domingo, 2 de agosto de 2015

Aliens - Alan Dean Foster (Parte 3)


Ouvir era difícil. Enxergar estava fora de questão. Sua garganta tomada como se por carvão; preto e seco, e com um sabor levemente resinoso. Sua língua moveu-se vagamente sobre o território há muito esquecido. Tentou lembrar como fazia para falar. Seus lábios se separaram. O ar veio correndo de seus pulmões, e os longos foles dormentes doeram com o esforço. O resultado desta interação extenuante entre lábios, língua, palato e pulmões foi um pequeno triunfo na forma de uma palavra, que flutuou pela sala.

— Sede.

Algo suave e fresco deslizou entre seus lábios. O choque de umidade a desnorteou.
Sua memória quase a levou a rejeitar o tubo de água. Em outro tempo e lugar este tipo de inserção fora o prelúdio para uma morte particularmente repugnante, no entanto, apenas a água fluiu a partir deste tubo, acompanhada por um conselho entoado por uma voz calma.

— Não engula. Sorva bem devagar.

Ela obedeceu, embora uma parte de sua mente gritasse com ela para sugar o líquido e restabelecer-se o mais rápido possível.
Curiosamente não se sentia desidratada, só com muita sede.

— Bom — sussurrou com a voz rouca. — Tem alguma coisa mais substancial?

— É muito cedo — disse a voz.

— O diabo que é. Que tal um suco de frutas?

— O ácido cítrico vai te rasgar por dentro — a voz hesitou, considerando, e em seguida, disse: — Tente isto.

Mais uma vez o tubo de metal reluzente deslizou suavemente em sua boca.
Ela chupou-o com prazer. Chá gelado açucarado em cascata para baixo de sua garganta, acalmando tanto a sede quanto seus primeiros desejos por comida.
Quando satisfeita, fez que sim, e o tubo foi retirado.

Um novo som assaltou seus ouvidos: o trinado de um pássaro exótico.

Ela podia ouvir e saborear; Agora era hora de ver.
Seus olhos se abriram para uma vista de floresta tropical intocada. Árvores erguiam-se espessas e verdes para o céu. Criaturas aladas iridescentes brilhantes zumbiam esvoaçavando de galho em galho. Pássaros mergulhavam e disparavam em busca de insetos. Um quetzal espiou para ela de sua casa no tronco de uma figueira.

Orquídeas floresciam esplendorosas e besouros corriam entre as folhas e ramos como jóias ambulantes. Uma cutia apareceu, olhou para ela e fugiu de volta para o mato.
A esquerda de uma grande árvore, um bugio pendia num galho, cantarolando baixinho para seu bebê.

A sobrecarga sensorial foi demais.
Fechou os olhos para a profusão tagarelante de vida.

Mais tarde (outra hora? Outro dia?) uma rachadura apareceu no meio das raízes da grande árvore. A divisão aumentou para obliterar o torso de um sagüi. Uma mulher saiu da abertura e fechou-se atrás dela, selando a ferida sem derramamento de sangue animal. Tocou um interruptor escondido na parede e a floresta tropical foi embora.

Bom demais para ser verdade, e, agora que tinha sido desligada, Ripley podia ver o equipamento médico complexo que tinha sido camuflado pela floresta tropical.
À sua esquerda estava o robô médico que tinha respondido tão atenciosamente ao seu pedido de água e em seguida chá frio. A máquina imóvel, junto da parede, estava consciente de tudo o que se passava dentro de seu corpo, pronta para ajustar a medicação, fornecer comida e bebida, ou pedir ajuda humana em caso de necessidade.

A recém-chegada sorriu para ela e usou um controle remoto ligado ao bolso do peito para levantar o encosto da cama de Ripley. O adesivo em sua camisa identificou-a como um técnico médico sênior. Ripley olhou-a com cautela, incapaz de dizer se o sorriso da mulher era genuíno ou rotina. Sua voz era agradável e maternal, sem ser enjoativa.




— A sedação está no fim. Não acho que você precisa de mais. Você pode me entender?

Ripley assentiu. A técnica avaliou a aparência de seu paciente e chegou a uma decisão. — Vamos tentar algo novo. Por que eu não abro a janela?

— Desisto. Por que não?

O sorriso enfraqueceu nos cantos, mas foi prontamente recarregado. Profissional e pragmatico, não era sincero. E por que deveria ser? Não conhecia Ripley, e Ripley não a conhecia. E daí?

 A mulher apontou seu controle remoto para a parede em frente.

— Cuidado com seus olhos.

Agora uma escolha “non sequitur” para você, Ripley pensou. No entanto, apertou os olhos contra o brilho.

Um motor cantarolou baixinho, e a placa da parede deslizou para o teto.
Uma luz encheu a sala. Embora filtrada, ainda um choque para Ripley.



Do lado de fora havia um grande nada. Além do nada havia tudo. Vários módulos habitacionais da estação Gateway formando um laço para a esquerda, as células de plástico presas juntas como blocos infantis. Um par de antenas de comunicações viradas para baixo. Dominando a cena estava a curva brilhante da Terra. A África era uma mancha marrom, nadando em um oceano azul, o Mediterrâneo uma tiara de safiras coroando o Sahara.

Ripley já tinha visto isso antes, na escola e, depois, pessoalmente. Não estava particularmente emocionada com a vista tanto quanto estava contente apenas por ainda estar lá. Eventos da memória recente sugeriam que poderia não ser verdade, que o pesadelo sim era a realidade e este suave e convidativo globo, apenas zombava dela, uma ilusão acolhedora, familiar, reconfortante, como um velho ursinho de pelúcia.

A cena era completa com o orbe sombrio da lua à deriva no fundo como um ponto de exclamação vagabundo: um sistema planetário como cobertor de segurança.

— E como estamos hoje? — Ficou consciente de que a médica estava falando com ela, em vez de para ela.

— Terrivel.

Alguém tinha dito a ela uma vez que ela tinha uma voz linda e única. Eventualmente, ela deveria consegui-la de volta. No momento nenhuma parte de seu corpo estava  funcionando com a máxima eficácia. Perguntou-se se nunca voltaria a ser assim, porque ela estava muito diferente da pessoa que tinha sido antes. A Ripley que tinha partido em uma missão de rotina em uma nave espacial de carga agora desaparecera.

Uma Ripley diferente havia retornado, e agora repousava na cama de um hospital.

— Apenas terrível?  — Você tinha que admirá-la pela sua técnica, ela meditou. A mulher não era facilmente desencorajada. — Isso é bem melhor do que ontem, pelo menos. Eu diria que ‘terrível’ é melhor que ‘atroz’.

Ripley apertou fechando as pálpebras, e abriu-as lentamente. A Terra ainda estava lá.
O tempo passado desde a última vez que a vira, que, até então não tinha a mínima importância, de repente adquiriu enorme importância.

— Há quanto tempo estou na Estação Gateway?

— Um par de dias — ainda sorria.

— Parece mais tempo.

A médica virou o rosto, e Ripley se perguntou se encontrara uma observação lapidar perturbadora.

— Você se sente uma visitante?

— Eu tenho uma escolha?

— Claro que você tem uma escolha. Você é uma paciente. Depois que os médicos decidirem que está melhor, se quiser ser deixada sozinha, será deixada sozinha.

Um som eletrônico e levemente incômodo veio do lado oposto do quarto.

Ripley encolheu os ombros, um tanto surpresa ao descobrir que seus músculos do ombro executaram o movimento.

— Eu tenho estado sozinha por muito tempo. Que diabos! Quem é?

A mulher caminhou até a porta. — São dois, na verdade.

Ripley podia ver que ela estava sorrindo novamente.


Um homem entrou carregando alguma coisa. Ripley não o reconhecia, mas sim aquela coisa gorda, laranja e com cara de enfadado.

— Jones! — Sentou-se não necessitando agora do apoio da cama. O homem com gratidão renunciou a posse da grande gato. Ripley abraçou-o. — Venha aqui, Jonesey, seu velho rabugento, minha bola de algodão doce!

O gato suportou paciente esta manifestação embaraçosa, tão típica dos seres humanos, com toda a dignidade da sua espécie. Jones exibia a tolerância habitual que os felinos tinham para os seres humanos. Qualquer observador extraterrestre observando a cena, não teria duvidado, nem por um instante, qual das duas criaturas sobre a cama era a inteligência superior.


O homem que trouxe a boa notícia laranja com ele puxou uma cadeira para perto da cama e esperou pacientemente que Ripley tomasse nota dele. Estava em seus trinta anos, boa aparência sem ser altivo, e vestido com um terno de negócios. Seu sorriso era nem mais nem menos real do que da técnica médica, apesar de ter sido praticado por mais tempo. Ripley acabou por reconhecer a sua presença com um aceno de cabeça, mas continuou a reservar sua atenção para o gato. Ocorreu-lhe que o visitante fosse mais do que um homem de entrega, até ele fazer o primeiro movimento.

— Belo quarto — disse ele sem realmente significar isso. Parecia um menino longe dos pais, mas não falou como tal, Ripley pensou quando ele trouxe a cadeira um pouco mais perto dela. — Sou Burke. Carter Burke. Trabalho para a Companhia, mas diferente dos outros, sou um cara legal. Fico feliz em ver que você está se sentindo melhor.

A última frase, pelo menos, soou como se ele quisesse mesmo dizer isso.

— Quem disse que estou me sentindo melhor?




Ela acariciou Jones, que ronronou satisfeito e continuou a soltar pêlos sobre a cama estéril.

— Seus médicos e as máquinas. Disseram-me que a fraqueza e a desorientação deve passar em breve, embora você não pareça particularmente desorientada para mim. Os efeitos colaterais do longo hipersono... biologia nunca foi meu assunto favorito. Eu era melhor em avaliar aparências. Por exemplo, você parece em boa forma.

— Espero parecer melhor do que me sinto, porque eu me sinto no interior de uma múmia egípcia. Você disse: ‘longo hipersono’. Quanto tempo eu estive lá fora?

Fez um gesto em direção da médica. — Eles não me disseram coisa alguma.

O tom de Burke foi suave, paternal.

— Bem, talvez você não deva se preocupar com isso agora.

A mão de Ripley saiu debaixo das cobertas para agarrar seu braço.
A velocidade de sua reação e a força do aperto dela o surpreendeu.

— Não. Estou consciente, e não preciso de mais enrolação. Quanto tempo?

Ele olhou para a médica, que deu de ombros e virou-se para atender às necessidades de um emaranhado incompreensível de luzes e tubos.
Quando olhou para a mulher deitada na cama, descobriu que era incapaz de desviar os olhos para longe dela.



— Tudo bem. Não é o meu trabalho lhe dizer isso, mas meus instintos me dizem que você é forte o suficiente para lidar com isso. Cinquenta e sete anos.

O número atingiu-a como um martelo. Cinquenta e sete martelos.

Mais forte do que acordar, mais difícil do que a primeira visão de casa. A visão parecia desinflar, perder força e cor ao mesmo tempo conforme ela afundou no colchão. De repente a gravidade artificial da estação parecia três vezes a da Terra, pressionando-a para baixo e para trás. A médica olhou para as luzes de advertência, mas permaneceram em silêncio.

Cinquenta e sete anos. Mais da metade de um século sonhando, em sono profundo, amigos deixados para trás tinham envelhecido e morrido, a família, o mundo que ela tinha deixado para trás tinha metamorfoseado em sabe lá o quê. Governos tinham surgido e desaparecido; invenções tinham chegado ao mercado e ficado ultrapassadas, e foram descartadas. Ninguém jamais tinha sobrevivido a mais de sessenta e cinco anos em hipersono. Mais do que isso o corpo começa a falhar, era muito além da capacidade das cápsulas para sustentar a vida.
Ela empurrou os limites do fisiologicamente possível.



— Cinquenta e sete!

— Você vagou direto através dos sistemas planetários centrais — Burke estava dizendo para ela. — O seu farol sinalizador falhou. Foi pura sorte que a equipe de resgate profundo pegou você quando eles... 

Ela de repente ficou pálida, com os olhos arregalados.

— Você está bem?

Ela tossiu uma vez, a segunda vez foi mais difícil. Sua expressão mudou de simples preocupação para um horror crescente. Burke tentou entregar-lhe um copo de água da cabeceira, mas ela o rejeitou violentamente. O copo caiu no chão e quebrou. Os pelos de Jones estavam em pé e por fim o gato saltou para o chão, miando e praguejando enquanto se afastava para longe da cama.

Ripley agarrou o peito, as costas arqueando quando as convulsões começaram, como se ela estivesse sendo estrangulada.


A técnica estava gritando com o microfone omnidirecional.

— Código Azul em quatro-quinze! Código Azul, quatro, um, cinco!

Ela e Burke seguraram os ombros de Ripley que começou a corcovear contra o colchão. Medicos e técnicos invadiram o quarto.

Não podia estar acontecendo. Ele não podia!

— Nãooooooo!

Os técnicos estavam tentando segurar seus braços e pernas enquanto ela se debatia descontroladamente. Cobertas sairam voando. Um pé atirou um técnico longe enquanto o outro fez um buraco no olho de vidro de uma unidade de monitoramento.

Debaixo de um armário, Jones olhou para sua amiga e fez “fuuuuuuu”.

— Segure-a — a médica estava gritando. — Encontre uma veia! Quinze cc de...



 Uma explosão de sangue manchou de repente de carmesim o lençol, começando uma pirâmide com algo invisível subindo.

Atordoados, todos os presentes recuaram. O lençol continuou a subir.

Ripley viu claramente quando o lençol deslizou para longe. A médica desmaiou, outro  engasgou ao ver a coisa dentada surgiu a partir da caixa torácica quebrada de seu paciente. Virou lentamente a sua boca com presas em direção ao hospedeiro, e gritou.
O som abafou tudo que era humano na sala, enchendo os ouvidos de Ripley, sobrecarregando seu córtex entorpecido, ecoando, reverberando através de todo o seu ser como se ela...

Sentou-se gritando na cama.
Estava sozinha no quarto escuro do hospital.
Pontos de LEDs brilhantes qual insetos ao seu redor.
Agarrou pateticamente o peito, lutando para recuperar o fôlego que o pesadelo tinha roubado.

Seu corpo estava intacto: esterno, músculos, tendões e ligamentos, tudo no lugar e funcional. Nada saira rasgando seu torso, nenhum nascimento obsceno em andamento. Os olhos dela bruscamente giraram nas órbitas esquadrinhando o quarto.
Nada se escondendo por detrás dos armários, esperando ela baixar sua guarda.
Somente máquinas silenciosas monitorando sua vida e a cama confortável.




O suor escorria-lhe embora o quarto estivesse agradavelmente fresco. Segurou um punho contra o esterno, como se se tranquilizando de sua inviolabilidade.

Sobresaltou-se ligeiramente quando o monitor de vídeo suspenso sobre a cama veio à vida.
Uma mulher mais velha olhava para ela. Técnica médica do turno da noite.
Seu rosto estava cheio de honestidade, não apenas preocupação profissional.

— Sonhos ruins de novo? Você quer fazer algo para ajudar a dormir?

Um braço robótico zumbiu e aproximou-se de Ripley. Ela olhou-o com desgosto.

— Não. Eu dormi o suficiente.

— Ok. Você é quem sabe. Se mudar de idéia, basta usar a campainha na cama.

Desligou. A tela escureceu.

Ripley lentamente encostou-se na seção superior levantada do colchão e tocou um dos inúmeros botões fixados no lado da sua mesa de cabeceira. Mais uma vez a tela da janela que cobria a parede distante deslizou para o teto.
Ela podia ver de novo a estação agora brilhantemente iluminada por luzes noturnas e, além dela, o mundo mergulhado em escuridão. Tufos de nuvem mascarando pontinhos distantes de luz. Cidades-vivas com pessoas alegres, felizmente ignorantes da dura realidade que era o cosmos indiferente.

Algo pousou na cama ao lado dela, mas desta vez ela não saltou. Uma forma familiar.
Abraçou-a firmemente, ignorando os miados ocasionais de protesto.

— Está tudo bem, Jones. Conseguimos, estamos seguros. Me desculpe se te assustei. Vai dar tudo certo agora. Vai dar tudo certo.

Tudo bem, sim, porém teria que aprender a dormir novamente.


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