, texturas e cores, até mesmo vasos de flores.
O abrigo era seu lugar, cercado por tudo o que precisava.
Postergando o máximo de tempo possível, revirou o arquivo de fitas de áudio.

Sentava-se no abrigo até o jantar, ouvindo Wind in the Willows. Seus pais sabiam onde encontrá-lo; ele estava sempre lá embaixo. Duas horas de felicidade ininterrupta, sozinhas no abrigo. E então, quando o jantar terminava, ele se apressava de volta, para ficar aguardando na cama. Às vezes, tarde da noite, quando seus pais estavam profundamente adormecidos, ele se dirigia para o abrigo e para baixo em suas profundidades silenciosas, se escondendo até a manhã.
Encontrou a fita de áudio que procurava e correu pela casa, para o quintal dos fundos.
O céu era de um cinza sombrio com flâmulas de nuvens negras.
As luzes da cidade aqui e ali. O pátio frio e hostil.
Desceu pelos degraus e congelou.
Uma enorme cavidade apareceu.
Uma boca aberta, vazia e desdentada, aberta ao céu noturno.
Não havia mais nada.
O abrigo tinha desaparecido.

Ele ficou de pé por um tempo sem fim, a fita apertada em uma mão, a outra mão no corrimão do alpendre.
A noite tomou conta e o buraco morto dissolveu-se na escuridão.
O mundo inteiro gradualmente se colapsou em silêncio e tristeza abismal.
Estrelas fracas, luzes nas casas vizinhas surgiram com força e frio.
O menino não via mais nada. Permaneceu imóvel, seu corpo rígido como pedra, ainda de frente para o grande buraco, onde o abrigo tinha estado.
Então o pai parou ao seu lado.

— À quanto tempo está aqui? Por quanto tempo, Mike? Me responda!

Com esforço Mike conseguiu virar-se.

— Você chegou cedo — murmurou o pai. — Eu deixei a loja com antecedência. Queria estar aqui quando você chegasse em casa.

— Foi-se.

— Sim — a voz de seu pai era fria, sem emoção. — Me desculpe, Mike. Liguei para eles e disse-lhes para retomá-lo.

— Por quê?

— Eu não poderia pagar por ele. Não neste Natal, com as grades que todos estão recebendo. Eu não posso competir com eles — interrompeu-se e depois continuou com misericórdia. — Eles foram bem decentes. Devolveram metade do dinheiro que eu paguei — sua voz distorceu irônica. — Eu sabia que se eu fizesse um acordo com eles antes do Natal eu teria vantagem. Eles podem revender o abrigo para outra pessoa.
Mike não disse nada.

— Tente entender — seu pai continuou com firmeza. — Tive que colocar todo o capital que eu podia juntar na loja. Eu tenho que mantê-la funcionando. Foi abandonar o abrigo ou a loja. E se eu desistisse da loja...

— Então, não teríamos nada.

Seu pai agarrou seu braço.

— E então teríamos que desistir do abrigo também. Você está crescendo... tem idade suficiente para entender. Nós compraremos um abrigo mais tarde, talvez não o maior, o mais caro, mas algo. Foi um erro, Mike. Não pude... os malditos adaptadores. Mas tenho feito os pagamentos NAT. E da sua escola. E não é uma questão de princípio. Não pude evitar. Você entende, Mike?
Mike se afastou.

— Onde você vai? — Seu pai correu atrás dele. — Volte aqui!

Agarrou seu filho freneticamente, mas na escuridão ele tropeçou e caiu. Quando olhou novamente, o pátio estava vazio. Seu filho tinha ido embora.

— Mike! — Gritou. — Onde você está?

Não houve resposta.
O vento noturno soprava nuvens de neve ao redor dele, numa fina rajada de ar frio. Vento e escuridão, nada mais.


Bill O'Neill examinou o relógio na parede.
Era nove e trinta e ele poderia finalmente empurrar para fora da grande e deslumbrante loja a multidão de pessoas murmurando à caminho de casa e fechar.

— Graças a Deus — ele bufou enquanto segurava a porta aberta para uma última senhora carregada com pacotes de presentes. Clicou o código e puxou a grade.

— Nunca vi tanta gente!

— Tudo pronto — disse Al Conners da caixa registradora. — Vou contar o dinheiro. Dê uma volta e verifique. Certifique-se de que todos sairam.

O'Neill empurrou o cabelo loiro para trás e afrouxou a gravata. Acendeu um cigarro com satisfação, pressionando interruptores de luz, desligando as amplas telas e aparelhos da GEC.
Finalmente se aproximou do enorme abrigo que ocupava o centro do salão. Subiu a escada até a entrada e pisou no elevador. O elevador caiu com um whoosh e um segundo depois, ele saiu no interior do abrigo.
Mike Foster sentava-se com os joelhos contra o queixo, os braços magros envolvidos em torno de seus tornozelos. Seu rosto pressionado, apenas o seu cabelo marrom desordenado. Não se moveu quando o vendedor se aproximou dele espantado.

— Jesus! — O'Neill exclamou. — É aquele garoto!

Mike não disse nada. Abraçou as pernas com mais força.

— O que diabos você está fazendo aqui embaixo? — O'Neill disse bravo. Sua indignação aumentou.

— Eu pensei que seu pessoal tinha comprado um desses — só então ele se lembrou.— Certo. Tiveram que devolvê-lo.

Al Conners apareceu do elevador.

— Por que está demorando? Vamos sair daqui e... — e viu Mike. — O que ele está fazendo aqui embaixo? Tire-o daqui!

— Vamos, garoto — disse O'Neill gentilmente. — Hora de ir para casa.

Mike não se moveu. Os dois homens se olharam.

— Eu acho que vamos ter que arrastá-lo para fora — disse Conners sombriamente tirando o casaco e jogando-o sobre um dispositivo de descontaminação.

— Vamos acabar com isso.

Precisou dos dois. O menino lutou desesperadamente, sem som, agarrando e lutando
e rasgando-os com as unhas, chutando-os, cortando-os, mordendo-os quando o agarravam.
Meio arrastado, levaram-no para o elevador, o suficiente para ativar o mecanismo. O'Neill segurou-o e Conners veio imediatamente depois.
De forma eficiente empurraram o menino para a porta da frente, jogaram-no do lado de fora e trancaram tudo de novo.

— Uau — Conners ofegou apoiando-se contra o balcão. Sua manga estava rasgada e
sua bochecha ferida. Os óculos pendiam de uma orelha; seu cabelo estava desalinhado e ele estava exausto.

— Acha que devemos chamar a polícia? Há algo de errado com aquele garoto.

O'Neill ficou junto à porta, ofegante e olhando para a escuridão.
Podia ver o menino sentado na calçada.

— Ele ainda está lá — murmurou.

Pessoas empurravam o menino para ambos os lados até que ele caiu.
Finalmente um deles parou e levantou-o. O menino lutou para livrar-se e depois desapareceu na escuridão.

O’Neill enxugou o rosto com o lenço. — Ele lutou bem.

— Qual o problema com ele? Ele nunca disse nada, nem uma maldita palavra.

— O Natal é o pior momento para se perder alguma coisa — disse O'Neill alcançando tremendo seu casaco. — É muito ruim. Eu queria que eles pudessem ter ficado com ele.
Conners encolheu os ombros.

— Sem dim-dim, sem sopa.

— Por que diabos não podemos oferecer-lhes um acordo? Talvez... — O'Neill lutou para lembrar a palavra. — Atacado. Talvez pudéssemos vender o abrigo por atacado, para pessoas assim.

Conners olhou para ele com raiva.

— Atacado? E se todo mundo quiser comprar por atacado. Não seria justo... e quanto tempo ficaríamos nos negócios? Quanto tempo a GEC duraria?

— Eu acho que não muito tempo — O'Neill admitiu com humor.

— Use sua cabeça — Conners riu bruscamente. — O que você precisa é de um trago. Tenho metade um Haig & Haig em uma gaveta lá atrás. Uma pequena coisa para aquecê-lo, antes de ir para casa. É o que você precisa.


Mike Foster vagava sem rumo pela rua escura, entre as multidões de compradores
apressando-se para chegar em casa.
Não via nada, as pessoas empurravam-no.
Luzes, pessoas rindo, buzinas dos carros, o ruído dos anúncios.
Sua mente vazia e morta.
Andou automaticamente, sem consciência.
À sua direita, um anúncio de néon piscava e brilhava nas profundezas da noite.
Um letreiro enorme, brilhante e colorido.


PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE
ADMISSÃO NO ABRIGO PÚBLICO 50 CENTAVOS

FIM.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

AUTOFAC - Philip K. Dick



AUTOFAC
(originalmente publicado em Novembro de 1955 na revista Galaxy Science Fiction.)

I
A tensão se fixara nos três homens que aguardavam fumando e andando de um lado para o outro, chutando a esmo as ervas daninhas que cresciam ao lado da estrada. O sol quente do meio do dia descera sobre os campos castanhos, sobre as fileiras de casas, e a distante linha de montanhas a oeste.

— Tá quase na hora — disse Earl Ferine esfregando suas mãos magras. — Ele varia de acordo com
a carga, meio segundo para cada meio quilograma adicional.

Morrison respondeu amargo:

— Como você consegue calcular isso? Vamos só fingir que está atrasado.

O terceiro homem não disse nada. O'Neill era de fora; não conhecia Ferine ou Morrison o bastante para discutir com eles. Em vez disso se agachou e ajeitou os documentos encaixados em sua prancheta de alumínio.
No sol ardente, os braços de O'Neill estavam bronzeados, peludos, brilhando com o suor, cabelos grisalhos emaranhados, óculos com aro de chifre. Era bem mais velho do que os outros dois.
Entre seus dedos, uma bela caneta cintilante, metálica e eficiente.

— O que está escrevendo? — Ferine resmungou.

— Estou definindo o procedimento que vamos utilizar — O'Neill disse suavemente. — Melhor sistematizá-lo agora, em vez de agir aleatoriamente. Queremos saber o que fizemos e o que não funcionou. Caso contrário, iremos ficar andando em círculos. O problema que temos aqui é de comunicação, é como eu vejo.

— Comunicação — Morrison concordou em sua voz profunda. — Sim, não entramos em contato
com a maldita coisa. Ela vem, deixa a carga e continua, não há contato entre nós.

— É uma máquina — Ferine disse sem entusiasmo. — Está morta, cega e surda.

— Mas está em contato com o mundo exterior — apontou O'Neill. — Tem que haver alguma
maneira de chegar até ela. Sinais semânticos específicos são significativos para ela... Tudo o que temos a fazer é encontrá-los. Redescobrí-los, na verdade. Talvez uma meia dúzia de bilhões de possibilidades.
Um ruído baixo interrompeu os três homens. Olharam para a estrada, cautelosos e alertas.
Chegara a hora.

— Ai vem — disse Ferine. — Ok, sabidão, vejamos você trabalha.

O caminhão era enorme, roncando sob sua carga bem embalada. Em muitos aspectos lembrava
veículos convencionais de transporte, mas com uma exceção, não havia cabine para o motorista.
A superfície horizontal era uma plataforma de carga, e a parte que normalmente teria os faróis e a grade do radiador, era uma massa de receptores fibrosos e esponjosos, o aparato sensorial da extensão utilitária automotiva.
Consciente dos três homens, o caminhão desacelerou, trocou as marchas e acionou os freios de emergência parando próximo.
Um breve instante passou quando os relés entraram em ação; então uma parte do carregamento desceu pela rampa inclinada e uma cascata de caixas pesadas foi derramada na estrada.
Junto com os objetos voou uma folha de inventário detalhada.

— Vocês sabem o que fazer — O'Neill disse rapidamente. — Apressem-se antes que ele vá embora.

Os três homens agarraram os caixas e rasgaram a coberta protetora delas. Objetos brilhavam; um microscópio binocular, um rádio portátil, montões de pratos plásticos, suprimentos médicos, lâminas de barbear, roupas, alimentos. A maior parte da remessa, como de costume, era de comida.
Os três homens começaram sistematicamente a esmagar objetos. Em alguns minutos, não havia nada além de um caos de detritos espalhados entre eles.

— É isso — O'Neill ofegou recuando. Procurou sua planilha. — Agora vamos ver o que ele faz.
O caminhão começou a se afastar, mas abruptamente parou e recuou em direção a eles. Os receptores haviam notado o fato de que os três homens havia destruido a carga. Ele girou em meio a um terreno vazio e direcionou seus receptores na direção deles. Sua antena estendeu-se para o alto, começara a se comunicar com a fábrica.

Instruções estavam à caminho.
Uma segunda carga idêntica foi empurrada para fora do caminhão à beira da estrada.

— Falhamos — Ferine gemeu ao ver a folha ser cuspida após a nova carga. — Destruímos tudo por nada.

— E agora? — Morrison perguntou a O'Neill. — Qual é a próxima estratégia?

— Me dê uma mão — O'Neill pegou uma caixa e arrastou-a de volta ao caminhão. Deslizando o
cartonado na plataforma, virou-se. Os outros dois homens seguiram desajeitadamente seus movimentos. Colocaram a carga de volta no caminhão. À medida que o caminhão começava a mover-se, a última caixa quadrada estava novamente no lugar.

O caminhão hesitou. Seus receptores registraram o retorno de sua carga. De dentro dele veio um zumbido.

— Isso vai deixá-lo louco — comentou O'Neill suando. — Ele realizou a operação e não conseguiu nada.

O caminhão fez um movimento curto, então girou propositalmente ao redor e, em um borrão de velocidade, novamente despejou a carga na estrada.

— Peguem a carga! — O'Neill gritou.

Os três homens agarraram os caixas e recarregaram o caminhão febrilmente. Mas, tão rápido quanto as caixas eram empurradas para a área horizontal, o caminhão inclinava a plataforma do lado oposto e descarregava na estrada.

— Não adianta — disse Morrison respirando com dificuldade. — É impossível!

— Estamos ferrados — Ferine ofegou — como sempre. Nós seres humanos perdemos.

O caminhão considerava calmamente com seus receptores impassíveis.
Estava fazendo seu trabalho.

A rede de fábricas automáticas AUTOFAC, estava realizando consistentemente a tarefa que lhe fora imposta cinco anos antes, nos primeiros dias do chamado Conflito Global.

— Lá vai ele — observou Morrison desanimado. A antena do caminhão havia baixado; engatou a marcha lenta e soltou o freio de estacionamento.

— Uma última tentativa — disse O'Neill pegando uma das caixas e abrindo-a. Tirou de dentro um tanque de leite de dez litros e desenroscou a tampa. — Eu sei que parece tolice...

— Isso é absurdo — protestou Ferine. Relutante ele encontrou um copo entre os destroços
e mergulhou no leite. — É um jogo infantil.

O caminhão fez uma pausa para observá-los.

— Vamos, — O'Neill ordenou bruscamente — façam exatamente do jeito que combinamos.
Os três beberam rapidamente do tanque de leite, visivelmente permitindo que o leite derramasse
descendo o queixo; não havia que confundir o que estavam fazendo.

Conforme planejado, O'Neill foi o primeiro. Seu rosto se torcendo de repulsa, jogou o copo longe e cuspiu o leite na estrada.

— Pelo amor de Deus! — Gritou engasgando.

Os outros dois fizeram o mesmo, cuspindo e xingando alto, derrubaram o tanque de leite
e olharam acusadoramente para o caminhão.

— Não está bom! — Morrison rugiu.

Curioso, o caminhão se voltou lentamente. Sinapses eletrônicas clicaram e zumbiram, respondendo a situação. Sua antena se elevou como um mastro.

— Acho que conseguimos — disse O'Neill tremendo.

Enquanto o caminhão observava ele arrastou um segundo tanque de leite, desenroscou a tampa e provou o conteúdo. — O mesmo! — Gritou para o caminhão. — Está ruim!

Do caminhão saiu um pequeno cilindro de metal, que caiu aos pés de Morrison.
Ele rapidamente abriu-o.

NATUREZA DO DEFEITO

As folhas de instruções listavam possíveis defeitos, com um local para indicar a deficiência do produto.

— O que vou marcar? — Morrison perguntou. — Contaminado? Bacteria? Podre? Rançoso? Incorretamente rotulado? Partido? Esmagado? Rachado? Dobrado? Sujo?

Pensando rapidamente O'Neill respondeu:

— Não marque nenhum deles. A fábrica, sem dúvida está preparada para testar uma nova amostra.

Ele fará sua própria análise e depois nos ignorará.
Seu rosto brilhava frenético quando surgiu a inspiração.

— Escreva nesse espaço em branco no final. É um espaço para dados adicionais.

— Escrever o que?

O'Neill disse: — Escreva, o produto está chiado.

— O que é isso?

— Escreva! É um erro semântico... a fábrica não conseguirá entender. Talvez consigamos bloqueá-lo.
Com a caneta de O'Neill, Morrison escreveu cuidadosamente que o leite estava chiado. Balançando a cabeça, fechou o cilindro e devoldeu-o para o caminhão, que começou a afastar-se. Outro cilindro saltou do compartimento, o caminhão partiu apressadamente, deixando o cilindro no chão.
O'Neill abriu e levantou o papel para os outros verem.

REPRESENTANTES DE FÁBRICA SERÃO ENVIADOS.
ESTEJAM PREPARADOS PARA FORNECER DADOS COMPLETOS
SOBRE DEFICIÊNCIA DO PRODUTO.

Por um momento, os três homens ficaram em silêncio, então Ferine começou a rir.

— Nós conseguimos. Nós fizemos ele se comunicar.

— Nós certamente conseguimos — O'Neill concordou. — Nunca ouviu falar de um produto “chiado”.

Na base das montanhas se via o vasto cubo metálico da fábrica de Kansas City. Sua superfície fora corroída, pintada de radiação, ferida pelos cinco anos de guerra. A maior parte da fábrica estava enterrada, subterrânea, apenas seus estágios de entrada e saída são visíveis. O caminhão era um espectro manchado em alta velocidade em direção à extensão de metal preto. Uma abertura surgiu na superfície uniforme e o caminhão mergulhou e desapareceu lá dentro. A entrada se fechou.

— Agora é que o trabalho de verdade começa — disse O'Neill. -Agora temos que convencê-lo a encerrar as operações... a se desligar.

II
Judith O'Neill serviu café preto para as pessoas sentadas na sua sala de estar.
Seu marido falava enquanto os outros ouviam.
O'Neill era praticamente uma autoridade no sistema AUTOFAC. Em sua própria área, na região de Chicago, ele havia desativado a cerca protetora da fábrica tempo suficiente para fugir com fitas de dados. A fábrica, claro, construíu imediatamente uma defesa melhor, mas ele mostrou que as fábricas não eram infalíveis.

— O Instituto de Cibernética Aplicada — explicava O'Neill — tinha controle total sobre a rede. Culpe a guerra. Culpe o grande barulho ao longo das linhas de comunicação. Em qualquer caso, o Instituto não transmitiu as informações para as fábricas, a notícia de que a guerra acabara e de que estávamos prontos para retomar o controle das operações industriais.

— E enquanto isso — Morrison acrescentou amargamente — a maldita rede se expande e consome mais de nossos recursos naturais o tempo todo.

— Tenho a sensação — disse Judith — que se eu pissasse forte o bastante, caíria dentro de um túnel da fábrica. Eles devem ter minas por toda parte agora.

— Não há alguma ordem limitante? — Ferine perguntou nervoso. — Elas foram configuradas para se expandir indefinidamente?

— Cada fábrica está limitada à sua própria área operacional — respondeu O'Neill — mas a rede é ilimitada. Pode continuar a se apoderar de nossos recursos para sempre. O Instituto decidiu que isso teria alta prioridade; nós, meras pessoas, viríamos em segundo lugar.

— Será que sobrará algo para nós? — Morrison quis saber.

— Não, a menos que possamos parar as operações da rede. Suas equipes exploratórias estão fora o tempo todo, de todas as fábricas, procurando por matéria-prima.

— O que aconteceria se os túneis de duas fábricas se cruzassem?
O'Neill encolheu os ombros.

— Normalmente isso não aconteceria. Cada fábrica tem sua própria seção especial do nosso planeta, sua própria área privada para seu uso exclusivo.

— Mas pode acontecer.

— Bem, eles querem matéria-prima, enquanto houver algo, eles vão procurar.

O'Neill refletiu sobre a ideia com interesse.

— É algo a considerar. Eu suponho que as coisas ficam cada vez mais escassas...

Parou de falar.
Uma figura entrara na sala e ficou silenciosamente à porta, examinando todos eles.
Nas sombras a figura parecia quase humana. Por um breve momento O'Neill pensou ser alguém atrasado para a reunião. Então, à medida que avançava, percebeu que era um quasehumano, um chassi bípede vertical funcional, com receptores de dados montados no topo, ferramentas montadas em um corpo de verme que terminava sobre pinças ao chão.
Sua semelhança com um ser humano era um testemunho da eficiência da natureza sem nenhuma imitação sentimental.

O representante da fábrica começou a falar sem preâmbulo:

— Esta é uma máquina de coleta de dados, capaz de se comunicar em uma base oral. Contém aparelhos de transmissão e recepção e pode integrar fatos relevantes à sua linha de inquérito.

A voz era agradável, confiante. Obviamente uma fita gravada em algum Instituto técnico antes da guerra. Uma voz quase humana. Parecia grotesco. O'Neill podia imaginar o jovem morto, cuja voz alegre agora era emitida a partir da boca mecânica daquela máquina de aço.

— Uma palavra de cautela — continuou a voz agradável. — É inútil considerar esse receptor como sendo humano e envolvê-lo em discussões para as quais ele não está equipado. Para todos os propósitos, ela não é capaz de pensar conceitualmente; só pode trabalhar com o material já disponível.

A voz otimista clicou e uma segunda voz apareceu. Parecia com a primeira, mas agora não havia entonações ou maneirismos pessoais. A máquina estava utilizando outro padrão de discurso fonético, morto, para sua própria comunicação.

— A análise do produto rejeitado não mostrou elementos estranhos ou deterioração. O produto atende aos padrões de testes contínuos empregados em toda a rede. A rejeição apresenta, portanto, uma base que não está incluida nos testes padrões disponíveis para a rede.

— Isso mesmo — O'Neill concordou pesando suas palavras com cuidado. Continuou: — Encontramos leite de qualidade abaixo do padrão. Não o queremos. Insistimos em uma produção cuidadosa.

A máquina respondeu imediatamente:

— O conteúdo semântico do termo “chiado”, não é familiar para a rede. Não existe no vocabulário gravado. Pode apresentar uma análise em termos de elementos específicos presentes ou ausentes?

— Não — O'Neill disse cauteloso. O jogo que estava jogando era intrincado e perigoso. — Trata-se de um termo geral. Não pode ser reduzido a constituintes químicos.

— O que “chiado” significa? — Perguntou a máquina. — Você pode definir a palavra em termos alternativos com símbolos semânticos?

O'Neill hesitou. O representante tinha que ser orientado para um inquérito especial mais abrangente, para um problema que resultasse como solução o fechamento da rede. Se pudesse conduzí-lo a este ponto, poderia começar a discussão teórica...

— Chiado — afirmou — significa a condição de um produto que é fabricado quando não
existe necessidade. Isso indica na rejeição de objetos com base em que não são mais procurados.
O representante disse:

— A análise da rede mostra a necessidade de substituição pelo milho pasteurizado de alto grau nesta área. Não existe uma fonte alternativa, a rede controla todos os produtos sintéticos... do tipo mamário existente — acrescentou. — As instruções originais descrevem o leite como essencial para a dieta humana.

O'Neill estava sendo batido. A máquina estava retornando a discussão ao problema específico.
— Nós decidimos que não queremos mais leite. Nós preferimos ficar sem ele, ao menos até que possamos localizar vacas.

— Isso é contrário às fitas da rede — afirmou o representante. — Não existem vacas. Todo o leite é produzido sinteticamente.

— Então se vamos produzir de forma sintética — Morrison tentou impaciente — por que não podemos assumir as máquinas? Meu Deus, não somos crianças! Podemos tomar conta de nossas próprias vidas!
O representante da fábrica moveu-se em direção à porta.

— Até o momento que sua comunidade encontrar outras fontes de fornecimento de leite, a rede continuará a fornecer o leite. Aparelhos de análise e avaliação permanecerão nesta área, conduzindo a amostragem aleatória habitual.

Ferine gritou inútilmente: — Como podemos encontrar outras fontes? Vocês tem controlado tudo! Vocês estão à frente do show! Você diz que não estamos prontos para tomar conta, você afirma que nós não somos capazes. Como você sabe? Você não nos dá chance! Nós nunca teremos chance de prová-lo!

O'Neill estava petrificado. A máquina estava vencendo, a mente única tinha triunfado.

— Olhe — disse Ferine bloqueando-lhe o caminho. — Queremos que desligue, entende? Queremos assumir o seu equipamento e executá-lo nós mesmos. A guerra acabou. Droga, você não é necessário, não mais!

O representante da fábrica pausou brevemente na porta.

— O ciclo inoperante — disse — não está orientado a começar até que a produção da rede duplique totalmente a produção externa. E de acordo com nossa amostragem contínua, não há produção externa. Portanto, a rede continua.

Sem aviso, Morrison balançou no ar o tubo de aço à mão, acertando o ombro da máquina que explodiu. O reservatório de receptores quebrou-se, pedaços de vidro, fiação e peças minúsculas voaram para todo lado.

— É um paradoxo! — Morrison gritou. — Um jogo de palavras, um jogo semântico que eles estão jogando conosco. Os cibernéticos nos manipulam.

Ele ergueu a barra e voltou a acertá-lo selvagemente.

— Eles nos veem como um obstáculo. Estamos ferrados!

A sala se transformara num grande tumulto.

— É o único caminho — Ferine ofegou quando passou por O'Neill. — Teremos que destruí-los! Somos nós ou eles.

Agarrando uma luminária Ferine atirou no ‘rosto’ do representante da fábrica. A lâmpada e a intrincada superfície do plástico estouraram. 
Agora, todas as pessoas da sala estavam furiosamente em torno do cilindro ereto, o sentimento de impotência fervia. A máquina tombou enquanto a arrastavam.
Tremendo, O'Neill se afastou. Sua esposa pegou seu braço e levou-o para fora da sala.

— Os idiotas — disse ele abatido. — Não podem destruí-lo, só vão ensiná-los a construir mais defesas. Estão piorando tudo.

Na sala de estar chegou uma equipe de reparo da rede. As unidades mecânicas destacadas correram para o montículo de humanos, deslizando entre as pessoas e rapidamente carregaram a carcaça inerte do representante. As peças soltas foram coletadas, recolhidas e levadas. O suporte e a engrenagem de plástico localizadas. Então as unidades de resgate partiram.
Através da porta aberta veio um segundo representante da fábrica, uma duplicata exata do
primeiro. Lá fora no corredor estavam duas outras.
O atendimento seria aleatório, feito por um corpo de representantes. Como uma horda de formigas, máquinas móveis de coleta de dados tinham se espalhado pela cidade até que, por acaso, uma delas se deparou com O'Neill.

— A destruição de equipamentos móveis de coleta de dados da rede é prejudicial para os interesses humanos — o representante da fábrica informou. — A obtenção de matérias-primas se encontra perigosamente baixa; materiais básicos ainda existem e devem ser utilizados no fabrico de
bens de consumo.

O'Neill e a máquina estavam de frente um para o outro.

— Oh? — O'Neill disse suavemente. — Isso é interessante. Eu pensava se você seria mais baixo... e imaginava o quanto você estaria disposto a lutar.


Os rotores do helicóptero gemiam de forma acentuada acima da cabeça de O'Neill, ele ignorou e olhou através da janela da cabine para o chão não muito abaixo.
Entulhos e ruínas em todos os lugares. As ervas daninhas procuravam seu caminho para cima, entre colônias de insetos. Aqui e ali as colônias de ratos eram visíveis, emaranhados construídos de ossos e destroços. A radiação havia mutacionado os ratos, juntamente com a maioria dos insetos e animais.
Um pouco mais longe, O'Neill identificou um esquadrão de pássaros perseguindo um esquilo. O esquilo mergulhou em uma brecha cuidadosamente cavada na superfície da escória e os pássaros se afastaram frustrados.

— Você acha que reconstruiremos as cidades? — Morrison perguntou. — Fico doente de olhar pra isso.

— Com o tempo — O'Neill respondeu. — Assumindo é claro, que recuperaremos o controle industrial.

E assumindo que resta algo com que trabalhar. Na melhor das hipóteses, levará tempo. Teremos que deixar os assentamentos.

À direita havia uma colônia humana, magros espantalhos esfarrapados vivendo entre as ruínas do que antes era uma cidade. Alguns hectares de solo árido haviam sido limpos; os vegetais balançavam ao sol, as galinhas bicavam vagarosamente aqui e ali, um cavalo ofegante na sombra de um galpão grosseiro.

— Moradores de ruínas — O'Neill deixou escapar sombrio — longe da rede ou de qualquer fábrica.

— É culpa deles — disse Morrison com raiva. — Eles poderiam viver em um dos assentamentos.

— Essa era a sua cidade. Eles estão tentando fazer o que nós estamos tentando fazer, construir coisas novamente por conta própria. Mas eles estão começando agora, sem ferramentas ou máquinas, com as mãos nuas, juntando fragmentos de escombros. E não vai funcionar. Precisamos de máquinas. Não podemos reparar ruínas, nós temos que assumir a produção industrial.
Dirigiam-se a uma série de colinas, restos do que já havia sido uma cordilheira. Além a ferida titânica da cratera de bomba H, meio cheia de água estagnada, lodo e doença.
E além dali um brilho de movimento incessante de caminhões de transporte de minérios.

— Lá — O'Neill disse baixando o helicóptero. — Você consegue dizer de qual fábrica são?

— Todos parecem iguas pra mim — Morrison murmurou, inclinando-se para ver. — Vamos ter que esperar e segui-los, quando vierem com um carregamento.

— Se conseguirem um — corrigiu O'Neill.

A equipe de exploração da fábrica automática ignorou o zumbido do helicóptero e se concentrou em seu trabalho. À frente do caminhão principal dois tratores abrindo seu caminho até montes de entulho, sondas como penas eriçadas. Subindo o declive distante, desceram em um cobertor de cinzas que espalhavam-se sobre a escória. Os dois tratores cavaram até que somente suas antenas fossem visíveis. Então explodiram na superfície, seus trilhos zumbindo e cavando.

— O que estão procurando? — Morrison perguntou.

— Deus sabe — O'Neill folheou atentamente os papéis em sua prancheta. — Nós teremos que
analisar todas as nossas fichas de pedidos.

Abaixo deles a equipe desapareceu ficando para trás. O helicóptero passou por um
deserto de areia onde nada se movia. Um feio bosque de matagais apareceu e então, muito à direita, uma série de pequenos pontos em movimento.
Uma procissão de carrinhos de minério automáticos estava correndo sobre o terreno escaldante, uma série de caminhões de metal seguindo um ao outro.
O'Neill virou o helicóptero para eles e, alguns minutos depois, pairavam acima da própria mina.
Equipamentos de remoção tinham chegado às operações. Carrinhos vazios esperavam nas filas pacientemente. Um fluxo constante de carrinhos carregados seguia rumo ao horizonte, derrubando um pouco do minério.

— Ai vem a equipe exploradora — observou Morrison. — Você acha que talvez eles se enrosquem?
  
— Não, acho que é esperar demais. É agora! Estão procurando substâncias diferentes. Estão condicionados a ignorar um ao outro.

O primeiro dos insetos exploradores atingiu a linha de carrinhos de minério. Virou ligeiramente e
continuou a procura, os carrinhos viajavam em sua linha inexoravel como se nada tivesse acontecido.
Decepcionado, Morrison se afastou da janela.

— É inútil. É como se um não existisse para o outro.

Gradualmente a equipe exploradora se afastou da linha de carrinhos, além das operações de mineração.

— Talvez eles sejam da mesma fábrica — disse Morrison com esperança.

O'Neill apontou para as antenas visíveis nos principais equipamentos de mineração.

— Suas antenas estão viradas para um vetor diferente, então representam duas fábricas. Vai ser difícil, teremos que ser precisos ou não haverá qualquer reação.

Ele clicou no rádio. — Qualquer resultado nos registros de pedidos consolidados?
O operador colocou-o em contato com os escritórios de administração no assentamento.

— Começaram a chegar — disse Ferine. — Assim que recebemos amostragens suficientes,
tentaremos determinar quais matérias-primas que as fábricas procuram. Vai ser arriscado tentar
extrapolar a partir de produtos complexos. Pode haver uma série de elementos básicos comuns.

— O que acontecerá quando identificamos o elemento faltando? — Morrison quis saber. — O que acontecerá quando tivermos duas fábricas tangentes procurando pelo mesmo material?

— Então — disse O'Neill com severidade — começaremos a coletar o material nós mesmos, mesmo que tenhamos que derreter cada objeto nos assentamentos.

III
Na escuridão da noite um vento fraco se agitou e logo morreu. De vez em quando um roedor noturno rondava com seus sentidos hiperalertas, espiando, planejando, na busca de comida.
A área era selvagem. Não existiam assentamentos humanos por quilômetros, toda a região tinha sido aplainada e cauterizada por repetidas explosões de bombas H.
Em algum lugar na escuridão sombria, um lento gotejamento de água abriu caminho entre as escórias e as ervas daninhas, pingando do que antes havia sido um elaborado labirinto de redes de esgoto. Os canos rachados e quebrados subindo pela escuridão noturna, coberta pela vegetação rastejante. O vento criou nuvens de cinzas pretas que giraram e dançaram entre as ervas daninhas. Um enorme ganso mutante agitou-se sonolento, puxou seu casaco protetor de trapos ao seu redor e voltou a dormir.

Por um tempo não houve qualquer movimento.
Uma série de estrelas apareceu no céu acima, brilhando remotamente.
Earl Ferine estremeceu e se aconchegou mais perto do ponto de calor pulsante colocado no chão entre os três homens.

— Então...? — Morrison começou.

O'Neill não respondeu. Terminou o cigarro, esmagou-o contra um montículo de escória e tirando o isqueiro acendeu outro.
A massa de tungstênio, a isca, fora colocada uma centena de metros à frente deles.
Durante os últimos dias, as fábricas de Detroit e Pittsburgh haviam ficado sem tungstênio. E em pelo menos um setor cessou as atividades.

A pilha baixa continha ferramentas de corte de precisão, peças tiradas de interruptores elétricos, equipamentos cirúrgicos de alta qualidade, secções de ímãs, dispositivos de medição, ou seja, tungstênio de todas as fontes possíveis, reunidas febrilmente de todos os assentamentos.
Uma névoa escura estava espalhada ao redor do montículo de tungstênio.
Ocasionalmente um inseto noturno sobrevoava a pilha, atraído pelo reflexo da luz das estrelas.
O inseto batia suas asas alongadas e fúnebres contra o emaranhado de metal entrelaçado e depois se afastava para trepadeiras espessas que se erguiam dos tocos de tubos de esgoto.
— Não é um lugar muito bonito — ironizou Ferine.

— Não se engane — retrucou O'Neill. — Este é o lugar mais bonito da Terra. Este é o ponto que marca o túmulo da rede AUTOFAC. As pessoas virão aqui algum dia. Haverá uma placa aqui.

— Você está tentando manter a moral — Morrison bufou. — Você não acredita que elas estão vindo
para matar-se sobre um monte de ferramentas cirúrgicas e filamentos de lâmpadas. Provavelmente tem uma máquina no nível inferior que suga o tungstênio da rocha.

— Talvez — disse O'Neill dando uma bofetada num mosquito.

O inseto esquivou-se e depois zumbiu para irritar Ferine. Ferine acertou-o violentamente e a coisa pousou na vegetação.
Aquilo que eles vieram ver estava começando a acontecer.
O'Neill percebeu que estava olhando por vários minutos sem reconhecer isso.
O inseto de busca permaneceu absolutamente imóvel. Descansou na crista de um pequeno montículo de terra, sua extremidade anterior levemente levantada, receptores totalmente estendidos. Nenhuma atividade de nenhum tipo, nenhum sinal de vida ou consciência.
O inseto de busca perfeitamente equipado, sem desperdícios, na paisagem incendiada. Chapas pequenas e algumas poucas engrenagens. Descansou e esperou. E observou.
Estava examinando o monte de tungstênio.
A isca pronta para a primeira mordida.

— Mordeu — Ferine disse abrupto.

— O que diabos você está falando? — Morrison grunhiu e então também viu o inseto de busca.

— Jesus — sussurrou. Levantou-se. — Bem, temos um. Agora, tudo o que precisamos é uma unidade da outra fábrica. De onde você acha que é?

O'Neill localizou a antena de comunicação e rastreou seu ângulo.

— Pittsburgh, então reze por Detroit... reze como louco.

Satisfeito, o inseto de busca se separou do chão e avançou aproximando-se cautelosamente da pilha, começando uma série de manobras intrincadas, primeiro de um lado e depois de outro.
Os três homens observavam pedrificados, até que vislumbraram as antenas de sondagem de outros insetos de busca.

— Comunicação — disse O'Neill suavemente. — Como abelhas.

Agora cinco insetos de Pittsburgh estavam se aproximando da pilha de produtos de tungstênio. Receptores acenando excitadamente, aumentando o ritmo, correndo em uma explosão repentina do lado do monte até o topo. Um inseto desapareceu rapidamente e todo o monte estremeceu; o inseto estava dentro, explorando a extensão do achado.
Dez minutos depois, os primeiros carrinhos de minério de Pittsburgh apareceram.

— Droga! — O'Neill disse irritado — Eles vão pegar tudo antes de Detroit aparecer.

— Não podemos fazer nada para retardá-los? — Ferine perguntou impotente. De pé ele pegou uma rocha e a atirou no carrinho mais próximo. A rocha acertou o carrinho que continuou seu trabalho, imperturbável.

O'Neill levantou-se com fúria. Onde eles estavam? As AUTOFACs eram iguais em todos os aspectos e o local escolhido ficava exatamente à mesma distância linear de cada centro. Teoricamente as fábricas deveriam ter chegado simultaneamente. No entanto, não havia nenhum sinal de Detroit, e os últimos pedaços de tungstênio estavam sendo carregados diante de seus olhos.
Então algo passou por ele.

Ele não reconheceu, pois o objeto se movia muito rápido, como uma bala entre os emaranhados de cipós, correu pelo lado da crista da colina, e avançou pelo lado oposto. Esmagou-se diretamente contra o carrinho. Projétil e vítima destruídos em uma explosão abrupta de som.
Morrison saltou.

— Que diabos!

— É isso aí! — Ferine gritou, dançando e acenando com seus braços magros. — É Detroit!
Um segundo inseto de pesquisa de Detroit apareceu, hesitou diante da situação e, em seguida,
lançou-se furiosamente contra os carrinhos de Pittsburgh em retirada. Fragmentos de tungstênio espalhados, peças, fiação, placas quebradas, engrenagens e molas e parafusos dos dois antagonistas voaram em todas as direções.

Os carrinhos remanescentes rodavam desnorteados, um deles despejou sua carga e partiu em velocidade máxima. Um segundo seguiu-o, ainda pesado com a carga. Um inseto de Detroit alcançou-o e acertou-o diretamente. Inseto e carrinho rolaram numa trincheira rasa, uma bacia de água estagnada. Gotejando, os dois lutavam meio submersos.

— Bem — O'Neill disse inseguro — nós conseguimos. Podemos voltar para casa — suas pernas ficaram fracas. — Onde está o nosso veículo?

Quando ele olhou na direção do caminhão, algo apareceu muito longe, algo grande e
metálico, movendo-se sobre as cinzas. Era um coágulo denso de carrinhos, uma sólida extensão de transportes pesados de minério. De que fábrica seriam?
Não importava, pois além do espesso emaranhado de cipós negros, uma rede de contramedidas estava rastejando para encontrá-los. Ambas as fábricas estavam mandando suas unidades móveis. De tudo direções, os insetos deslizaram e se arrastavam, fechando-se em torno do monte remanescente de tungstênio.

A fábrica não iria permitir que a matéria-prima necessária escapasse, nem desistiria da sua descoberta. Cegamente, mecanicamente, no controle de diretrizes inflexíveis, os dois adversários trabalhavam para mostrar suas forças superiores.

— Vamos — Morrison disse com urgência. — Vamos sair daqui. O inferno está solto!

O'Neill apressadamente virou o caminhão na direção do assentamento, através da escuridão do caminho de volta. De vez em quando uma forma metálica disparava passando por eles, indo na direção oposta.

— Você viu a carga nesse último carrinho? — Ferine perguntou preocupado. — Não estava vazio.
Nem os carrinhos que o seguiram, uma procissão inteira de transportadores de suprimentos
dirigido por uma elaborada unidade de exploração de alto nível.

— Armas — disse Morrison, com os olhos arregalados de apreensão. — Estão pegando armas. Mas quem é que vai usá-las?

— Eles vão — respondeu O'Neill e indicou a sua direita. — Olhe! Isso é algo que não esperávamos.
Os representantes da fábrica estavam em ação.

Quando o caminhão entrou no assentamento de Kansas City, Judith apressou-se a encontrá-los. Agitava em sua mão uma tira de papel metálico.

— O que é isso? — O'Neill quis saber.

Sua esposa lutava para recuperar o fôlego.

— Um carrinho deixou cair e foi embora. É emocionante, Deus, a fábrica brilha com tantas luzes. Você pode vê-la a quilômetros.

O'Neill pegou o papel. Era uma mensagem da fábrica para o grupo nos assentamentos, uma tabulação das necessidades solicitadas e analisadas pela fábrica. Carimbado na lista em um tipo preto e pesado, havia sete palavras:

TODAS AS ENTREGAS SUSPENSAS ATÉ NOVAS ORDENS.

O'Neill entregou o papel para Ferine.

— Não vai haver mais bens consumíveis — disse ironicamente, um sorriso nervoso se agitando em seu rosto. — A rede está em guerra.

— Então nós fizemos isso? — Perguntou Morrison.

— Sim — afirmou O'Neill.

Agora que o conflito tinha sido provocado, sentiu um frio e crescente terror.

— Pittsburgh e Detroit vão se eliminar.


IV
A luz fria do sol da manhã atravessava a planície arruinada de cinzas metálicas pretas. A cinza ardia em um vermelho perigoso; ainda estava quente.

— Cuidado por onde anda — advertiu O'Neill agarrando o braço de sua esposa. Ele a guiou do
caminhão enferrujado ao topo de uma pilha de blocos de concreto espalhados.

Earl Ferine o seguia fazendo o caminho com cuidado, hesitante.
Atrás deles o povoado espalhado, um tabuleiro desordenado de casas, edifícios e ruas.
Uma vez que a rede de AUTOFAC encerrara seu fornecimento e manutenção, os assentamentos humanos caíram na semibarbárie. Muitas mercadorias foram destruídas e eram apenas parcialmente utilizáveis.
Fazia mais de um ano que o último caminhão da fábrica havia aparecido carregado com comida, ferramentas, roupas e peças de reparo.
Da extensão plana de concreto escuro e metal ao pé das montanhas nada mais veio de lá.
Seu desejo fora realizado, eles foram cortados, separados da rede.
Estavam por conta própria.

Ao redor do assentamento cresciam campos de trigo e hastes esfarrapadas de legumes queimados pelo sol. Ferramentas brutas artesanais foram distribuídas, artefatos primitivos marcados pelo trabalho em vários assentamentos. Os assentamentos estavam ligados apenas por carroças puxadas por cavalos e pelo telégrafo que mal funcionava.

No entanto eles conseguiram manter alguma organização. Os bens e serviços eram trocados em
uma base lenta e estável. As mercadorias básicas eram produzidas e distribuídas. A roupa que O'Neill e sua esposa e Earl Ferine usavam era grosseira e não branqueada, mas era robusta. E eles conseguiram converter alguns dos caminhões de gasolina para vapor.

— Aqui estamos — disse O'Neill. — Podemos ver daqui.

— Vale a pena? — Judith perguntou, exausta. — É um longo caminho para ver algo que todos já viram durante treze meses.

— É verdade — admitiu O'Neill, sua mão descansando brevemente no ombro da esposa. — Mas pode ser a última vez. E é isso que queremos ver.

No céu cinzento acima deles, um ponto rápido preto e opaco se moveu. No alto o ponto girou e deu voltas, seguindo um curso intrincado e cauteloso. Gradualmente seus movimentos o levaram em direção às montanhas e a escuridão dos resíduos das bombas.

— São Francisco — explicou O'Neill. — Um daqueles projéteis de longo alcance vindos da costa oeste.

— E você acha que é o último? — Ferine perguntou.

— É o único que vimos este mês — O'Neill sentou-se e começou a polvilhar pedaços secos de tabaco em um papel marrom. — E costumávamos ver centenas deles.

— Talvez eles tenham algo melhor — sugeriu Judith. Ela encontrou uma pedra lisa e sentou-se cansada. — Não?

O marido sorriu ironicamente. — Não. Eles não têm nada melhor.

Os três ficaram silenciosos. Acima deles, o ponto circundante preto aproximou-se.
Não havia sinal de atividade da superfície plana de metal e concreto, a fábrica de Kansas City
permanecia inerte. Algumas ondas de cinza quente sobre ela, debaixo de escombros. A fábrica recebera inúmeros impactos diretos. Em toda a planície, os sulcos de seus túneis subterrâneos ficaram expostos, entupidos com escombros e trepadeiras na escuridão.

— Essas malditas trepadeiras — disse Ferine pegando uma ferida em seu queixo não barbeado. — Estão tomando conta do mundo.

Aqui e ali em torno da fábrica, a ruína enferrujada no orvalho da manhã. Carrinhos, caminhões, exploradores, representantes de fábrica, porta-armas, armas, suprimentos, trens, projéteis subterrâneos, partes indiscriminadas de máquinas misturadas e fundidas em pilhas sem forma. Alguns haviam sido destruídos voltando para a fábrica; outros o foram quando emergiram totalmente carregados, pesados de equipamentos. A própria fábrica, o que restara dela, parecia ter se refugiado mais profundamente na terra. Sua superfície superior era quase visível.
Em quatro dias não houvera atividade perceptível, nenhum movimento visível de qualquer tipo.

— Está morta — disse Ferine. — Você pode ver que está morta.

O'Neill não respondeu.
Agachado, ele se sentou confortavelmente para esperar.
Em sua mente tinha certeza de que algum fragmento de automação permanecera na fábrica destruída.
O tempo diria.

Examinou o relógio de pulso; eram oito e trinta. Nos velhos tempos a fábrica começaria sua rotina diária. As procissões de caminhões e unidades móveis variadas viriam à superfície, carregadas de suprimentos, para começar suas entregas nos assentamentos humanos.
Algo se agitou à direita. Rapidamente ele voltou sua atenção para aquilo.
Um único e maltratado carrinho de recolhimento de minério estava rastejando desajeitadamente em direção à fábrica. Uma última unidade móvel danificada tentando completar sua tarefa. O carrinho estava praticamente vazio; alguns minúsculos pedaços de metal ficaram presos na caçamba. Um ladrão... O metal era de equipamentos destruídos encontrados no caminho. Contudo, como um inseto metálico cego, o carrinho aproximou-se da fábrica.
Seu progresso foi incrivelmente irritante. De vez em quando parava e estremecia, e vagava sem rumo fora do seu caminho.

— O controle não está funcionando — Judith disse com um tom de horror em sua voz. — A fábrica está tendo problemas para guiá-lo de volta.

Sim, ele já tinha visto isso. Em Nova York a fábrica perdeu completamente o transmissor de alta freqüência. Suas unidades móveis haviam se transformado em piões malucos, correndo de forma aleatória em círculos, batendo contra rochas e árvores, deslizando para dentro das escavações, caindo, finalmente tornando-se relutantemente inanimados.
O carrinho de minério atingiu a borda da planície e parou brevemente.
Acima disso, o ponto preto ainda circulava no céu.
Por um tempo, o carrinho permaneceu congelado.

— A fábrica está tentando decidir — disse Ferine. — Precisa do material, mas tem medo daquele pássaro de metal lá em cima.

Em seguida o carrinho de minério novamente retomou seu rastejar instável. Deixou o emaranhado de trepadeiras e começou a atravessar a planície aberta. Dolorosamente, com cuidado infinito, ele se dirigiu para a laje de concreto escuro e metal na base das montanhas.
O pássaro parou de circular.

— Abaixe-se! — O'Neill disse bruscamente. — São aquelas novas bombas dirigíveis.

Sua esposa e Perine se agacharam ao lado dele e os três olharam cautelosamente para o inseto de metal rastejando laboriosamente. No céu o projétil desceu em linha reta até estar diretamente sobre o carrinho. Então, sem som ou aviso, desceu em um mergulho direto.

Com as mãos em seu rosto, Judith gritou: — Eu não posso assistir! É horrível! São como animais selvagens!

— Ele não está atrás do carrinho — O'Neill observou.

À medida que o projétil caia, o carrinho aumentou a velocidade desesperadamente, correndo ruidosamente em direção à fábrica, clamando e chocalhando, uma última e inútil tentativa de alcançar a segurança. Esquecendo a ameaça acima, a fábrica ansiosa guiou a unidade diretamente para dentro dela.

Era o que o pássaro-projétil queria.
Antes que a barreira pudesse fechar, avançou paralela com o chão. À medida que o carrinho desapareceu nas profundezas da fábrica, o projétil acelerou atrás do brilho de metal que era gerado pelo carrinho. De repente a fábrica percebeu e fechou a barreira.
Grotescamente o carrinho foi pego na entrada meio fechada.
Mas não importava. O chão moveu-se, ondulou e caiu.
Uma onda de choque profundo passou por baixo dos três humanos.
Da fábrica subia uma única coluna de fumaça negra.
A superfície do concreto estava dividida como uma vagem seca. Enrugada e quebrada.
A fumaça permaneceu por um tempo vagando sem rumo com o vento da manhã.
A fábrica era um naufrágio destruído, penetrado e arrasado.
O'Neill disse firme:

— É isso. Tudo bem. Temos o que queríamos, destruímos a rede AUTOFAC. — E olhando para Ferine. — Não era o que estávamos querendo?

Eles olharam para o assentamento que estava atrás deles. Pouco restara em ordem das casas e ruas dos anos anteriores. Sem a rede, o assentamento decaía rapidamente. A limpeza original próspera se dissipara; O assentamento estava em mau estado, mal conservado.

— É claro — Perine disse hesitante. — Uma vez que entrarmos nas fábricas e começamos a configurar nossas próprias linhas de montagem...

— Sobrou alguma coisa? — Judith perguntou.

— Algo deve ter sobrado. Meu Deus... havia níveis subterrâneos por quilometros abaixo!

— Algumas dessas últimas bombas eram muito grandes — Judith observou. -Melhor do que qualquer coisa que tivemos em nossas guerras.

— Lembre-se do campo que vimos? Os posseiros das ruínas?

— Eu não estava junto — disse Ferine.

— Eram animais selvagens, comendo raízes e larvas. Afiando rochas, curtindo peles. Selvageria e bestialidade.

— Mas é isso que aquelas pessoas desejam — respondeu Ferine defensivamente.

— As pessoas? Nós queremos isso? — O'Neill indicou o assentamento. — Era isso que nós
procurávamos naquele dia que reunimos o tungstênio? Ou naquele dia que dissemos ao caminhão da fábrica que o leite era... — não conseguiu se lembrar da palavra.

— Chiado — Judith lembrou-o.

— Vamos lá — disse O'Neill. — Vamos ver o que resta da fábrica, o que ela deixou para nós.·.

Se aproximaram da fábrica arruinada no final da tarde.
Quatro caminhões com seus motores a vapor e canos de escape pingando pararam à borda do poço trilhado. Trabalhadores desceram e pisaram cautelosamente a cinza quente.

— Talvez seja muito cedo — um deles objetou.

O'Neill não tinha intenção de esperar.

— Vamos — ordenou agarrando uma lanterna e descendo pela cratera.

A barreira de proteção da fábrica de Kansas City ficava diretamente à frente. Em sua boca o carrinho de minério ainda estava pendurado, mas já não estava mais lutando. Além do carrinho, havia uma piscina ameaçadora de escuridão.

O'Neill jogou a luz pela entrada; restos de apoios irregulares ficaram visíveis.
— Precisamos descer fundo — disse ele a Morrison cautelosamente ao lado. — Se restou algo, está no fundo.

Morrison grunhiu.

— Aquelas toupeiras de Atlanta chegaram na maioria das camadas profundas.

— Até suas minas ruirem — O'Neill pisou com atenção a entrada, subiu num monte de detritos que haviam sido jogados contra a fenda de dentro, e se descobriram dentro da fábrica, uma extensão de destroços confusos sem padrão ou significado.

— Entropia — Morrison respirou fundo deprimido. — Sempre odiara. Sempre lutara contra. Partículas aleatórias em todos os lugares. Nenhum objetivo.

— Lá embaixo — O'Neill disse obstinadamente — podemos encontrar alguns enclaves selados. Eu sei que eles começaram a dividir-se em seções autônomas, tentando preservar as unidades de reparo intactas, para reformar a fábrica.
Atrás deles os operários vinham devagar. Uma seção de destroços ruiu em um banho de fragmentos quentes em cascata.

— Vocês homens voltem para os caminhões — ordenou O'Neill. — Não faz sentido colocar em perigo mais de nós do que o preciso. Se Morrison e eu não voltarmos, esqueçam-nos, não arrisquem enviar uma equipe de resgate.

Eles se foram. Morrison apontou uma rampa descendente ainda parcialmente intacta.

— Vamos descer.

Silenciosamente os dois homens passaram de um nível morto após o outro. Quilometros infinitos de ruína sombria, sem som ou atividade. Formas vagas de máquinas escurecidas, imóveis,
e equipamentos de transporte parcialmente visíveis, e armas de guerra parcialmente concluídas,
projéteis, curvados e retorcidos pela explosão final.

— Nós podemos salvar alguns desses — disse O'Neill sem acreditar. A maquinaria estava fundida, sem forma. Tudo na fábrica tinha sido fundido, sem uso.

— Uma vez que levarmos para a superfície...

— Não podemos — Morrison o contradisse amargamente. — Não temos guindastes ou guinchos — chutou uma pilha de materiais carbonizados.

— Parecia uma boa idéia — disse O'Neill enquanto os dois continuavam. — Mas agora não tenho tanta certeza.

Tinham penetrado bastante na fábrica.
O'Neill apontava a luz aqui e ali, tentando localizar seções não destruídas, porções do processo de montagem ainda intacto.
Foi Morrison quem sentiu primeiro. De repente caiu sobre as mãos e joelhos; o corpo pesado
pressionado contra o chão, e se deitou ouvindo com os olhos arregalados.

— Pelo amor de Deus...

— O que é? — O'Neill gritou. Então ele também sentiu. Debaixo deles, uma fraca e insistente vibração no chão, um zumbido constante de atividade. Eles estavam errados. A bomba-pássaro não fora totalmente bem sucedida. Abaixo, em um nível mais profundo, a fábrica ainda estava viva. Continuava com as operações limitadas.

— Sozinha — O'Neill murmurou, procurando um elevador de descida.

— Atividade autônoma, definida para continuar depois que o resto se foi. Como descemos?

O elevador de descida estava quebrado, selado por uma espessa seção de metal.
A vida debaixo de seus pés estava completamente isolada; não havia entrada.
Correndo de volta pelo caminho que vieram, O'Neill chegou à superfície e foi até o primeiro caminhão.

— Onde está o maçarico?

O precioso maçarico foi passado para ele e ele correu de volta às profundezas da fábrica arruinada onde Morrison esperava. Juntos os dois começaram a cortar freneticamente através do revestimento de metal entortado, queimando as camadas seladas da malha de proteção.

— Está funcionando — Morrison ofegou entrecerrando os olhos no brilho da tocha.

A placa caiu com um CLANG, desaparecendo no nível abaixo.
Uma luz branca explodiu em torno deles e os dois homens recuaram.
Na câmara selada a atividade furiosa cresceu e ecoou, um processo constante de correias móveis, máquinas e ferramentas zumbindo, supervisores mecânicos movendo-se rápido.
Em uma extremidade um fluxo constante de matérias-primas entravam na linha de montagem, no extremo oposto, o produto final era retirado, inspecionado e jogado em um tubo transportador.
Tudo isso ficou visível por uma fração de segundo e então a intrusão foi descoberta. Um robô apareceu. A linha de montagem de repente congelou sua atividade furiosa. As máquinas clicaram e ficaram em silêncio. Em uma extremidade, uma unidade móvel se separou e acelerou em direção ao buraco que O'Neill e Morrison tinham cortado. Ergueu uma vedação de emergência no lugar e apertou-a com força.

Um momento depois o chão estremeceu quando a atividade recomeçou.
Morrison, pálido e tremendo, virou-se para O'Neill.

— O que eles estão fazendo?

— Não são armas — disse O'Neill.

— Está sendo enviado — Morrison gesticulou convulsivamente — à superfície.

O'Neill ergueu-se tremendo.

— Podemos localizar o local?

— Eu acho que sim.

— Melhor — O'Neill apontou a lanterna para a rampa — ver que coisas são essas.


A saída do tubo de transporte estava escondida em um emaranhado de cipós e ruínas, duzentos metros além da fábrica. Em uma abertura na rocha da base das montanhas, como um bocal móvel.
De tempos em tempos uma pelota era expelida, disparada para o céu.
O bocal alterava seu ângulo de deflexão e cada pelota era lançada em uma trajetória diferente.

— Quão longe estão alcançando? — Morrison se perguntou.

— Varia, estão sendo distribuídas ao acaso — O'Neill avançou com cautela, mas o mecanismo não o detectou.

Amassada contra o alto da rocha estava uma pelota que por acidente o bocal lançara diretamente na encosta da montanha.
O'Neill subiu a rocha e pulou para perto.
A pelota era um recipiente esmagado de pequenos elementos metálicos minúsculos, difíceis de serem analisados ​​sem um microscópio.

— Não é uma arma — disse O'Neill.

O cilindro se dividira. No começo ele não sabia se devido ao impacto ou se fora deliberado.
Do interior da pelota, pedaços de metal deslizavam para fora.
Agachado O'Neill os examinou.
Os pedaços estavam em movimento. Maquinaria microscópica, menor do que formigas, menor do que a cabeça de um alfinete, trabalhando energeticamente, propositadamente construindo algo que parecia um pequeno retângulo de aço.

— Eles estão construindo — disse O'Neill impressionado.

Não muito longe dali encontrou uma pelota aberta, muito mais avançada em sua tarefa.
Pelo visto fora lançada há algum tempo.
Esta tinha feito um progresso já suficientemente grande para ser identificado.
A estrutura era familiar.

As máquinas estavam construindo uma réplica em miniatura da fábrica.

— Bem — O'Neill disse pensativamente — estamos de volta ao ponto onde começamos. Se para melhor ou para pior... Eu não sei.

— Acho que elas devem estar em toda a Terra agora — sussurrou Morrison — pousando em todos os lugares e começando a construir.

Um pensamento atingiu O'Neill.

— Talvez algumas delas sejam orientadas a escapar da gravidade do planeta. Seriam redes autênticas, AUTOFACs por todo o universo.

Atrás dele o bocal continuava a lançar suas sementes.

FIM.