domingo, 29 de maio de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 06)


Ele olhou para cima, um pouco assustado. Não sabia que ela estava no quarto.
Frequentemente fazia isso, ela parecia surgir do nada, e sua voz rouca, grave era irritante para ele. Mas era uma boa mulher, e inteiramente insuspeita.
Em quatro semanas, ele tinha se afeiçoado muito com ela, como se ela fosse uma espécie de animal de estimação útil. Trocou a posição da sua perna para uma mais confortável antes de perguntar:

— Você vai à igreja nesta tarde, não vai?

Ele olhou por cima do ombro para ela.
Ela tinha acabado de chegar e estava carregando uma sacola de supermercado de plástico vermelho, abraçando-a contra o peito como se fosse uma criança.

Sorriu-lhe, um pouco tolamente, e pensou que talvez já estivesse um pouco embriagada, embora ainda a tarde mal iniciasse.

— Foi o que pensei, Sr. Newton. Pensei que talvez pudesse ir à igreja.

Pousou o saco em cima da mesa, perto do condicionador de ar que Newton lhe havia comprado durante a primeira semana da sua estada na casa dela.

— Trouxe vinho — acrescentou.

Ele voltou para sua perna, apoiada sobre uma pequena caixa frágil com suas velhas revistas em quadrinho, seu único material de leitura. Estava irritado. Comprar vinho significava sua intenção de ficar bêbada naquela noite, e, embora ela segurasse bem, ele sempre ficava apreensivo por sua embriaguez. Mesmo que ela comentasse com frequência e com admiração sobre a sua leveza e fragilidade, ela provavelmente ainda não tinha ideia do dano que pudesse fazer em seu organismo, seus ossos de passarinho, se tropeçasse e caísse. Ela era uma mulher robusta, carnuda, e mais pesada que ele, pelo menos, 20 quilos.

— Foi atencioso da sua parte trazer vinho, Betty Jo — disse ele. — Está gelado?

— Ah, ah — respondeu ela. — Frio pra diabo. — Tirou a garrafa do saco, e ele ouviu-a tinir contra outras companheiras suas, ainda ocultas. Betty Jo apalpou-a, com ar pensativo. — Não comprei no Reichmann’s, desta vez. Hoje era o dia de pegar o cheque do auxílio desemprego, e comprei-a assim que saí do edifício da Assistência Social. Tem uma lojinha lá, chamada Goldie’s Quickie. Muitas das vendas são daqueles que vem ali pegar o auxílio.

Tirou um copo de uma fila acima de uma antiga estante, pintada de vermelho, e pousou-o no peitoril da janela. Então, com uma espécie de abstração indolente, que caracterizava a sua maneira de lidar com o álcool, tirou do saco uma garrafa de gim, e ficou ali, com o vinho numa das mãos e o gim na outra, como se não conseguisse decidir qual deles tomaria primeiro.

— Eles guardam o vinho todo num frigorífico comum e fica frio demais. Devia tê-lo comprado no Reichmann’s.

Largou a garrafa de vinho e abriu a de gim.

— Não faz mal — disse ele. — Não deve levar muito tempo pra aquecer.

— Eu vou deixar aqui, e se quiser um pouco, a qualquer momento, é só chamar, ouviu?

Derramou para si mesma, meio copo de gim e foi para a pequena cozinha. Newton ouviu-a quando fez tilintar, contra o açucareiro, a colher que usava para despejar açúcar no gim, e viu-a voltar num instante, bebendo enquanto caminhava.

— Diabos, gosto mesmo de gim! — exclamou num tom de quem estava satisfeita consigo mesma.

— Não creio que seja capaz de ir à igreja.

Ela pareceu seriamente desapontada. Aproximou-se e sentou-se, com ar desajeitado na poltrona velha, que estava defronte dele, puxando a saia estampada com uma das mãos, enquanto a outra segurava o copo.

— Que pena! É uma boa igreja e de alta classe. Não se sentiria deslocado.




Newton notou, pela primeira vez, que ela usava um anel com um diamante. Ela provavelmente tinha comprado-o com o seu dinheiro. Ganho pelo cuidado com ele. Apesar de seus hábitos e de sua maneira de falar, era uma excelente enfermeira. E não ficava curiosa sobre ele.

Não querendo falar mais acerca da igreja, permaneceu silencioso enquanto ela se instalava confortavelmente na poltrona, bebendo o gim com um ar sério. Era o tipo de frequentadora da igreja irregular e sentimental que na televisão chamavam de profundamente religiosa — sua fé era uma importante fonte de apoio.

Ela era o tipo que frequentava a igreja de maneira irregular e sentimental que na televisão chamavam de profundamente religiosa, sua religião era uma grande fonte de força. Consistia em grande parte de assistir as palestras de domingo à tarde, sobre magnetismo pessoal e quarta-feira à noite palestras sobre homens que se tornaram sucesso nos negócios através da oração. Sua fé se baseava na crença de que o quer que aconteça, tudo estaria bem; sua moralidade era que cada um devia decidir por si mesmo o que era certo para si. O seu gin estava incluído nisso.

Nas poucas semanas que vivera com aquela mulher aprendera muita coisa a cerca de um aspecto da sociedade americana que a televisão não lhe transmitira. Sabia da prosperidade generalizada que se expandia sem cessar — como a flor brotando de uma semente gigante e incrivelmente resistente durante os quarenta anos decorridos desde o término da Segunda Guerra Mundial — e sabia como essa riqueza tinha sido distribuída e gasta pela classe média, de quase todo o país, a qual, à medida que o tempo passava, se dedicava menos tempo ao trabalho produtivo e acumulava mais dinheiro. Era aquela classe média bem vestida e bem de vida, de que tratavam quase todos os programas televisivos, de tal forma que era fácil uma pessoa ficar com a noção errada de que todos os americanos eram jovens de peles bronzeadas, de olhos perspicazes e ambiciosos.

Ao conhecer Betty Jo ele aprendera que existia um amplo substrato da sociedade que não era afetada, de modo algum, por esse protótipo de classe média, uma massa de pessoas, enorme e indiferente, que não possuía ambições ou valores.

Estudara história o bastante para compreender que pessoas como Betty Jo teriam sido outrora os pobres; mas que naquela época, eram os ‘bem de vida’ provenientes do mesmo industrialismo; que viviam com relativo conforto em casas construídas pelo governo — Betty Jo alugara um apartamento de três cômodos num bairro velho, uma espécie de gueto — à custa de cheques vindos de uma diversidade impressionante de repartições estatais: Federal Welfare, State Welfare, Emergency Relief, Country Poor Relief.

Aquela sociedade americana era tão rica que podia aguentar oito ou dez milhões de membros da classe de Betty Jo numa espécie de luxo esfarrapado, feito de álcool e mobília velha, enquanto o grosso do país bronzeava as bochechas saudáveis à beira das piscinas suburbanas e seguia a moda no que dizia respeito ao vestuário, à criação dos filhos, às misturas de bebidas, jogando com a religião, a psicanálise e o ‘ócio criativo’.

Excetuando Famsworth, que pertencia a outra classe mais rara, a dos que eram ricos de verdade, todos os homens que Newton conhecera pertenciam a tal classe média. Todos se pareciam muito, e se encontravam um pouco perturbados, um pouco perdidos, se fossem apanhados com as ‘guardas abaixadas’, quando não se estendiam a mão num gesto de amizade ou não tinham a expressão facial habitual, uma máscara de encanto complacente e juvenil.

A opinião de Newton era que Betty Jo, com o seu gim, o seu tédio, os seus gatos vira-latas e a sua mobília velha, obtinha a melhor parte, a mais vantajosa, do sistema social.
Certa vez tinha dado uma festa, com algumas das ‘amigas’ do prédio. Ele ficara no quarto, longe de vista, mas ouvira-as muito bem, cantando antigos hinos, embebedando-se de gim e sentimentalismo, e parecera-lhe que haviam achado um tipo melhor de satisfação pessoal naquele deboche emocional do que a classe média nos seus festins à romana, churrascos, a sua natação à meia-noite, e o seu sexo rápido.

Todavia, até Betty Jo fracassava, porque, depois das outras mulheres regressarem às suas próprias celas de três cômodos, ela se deitava na cama com ele e ria dos hinos da religião batista, revivalista, com que fora educada pela sua família de Kentucky, declarando que havia deixado para trás tudo aquilo, embora, às vezes, fosse divertido cantar aquelas canções.

Newton não disse nada, mas ele não pode deixar de se admirar. Tinha visto várias vezes, nas velhas fitas de TV em seu planeta, uma igreja "moderna" que fazia um uso criativo de Deus, para o qual a música consistia unicamente de um eletrônico órgão tocando valsas de Strauss e partes de The Poet and Peasant Overture. Não estava de todo certo que essas pessoas sabiam que essa estranha manifestação deles, (coisa em que Anthea não havia) e, no entanto, os antigos atenienses, em suas visitas ao planeta, foram, provavelmente, a causa para este conjunto peculiar de premissas e promessas chamada de religião. Não entendia muito bem, no entanto. Atenienses acreditavam, com certeza, que eram deuses do universo, ou criaturas que podiam ser chamados de deuses, mas isso não representava qualquer importância para eles, mais do que para a maioria dos seres humanos, mas a crença humana em pecado e redenção tinha significado para ele e, ele, como todos seus, estava bastante familiarizado com o sentimento de culpa e da necessidade de sua expiação. No entanto, agora os humanos pareciam ter construido suas meia-crenças e sentimentos para substituir suas religiões, e não sabiam o que fazer com ela; realmente não entendia por que Betty Jo estava preocupada com a suposta força que ela recebia em doses semanais de sua igreja sintética, uma forma de força que parecia dúbia e mais problemática do que o que recebia de seu gin.

Um pouco depois pediu um copo de vinho, que fora comprado com tanta gentileza, recebendo o único copo de cristal que ela lhe comprara especialmente para ele, deitando a garrafa, como o faria um especialista. Newton bebeu com certa rapidez. Aprendera a apreciar bastante o álcool durante a convalescença.

— Bom — comentou, enquanto Betty Jo lhe servia o segundo copo —, espero ser capaz de me mudar daqui na semana que vem.

Ela hesitou, momentaneamente, mas acabou dizendo:

— Para quê, Tommy? — chamava-lhe assim às vezes, quando estava embriagada. — Não vai tirar o pai da forca.




Deus! Ele era esquisito! Alto e muito magro e com os olhos estranhos como os de um pássaro; mas podia deslocar-se como um gato, mesmo com a perna machucada. Passava a vida a tomar comprimidos e não tinha barba. Também não parecia que dormisse; às vezes ela levantava-se de noite, acordando com a garganta seca e a cabeça doendo, que o gin lhe provocava — quando não abusava de mais —, e lá estava ele na sala de estar, com a perna esticada para cima, a ler, ou ouvindo aquele disco dourado que o homem gordo tinha trazido de Nova Iorque, ou apenas sentado na poltrona, com o queixo pousado nas mãos, olhando para a parede, com os lábios bem cerrados e as ideias só Deus sabe onde!
 
Ela tentava não fazer barulho, de maneira a não o incomodar; mas ele sempre a ouvia, por menos barulho que fizesse, e via-se que ficava assustado. Mas sorria sempre e, de vez em quando, dizia uma palavra ou duas. Uma vez, durante a sua segunda semana ali, parecera tão perdido e solitário, sentado, encarando a parede, como se tentasse descobrir qualquer coisa com a qual pudesse conversar; parecia, com a perna torcida, um passarinho meio doente, que tivesse caído do ninho. Teve tanta pena dele que dava vontade de abraçar sua cabeça e de fazer festinhas, de acaricia-lo. Mas não o fizera; já sabia de que não gostava que lhe tocassem. Nunca conseguiria esquecer-se de como ele era leve quando o carregara para fora do elevador, quando o conhecera, com o sangue empapando a camisa e a perna torcida como um arame dobrado.

Acabou de escovar o cabelo e começou a colocar batom. Usava, pela primeira vez, sombra e batom prateados que via nas moças nas ruas; e, quando terminou, olhou-se ao espelho com certo prazer. Para quarenta anos, não estava mal, se disfarçasse as manchinhas, as olheiras provocadas pelo gin e pelo açúcar. Estava a disfarçá-las naquela noite, com um produto de maquiagem adquirido para esse fim.
Depois de examinar o resultado por uns momentos, começou a vestir-se, enfiando a calcinha e o sutiã dourados que comprara a tarde, e depois a blusa combinando. A seguir, colocou os pomposos brincos.

Ela parecia agora outra pessoa em pé diante do espelho, sentiu-se autoconsciente. Que tipo de loucura que ela estava fazendo, se vestindo assim? Mas, no fundo de sua mente, raramente examinado, onde garrafas de gin foram impiedosamente numeradas e recordações desagradáveis de um marido felizmente morto foram arquivadas, sabia muito bem para que estava fazendo isso. Mas não quis trazê-lo à superfície de sua mente. Era especialista na técnica. Em um minuto se sentiu mais acostumada a esta nova, aparência sexy-matrona, e, pegando o copo de gin do topo do armário com uma das mãos, alisando as calças vermelhas apertadas com a outra, abriu a porta e entrou na sala onde estava Tommy.

Ele estava ao videofone e ela viu a cara daquele advogado, Famsworth, na pequena tela. Era habitual falarem três ou quatro vezes por dia e, uma vez, Famsworth aparecera com uma equipe, de aspecto enérgico, e haviam passado o dia a discutir e a argumentar, na sala, ignorando-a, como se fizesse parte da mobília. Exceto Tommy, isto é, porque ele tinha sido educado e agradável e tinha agradecido gentilmente quando ela tinha trazido o café e ofereceu-lhes gin.

Sentou-se no sofá, deixando Tommy com Famsworth, e pegou uns livros com figuras, contemplando com ar ocioso, algumas das páginas sexualmente excitantes, enquanto terminava o gim. Mas aquilo a aborrecia,
Tommy estava falando de um projeto qualquer de pesquisas, na região sul do estado, e na venda de ações daqui e de acolá. Largou o livro, acabou a bebida, e pegou um dos livros dele, que viu ao canto da mesa.

Enviavam-lhe centenas de livros para sua casa e a sala estava atravancada deles. Livro de poesias. Largou-o por outro. Chamava-se ‘Engenhos termonucleares’, cheio de números. Começou outra vez, a sentir-se tola, vestida daquela maneira. Levantou-se e, com ar decidido, providenciou dois gins, deixando um em cima do televisor e levando o outro consigo para o sofá. Contudo, tola como se sentia, apercebeu-se de que, por automatismo, adotara uma pose sedutora, tipo estrela de cinema, no sofá, estendendo as pesadas pernas com indolência. Observou-o por sobre a beira do copo, viu o clarão da luz no seu cabelo e a sua pele delicada, acastanhada, quase transparente, e depois a mão graciosa, efeminada, que jazia de maneira casual, leve, sobre a mesa. Naquele instante, examinou conscientemente o que pretendia e, à luz suave, com o gim a aquecer-lhe o estômago, começou a sentir um toque de perversa excitação, brincando na zona fronteiriça à ideia de ter aquele corpo estranho, delicado, contra o seu. Deixando a imaginação especular com a imagem, percebeu que aquela excitação especial provinha da sua estranheza — da sua natureza peculiar, pouco semelhante à dos homens, assexuada. Talvez ela fosse como aquelas mulheres que gostavam de fazer amor com anormais e aleijados. Bom, ele era ambas as coisas e ela não importava, já não tinha vergonha, com as suas calças apertadas e o gim dentro de si. Se o pudesse excitar, se ele pudesse ser excitado — havia de se sentir orgulhosa de si mesma. E se tal não acontecesse — era um homem cheio de ternura e não ia ficar ofendido.

Sentiu que seu coração se alegrava com ele, um sentimento vivo e caloroso; quando acabou a bebida, achou-se mergulhada pela primeira vez durante anos, numa emoção que se assemelhava ao amor, a par do desejo que a levara a aproveitar os melhores períodos ao longo de todo dia — desde manhã, quando saíra com o melhor vestido estampado, e comprara calcinhas e brincos, cosméticos e calças apertadas, sem admitir para consigo mesma o significado do plano que lhe surgira na mente.
Tomou mais uma bebida, dizendo a si mesma que devia ter calma. Mas estava ficando nervosa, enquanto esperava. Ele falava a cerca de alguém que se chamava Bryce, e Famsworth estava dizendo que esse tal Bryce tentava visitá-lo, queria trabalhar para ele, mas desejava ver Tommy primeiro, e Tommy respondia que era impossível e Famsworth explicava que iam precisar de todos os indivíduos que pudessem para a experiência de Bryce.

Começou a impacientar-se. Quem se importava com o tal Bryce? Mas então, Tommy encerrou a conversa com ar brusco, desligando o telefone, e depois de ficar calado durante um minuto, olhou para ela, pensativamente.
 


— A minha casa nova está pronta, no Sul do estado. Gostaria de ir comigo? Como minha governanta?

Aquilo foi um choque. Pestanejou.

— Governanta?

— Sim. A casa fica pronta no sábado, mas temos que arranjar mobília, há coisas ainda a tratar. Preciso de alguém que tome conta disso tudo. E — sorriu, levantou-se com a ajuda da bengala e coxeou até junto dela — sabe que não gosto de conhecer estranhos. Podia tratar com as pessoas por mim.

Ficou ali, de pé. Ela levantou os olhos.

— Te preparei uma bebida. Está em cima do televisor.

A oferta dele era difícil de acreditar.
Ela soube da casa quando as pessoas da imobiliária tinham vindo ali na segunda semana. Uma enorme mansão antiga que ele estava comprando e mais novecentos acres de terra, a leste nas montanhas.
Ele pegou no copo, cheirou-o e perguntou:

— Gim?

— Devia provar — respondeu. — É muito bom. É doce.

— Não — recusou-se. — Não. Mas gostaria de tomar um vinho contigo.

— Está bem, Tommy. — Levantou-se, oscilando ligeiramente, foi à cozinha buscar a garrafa de Sauterne e o seu copo de cristal. — Não precisa mais de mim — disse da cozinha.

— Claro que sim, Betty Jo. — A voz dele soou solene.



Ela voltou, parando junto dele, enquanto lhe entregava o copo. Era um homem tão simpático! Sentiu-se quase envergonhada de si mesma por querer seduzi-lo, como se fosse um fulano qualquer. Não podia evitar, quando bebia uma pouco mais. Com certeza ele não suspeitava para o que era toda aquela produção.

Era do tipo que cresceu na segurança, superprotegido, e fugiria se uma moça tentasse algo... Talvez fosse gay. Qualquer pessoa que lia o tempo todo... Mas ele não falava estranho. Gostava de ouvi-lo falar. Ele parecia cansado agora. Parecia cansado o tempo todo.
Ele sentou-se penosamente na poltrona e pôs a bengala ao lado. Betty Jo acomodou-se no sofá e depois recostou- se de lado, de frente para ele. Tommy olhava para ela, mas não parecia vê-la.
Quando ficava assim, com aquele aspecto, ela sentia arrepios.

— Vesti roupa nova — anunciou.

— Sim.


 
— Vesti mesmo. — Riu-se acanhada. — As calças custaram sessenta e cinco e a blusa cinquenta, e comprei roupa de baixo dourada e brincos. — Levantou uma perna para mostrar as calças carmesim, radiante, e depois coçou o joelho, através do tecido. — Com o dinheiro que me dá, posso vestir-me como uma artista de cinema, se quisesse. Podia fazer uma operação plástica, emagrecer e tudo mais. — Apalpou os brincos, com ar pensativo por instantes, obrigando-os a oscilar e depois fazendo correr a unha do polegar pelo dourado macio e metálico, desfrutando os ligeiros vestígios de dor nos lóbulos das orelhas. — Mas não sei. Tenho andado descuidada faz muito tempo.

Desde que eu e o Bamey passamos a viver com a ajuda do auxílio desemprego e tudo, perdi a linha e, caramba, quando se chega a isto, não se importa mais com nada.

Não obteve resposta; ficaram sentados em silêncio, enquanto ela terminava a bebida. Por fim ele indagou:

— Vem comigo para a casa nova?

Ela espreguiçou-se e bocejou; começando a sentir-se cansada.

— Tem certeza de que precisa mesmo de mim?

Por um instante, ele pestanejou e mostrou uma expressão que ela nunca vira, como se a suplicar.

— Sim, preciso — respondeu. — Conheço poucas pessoas...

— Claro — replicou. — Eu vou. — Fez um gesto fatigado. — De qualquer modo seria uma idiota se não aceitasse, porque calculo que vai me pagar o dobro.

— Ótimo.

A cara dele adquiriu um ar relaxado, reclinou-se na poltrona e pegou num livro.
Antes que o pudesse começar, ela recordou-se dos seus planos e, após um momento de dúvida relutante, fez uma tentativa derradeira. Mas sentia sono e não estava empenhada de coração e alma.

— É casado, Tommy?

Devia ser uma pergunta bastante óbvia. Se ele teve alguma ideia do ponto onde queria chegar, não o demonstrou.

— Sim, sou casado — informou delicadamente, pousando o livro no colo e erguendo os olhos.

Envergonhada, ela disse:

— Só para saber. Como ela é? A sua mulher...

— Oh, parece comigo. Alta e muito magra.

De certa forma, a vergonha estava a transformar-se em irritação. Sorveu as últimas gotas de gim.

— Eu era magra — disse quase como um desafio. Depois, farta daquilo, ergueu-se e caminhou para a porta do seu quarto.

Fora uma estupidez, de qualquer maneira. E talvez ele fosse gay — ser casado não provava nada.  Assim como era esquisito. Um homem bonito, rico, mas tão estranho como leite verde.

Deu boa-noite, entrou no quarto e começou a tirar a roupa cara. Depois sentou na beira da cama, vestiu uma camisa de dormir, refletindo sobre o ocorrido. Sentia-se muito mais à vontade sem aquelas coisas apertadas, e quando, finalmente, se deitou, com a mente vazia, não teve dificuldades em cair num profundo sono, preenchido, de uma forma agradável, por sonhos tranquilos.

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