sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 07)




Voavam por sobre a montanha, mas o aviãozinho era tão estável e o piloto tão eficiente, que não havia qualquer oscilação, quase não existia sensação de movimento. Voavam sobre Harlan, Kentucky, uma cidade insípida espalhada ao acaso no sopé das colinas, e depois sobre os campos vastos, por cultivar, e desceram para um vale.

Bryce, com um copo de uísque na mão, avistou abaixo a cintilação de um lago, a sua superfície quieta brilhando como uma moeda nova e valiosa; a seguir mergulharam mais, perdendo o lago de vista, e aterraram numa faixa ampla e nova, de cimento, que se situava no fundo plano do vale, entre o milho e o barro vermelho revolvido, como um enorme diagrama euclidiano traçado a giz cinzento por qualquer Deus da Geometria.

Bryce desceu do avião e caminhou entre a colossal maquinaria para remover terra, na confusão dos homens de camisa caqui, com as caras vermelhas devido ao calor de verão, que gritavam roucamente uns para os outros, enquanto construíam edifícios que ninguém conseguiria identificar o propósito. Havia barracões para as máquinas, uma espécie de enorme plataforma de cimento e uma fila de barracas. Por um instante, tendo abandonado a tranquilidade e o frescor de dentro do avião — o transporte aéreo pessoal de Thomas Jerome Newton, enviado a Louisville para busca-lo —, ficou petrificado, entontecido pelo calor e pelo barulho, por toda aquela atividade febril e inexplicada.

Um rapaz, com um ar robusto como o de um anúncio de cigarro, aproximou-se dele. Usava um capacete; as mangas enroladas exibiam uma abundância de músculos bronzeados, juvenis; parecia um herói daqueles romances para adolescentes, meio esquecidos, que tinham, numa época da sua própria adolescência cheia de aspirações, feito com que ele, Bryce, metesse na cabeça que seria engenheiro
- um engenheiro químico, um homem de ciência e de ação. Pensando na sua barriga, no cabelo grisalho, e no hálito a uísque; acenou-lhe com a cabeça, em sinal de reconhecimento.

O homem estendeu-lhe a mão.

— É o professor Bryce?

Pegou-lhe na mão, à espera de um aperto teatralmente firme, e ficou satisfeito por receber um aperto gentil.

— Não sou mais um professor, não. Mas me chamo Bryce.

— Ótimo. Ótimo. Eu sou Hopkins. Capataz. — O ar amigável fazia lembrar de um cão, como se suplicasse a sua aprovação. — O que pensa disto tudo, Dr. Bryce?
Fez um gesto na direção das filas de edifícios que estavam a ser erguidos. Por detrás, via-se uma torre alta, aparentemente uma antena de televisão, de um tipo qualquer.
Bryce pigarreou.

— Não sei. — Ia a começar a perguntar o que fazia ali, mas achou que seria embaraçoso mostrar a sua ignorância. Por que Famsworth não lhe dissera o objetivo do seu contrato?

— O Sr. Newton está à minha espera? — perguntou sem olhar para o homem.

— Claro, claro.

Demonstrando sua eficiência, o jovem conduziu-o para o lado oposto do avião, onde um carrinho de monotrilho aguardava sobre uma via-férrea, que brilhava sombriamente, serpenteando até penetrar nas colinas do vale, como uma fina linha prateada, feita por um lápis.
Hopkins abriu a porta de trás, revelando estofamento e um interior escuro, muito satisfatório.

— Vai leva-lo lá pra cima, até à casa, em cinco minutos.

— Casa? A que distância fica?

— Cerca de três quilômetros. Ligarei para lá, e Brinnarde vai recebê-lo. Brinnarde é o secretário do Sr. Newton; provavelmente será ele quem fará entrevista.
Bryce hesitou antes de entrar no carro.

— Não vou encontrar-me com o Sr. Newton?

A ideia o tirou do sério; depois daqueles dois últimos anos, não ver o homem que inventara a Worldcolor, que mandava nas maiores refinarias de petróleo do Texas, que concebera a televisão em três dimensões, negativos de fotografia que se podiam usar de novo, o processo ATF na cópia de matizes — o homem que era um gênio inventivo mais original do mundo, ou um extraterrestre.

O jovem franziu o sobrolho.

— Duvido. Estou aqui há seis meses e nunca o vi, exceto através da janela desse carrinho onde vai entrar. Cerca de uma vez por semana ele desce, para ver o estado das obras. Mas nunca sai do carrinho, e lá dentro é tão escuro que mal se lhe consegue ver a cara; só uma sombra, a olhar para fora.

Bryce instalou-se no interior do carro.

— Nunca sai? — Fez um aceno de cabeça na direção do aviáo, onde um grupo de mecânicos, parecia ter surgido por mágica, e começavam a verificar os jatos. — E para voar... ?

Hopkins sorriu, com uma expressão vazia.

— Só de noite, e então não se consegue vê-lo. É um homem alto e magro. O piloto me disse; mas é quase tudo que sei. O piloto não é muito falador.

— Compreendo. — Tocou no botão da porta e esta deslizou sem barulho.

Enquanto a porta se fechava, Hopkins disse: — Boa sorte!

E ele replicou, rapidamente:

— Obrigado — mas não teve a certeza se a sua voz não fora abafada pela porta.

Tal como o avião, o carrinho era à prova de som. Também como o avião começou a deslocar-se quase imperceptível, adquirindo velocidade tão devagar que mal havia sensação de movimento. Iluminou a transparência das janelas, rodando uma maçaneta de prata que obviamente se encontrara ali para isso, e observou os barracões de material, feitos de alumínio, com um aspecto frágil, e os grupos de operários — uma vista fora do comum e agradável, naquela época de fábricas automáticas e de dias de trabalho com seis horas. Os homens pareciam zelosos, trabalhando com entusiasmo, a transpirarem sob o sol de Kentucky. Ocorreu-lhe que deviam ser muito bem pagos para terem vindo até aquela lonjura sem interesse, tão longe de casinos, bares e de outras consolações de que gozavam os trabalhadores.

Viu outro jovem — havia tantos que pareciam jovens — sentado no topo de um enorme removedor de terra, sorrindo de prazer por estar a empurrar grandes quantidades de lama; Bryce invejou-o, por instantes, invejou-lhe o trabalho e a juventude, a impávida confiança, à vontade, debaixo do sol escaldante.

Um momento depois já abandonara o local de construção e percorria densas colinas arborizadas, tão depressa, então, que as árvores próximas eram apenas uma mancha de sol e folhas verdes, de luz e sombra.

Recostou-se nas almofadas, extraordinariamente confortáveis, fazendo o possível por apreciar o percurso. Mas estava demasiado excitado para repousar, demasiado envolvido pela rapidez dos acontecimentos e por todo o entusiasmo de um estranho e novo trabalho — tão longe de Iowa, dos alunos da faculdade, dos intelectuais barbudos, de homens como Cannutti.

Olhou pelas janelas, contemplando o veloz relampejar de luz, sombra, luz, verde-pálido e contornos escuros; e, então, quando o carro corria por uma elevação, surgiu, de súbito, acima da sua cabeça, a cintilação do lago, invadindo uma cratera, tal como uma lâmina de metal de um maravilhoso tom cinzento-azulado, um disco gigantesco, sereno. Mesmo a seguir a este, à sombra de uma montanha, uma velha casa enorme e branca, com um pórtico de colunas e janelas grandes, com persianas, com ar tranquilíssimo, à beira do vasto lago, agarrando-se com unhas e dentes à base da montanha. Depois a casa e o lago, vistos à distância, desvaneceram-se por detrás de outra colina quando a pista do monotrilho mergulhou, e percebeu que o carro estava a começar a acelerar. Um minuto mais tarde a casa e o lago reapareceram e o carrinho abrandou, num deslizamento largo e encurvado que descia paralelamente à beira da água, inclinando-se com delicadeza, em conjunção com a pista, e viu um homem de pé à sua espera, em um dos lados de casa.

O carrinho executou uma parada macia e Bryce inspirou profundamente, tocou na maçaneta da porta e a viu deslizar devagar, e saiu para a sombra da montanha e para o cheiro dos pinheiros e para o som leve, quase inaudível, de água a lamber a margem do lago.
O homem baixo e moreno, com olhinhos brilhantes e um bigode, avançou sorrindo com formalidade.

— Dr. Bryce?

O sotaque era francês.

Sentindo-se, repentinamente, cheio de vontade de rir, respondeu: 

— Monsieur Brinnarde? — enquanto estendia a mão. — Enchanté!

O homem apertou-lhe a mão, com as sobrancelhas erguidas.

— Soyez le bienvenu, Monsieur le Docteur. Monsieur Newton vous attend. Alors...

Bryce suspendeu a respiração.

— Newton vai me ver?

— Sim. Vou indicar o caminho.

No interior da casa foi acolhido por três gatos, que o olharam do chão, onde tinham estado a brincar. Pareciam ser gatos sem pedigree, de rua, mas bem alimentados, e cheios de desdém por ele ter entrado. Não gostava de gatos.

O francês conduziu-o em silêncio, através da sala de visitas, até uma escada muito bem atapetada. Viu quadros nas paredes — quadros estranhos, de aspecto caro, feitos por pintores que não reconheceu. A escada era muito larga e curva. Reparou que havia uma daquelas cadeiras motorizadas, então dobrada, e que poderia subir e descer junto ao corrimão. Newton seria deficiente? Não parecia haver mais ninguém em casa, com exceção deles dois e dos gatos. Olhou para trás, de relance; ainda o observavam curiosos e insolentes, com olhos arregalados.
No alto da escada havia um vestíbulo e, no fim do vestíbulo, uma porta, que levava à sala de Newton, como era obvio. Esta se abriu e uma mulher de olhos um pouco tristes, roliça, saiu, trazendo um avental.

— Professor Bryce.

A voz, amável e gutural, mostrava-se espessa devido a um sotaque rústico, do interior.

Ele acenou afirmativamente e foi conduzido até à porta. Entrou sozinho, reparando, para seu desânimo, que se encontrava ofegante e com as pernas trêmulas.

A sala era imensa e o ar muito frio. A luz, fraca, derramava-se de uma enorme janela com sacada, apenas um pouco transparente, que dava para o lago. Parecia haver mobília por lodo o lado, numa exibição de cores — as formas pesadas de sofás, uma mesa, em tons de azul, cinzento e laranja desbotado, à medida que os olhos se habituavam à luz débil, amarelada. Tinha dois quadros à sua frente, na parede do fundo; um era uma água-forte de um pássaro gigante, uma garça ou um grou colossal; o outro uma nervosa abstração de alguém que poderia ter sido Klee. Talvez fosse um Klee.
As duas obras não combinavam bem uma com a outra. Num canto estava uma gaiola com um papagaio púrpura e vermelho, adormecido, aparentemente.

Um homem de bengala, um homem alto, magro, de feições indistintas, aproximou-se.

— Professor Bryce?

A voz era clara, com um levíssimo sotaque agradável.

— Sim. É... Sr. Newton?

— Sou. Por que não se senta e conversamos?

Sentou-se e conversaram durante um bocado.

Newton era agradável, acessível, com uma sombra de educação exagerada nos seus modos, mas nada autoritário nem pretensioso. Possuía uma dignidade natural muito grande, e discutiu acerca do quadro que Bryce mencionou — afinal de contas, era um Klee — com interesse e inteligência. Ao falar ergueu-se, por instantes, e Bryce teve a primeira oportunidade de lhe observar o perfil. Era fino, com feições muito bem desenhadas, quase efeminado, e, sem dúvida incomum.

A ideia, a ideia absurda com que brincava havia mais de um ano, ocorreu-lhe imediatamente, invadindo-o com força. Por um momento, observando o homem alto, apontando com um dedo delicado para uma pintura misteriosa, de linhas nervosas, ali, àquela luz fraca, não lhe pareceu nada absurda.

Newton se voltou sorrindo e dizendo:

— Acho que devíamos tomar uma bebida, professor Bryce.

A ilusão desvaneceu-se de todo, e o raciocínio de Bryce voltou ao normal.
Havia homens de aspecto mais estranho que aquele no mundo, e tinham existido antes inventores brilhantes.

— Eu gostaria — respondeu. E acrescentou. — Sei que é um homem ocupado.
Newton sorriu amável, encaminhando-se para a porta. — Pelo menos, hoje nem tanto. O que prefere?

— Scotch. — E ia acrescentar ‘se tiver’, mas controlou-se. Calculava que tivesse. — Scotch com água.

Em vez de carregar num botão ou tocar um gongo — fazer soar um gongo não pareceria estranho naquela mansão—, Newton limitou-se a abrir a porta e a chamar:

— Betty Jo! — Quando esta respondeu, pediu: — Traga um scotch para o professor Bryce, com água e gelo. Eu prefiro o gim com «cerveja inglesa». — Depois, fechou a porta e regressou à poltrona. — Só há pouco tempo é que comecei a apreciar o gim — declarou.

Em pensamento Bryce encolheu os ombros, ao pensar em gim com cerveja.

— Bom, professor Bryce, o que acha das nossas construções aqui? Creio que viu a... atividade quando saiu do avião?

Inclinou-se para trás na poltrona, sentindo-se mais à vontade. Newton parecia muito cortês, verdadeiramente empenhado em saber a sua opinião.

— Sim. Pareceu muito interessante. Mas, para ser franco, não sei o que estão construindo.
Newton ficou observando-o, depois, riu-se.

— Oliver não lhe contou, em Nova Iorque? — Bryce sacudiu a cabeça. — Oliver consegue ser muito cheio de segredos. Palavra que não queria que fosse assim. — Sorriu pela primeira vez, Bryce sentiu-se um pouco incomodado com o sorriso, embora não estivesse precisamente a perceber por que. — Talvez por isso exigiu me ver?

— Talvez — replicou Bryce. — Mas também tinha outras questões.

— Sim.

Newton ia a começar a dizer qualquer coisa, mas parou quando a porta se abriu e Betty Jo entrou, trazendo as garrafas e os copos numa bandeja. Bryce observou-a minuciosamente.

Uma mulher de meia-idade, com certa beleza, do tipo que se esperaria ver à tarde no cinema, ou num clube. Contudo, não era inexpressiva, nem estúpida, e haviam traços de um bom humor, ou de divertimento, olhos vivos e lábios cheios. Mas como única empregada visível daquele milionário, estava um pouco deslocada. Não abriu a boca, pousou as bebidas, e, quando passou por ele, a caminho da porta, ficou perplexo com os odores inconfundíveis a álcool e a perfume.

O scotch acabara de ser aberto e Bryce preparou uma bebida sentindo-se diferente do que esperava sentir. Era daquela maneira que os cientistas cheios de dinheiro tratavam das coisas? Pedia-se uma bebida e uma criada meio bêbeda trazia uma garrafa ainda fechada? Talvez fosse a melhor maneira... Beberam em silêncio e então, depois do primeiro copo, Newton disse, inesperadamente:

— É uma nave espacial.

As pestanas de Bryce agitaram-se, sem perceber o que o homem querería dizer.

— Como?

— O que estamos construindo, uma nave espacial.

— Oh?!...

Era uma surpresa, mas não excessivamente grande. Sondas espaciais, não tripuladas, de vários tipos, eram bastante comuns. Até o bloco cubano tinha começado uma, poucos meses atrás.

— Então vai querer que eu trate dos metais para a estrutura?

— Não — Newton fazia girar devagar a bebida, e olhava pela janela, como se estivesse pensando em qualquer outra coisa. — A estrutura já está sendo fabricada. Gostaria que trabalhasse nos sistemas de transporte de combustível, que descobrisse materiais que possam conter algumas das substâncias químicas, como combustíveis e coisas do gênero. — Voltou-se para Bryce, outra vez a sorrir, e Bryce percebeu que o sorriso era vagamente inquietante devido a um traço qualquer de cansaço incompreensível. — Receio saber muito pouco de materiais... calor e resistência ao ácido e tensões. Oliver disse que o senhor é um dos maiores especialistas nesse tipo de trabalho.

— Famsworth pode estar me valorizando demais, mas sei bastante.

Aquilo pareceu esgotar o assunto e ficaram calados por um bocado. A partir do momento em que Newton falara num veículo espacial a velha suspeita voltara, é claro. Mas com ela surgira a refutação mais simples óbvia — se Newton fosse de qualquer outro planeta, ele e o seu povo não iriam construir veículos espaciais. Essa seria a única coisa que já teriam, com certeza.
Sorriu diante do nível barato, de ficção científica, do seu próprio discurso interno. Se Newton fosse um marciano ou um venusiano, andaria, segundo todas as probabilidades, a construir raios de calor para fritar Nova Iorque, ou a planejar desintegrar Chicago, ou levar mulheres jovens para cavernas subterrâneas, destinando-as a sacrifícios oriundos de outro planeta. 

E quanto a Betty Jo? Sentindo-se cheio de imaginação, devido ao uísque e à fadiga, quase riu alto àquele pensamento: Betty Jo, num cartaz cinematográfico, com Newton, de capacete de plástico, ameaçando-a com uma arma de raios, uma arma volumosa, prateada, com pesadas aletas brilhantes saindo dela.

Newton ainda olhava para a janela com ar distraído. Já terminara o primeiro gim e tinha outro à mão.
Um marciano bêbado? Um extraterrestre que tomava gim com cerveja inglesa?

Newton falou abruptamente, embora sem ser rude:

— Por que me queria ver, Mr. Bryce?

O tom não era exigente, apenas curioso.

A pergunta apanhou-o desprevenido, e ele hesitou, preparando outro uísque, para disfarçar a pausa.

— Estava impressionado com o seu trabalho. Os filmes holográficos,... as suas inovações nos equipamentos eletrônicos. Considero suas ideias... as mais originais que me deparei durante anos.

— Obrigado. — Newton já parecia mais interessado.

Algo na maneira fatigada, desapaixonada, como Newton agia, o fez se sentir um pouco envergonhado, envergonhado pela sua curiosidade que o pusera na trilha da W. E. Corporation até encontrar Famsworth, e pela intimidação exercida sobre este ultimo até conseguir a entrevista.

Sentiu-se como uma criança que logrou atrair a admiração de um pai indulgente e falhou, apenas perturbado e cansado o progenitor.

De repente, julgou que iria corar e ficou grato pela pouca luz da sala.

— Eu... eu sempre admirei um cérebro de ‘primeira categoria’.

Tinha de certo modo, caído na armadilha, e percebeu embaraçado, enquanto se amaldiçoava, que parecia um garoto na escola. Mas quando Newton respondeu dizendo qualquer coisa modesta e cortês, Bryce saiu do seu embaraço, chocado e percebendo-se, de repente, que o outro podia perfeitamente estar embriagado.

Escutou o seu discurso distante, patético, um pouco nublado, viu o olhar abstrato, desfocado nos olhos esbugalhados do indivíduo, e compreendeu que Newton se encontrava embriagado — tranquila e calmamente embriagado — ou doente. E de súbito, foi invadido por um pensamento — estaria também embriagado?

Seria Newton também, um mestre na embriagues matutina, procurando — procurando o quer que fosse que pudesse dar a um homem são, um motivo para não se embriagar de manhã num mundo louco?

Ou seria apenas uma das célebres aberrações do gênio, um tipo de abstração selvagem e solitária, o gozo de uma inteligência vibrante?

— Oliver combinou o seu salário? Está satisfeito?

Levantou-se reconhecendo que a pergunta punha fim à entrevista.

 — Estou plenamente satisfeito. — E antes de sair, disse: — Estou querendo fazer só mais uma pergunta, antes de sair, Sr. Newton.

O outro mal pareceu ouvi-lo, ainda olhava pela janela, com o copo vazio, delicadamente seguro nos frágeis dedos, o rosto sem rugas, mas, ainda assim, dando a impressão de ser muito velho.

— Com certeza — respondeu na sua voz suave, quase um murmúrio.
Sentiu-se outra vez embaraçado, desajeitado. O homem era de uma gentileza incrível!

Pigarreou e reparou que, do outro lado da sala, o papagaio havia acordado, espreitando-o com curiosidade, como os gatos já haviam feito. Estava tonto, mas ainda assim balbuciou:

— Na verdade, não tem tanta importância. Eu... posso perguntar em outra ocasião qualquer.
Newton fitou-o como se não o tivesse ouvido, mas ainda à espera de ouvir.

— Com certeza. Noutra ocasião qualquer.

Bryce pediu desculpa, deixou a sala e caminhou de olhos semicerrados.

Quando chegou ao andar inferior, os gatos tinham desaparecido.

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