sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 09)



1988: Rumplestiltskin (*)

No outono as montanhas que rodeavam o lago assumiam tons de vermelho, amarelo, laranja e castanho.    
A água, sob um céu mais frio, ficava mais azul; refletia em certos pontos as cores das árvores das montanhas. Quando o vento soprava, fazendo ondinhas, os vermelhos e os amarelos relampejavam na água e as folhas caíam.

Da porta de seu laboratório Bryce, frequentemente perdido nos seus pensamentos, olhava para as montanhas e para a casa onde vivia T. J. Newton. A casa ficava a mais de uma milha de distância dos edifícios de alumínio e madeira prensada ao qual o laboratório se encontrava agregado.
Do outro lado do nascente, onde brilhava o Sol, luzia o casco polido da Coisa, do Projeto, do Veículo, fosse lá o que fosse. De vez em quando a vista do monólito prateado fazia com que Bryce sentisse algo que se aproximava do orgulho; outras vezes só lhe parecia ridículo, como a ilustração de um livro para crianças sobre o espaço; e outras vezes assustava-o.

De pé na soleira da porta, era capaz de olhar através do lago, para a margem habitada e ver o contraste singular entre as estruturas que se situavam em cada extremidade da vista; à direita, a mansão vitoriana, com janelas de sacada, revestimento de tábuas, pilares enormes e inúteis, uma casa construída graças a um orgulho tirânico e sem gosto, por um desconhecido magnata há muito falecido, que negociava tabaco, carvão ou madeira; e, à esquerda, a mais austera e futurista de todas as construções, uma nave espacial. Uma nave espacial instalada numa pastagem de Kentucky, cercada por montanhas outonais, cujo dono era um homem que escolhera viver numa mansão com uma única criada bêbada, um secretário francês, com papagaios, quadros e gatos.

Entre a nave e a casa ficava o lago e as montanhas. E Bryce.

Numa manhã de novembro, quando a intempestividade juvenil de um dos seus assistentes de laboratório lhe fizera sentir uma pontada do seu antigo desespero acerca do trabalho científico e da presunção dos jovens que o executavam, foi até à porta e passou alguns minutos contemplando a vista tão conhecida. Resolveu dar um passeio; nunca se lembrara de dar a volta ao lago, mesmo não havendo motivo para não fazê-lo.

O ar estava frio e pensou em regressar ao laboratório e buscar o casaco, mas o sol era quente, à maneira amena de uma manhã de novembro, e se seguisse em paralelo à borda da água, longe da sombra, conseguiria manter-se confortavelmente aquecido. Andou na direção da mansão, afastando-se do local da construção e da nave. Usava uma camisa desbotada de lã escocesa, um velho presente dado pela falecida mulher.

Depois de caminhar dois quilômetros quase, foi obrigado a arregaçar as mangas até aos cotovelos, devido ao calor do seu corpo. Os antebraços, magros, brancos e peludos, pareciam pálidos à luz do Sol, braços de um velho. Uma vez ou outra o cascalho sob os pés dava vez a maciços de grama. Avistou vários esquilos e um coelho. Um peixe saltou no lago. Ultrapassou alguns edifícios e uma oficina qualquer, onde se trabalhava metal e alguns homens lhe acenaram. Um deles chamou seu nome, mas não o reconheceu. Devolveu o sorriso e acenou também. Abrandou a marcha até uma vagarosa caminhada, e deixou o espírito vagar à vontade. A certa altura parou e tentou fazer saltar algumas pedrinhas chatas à superfície do lago, mas só conseguiu que uma delas desse um único salto. As outras, batendo num ângulo errado, afundaram.

Acima, bem alto, uma dúzia de pássaros voava sem ruído, pelo céu fora. Continuou a andar.
Antes do meio-dia chegou à porta da mansão, que parecia fechada e silenciosa, sentando-se aos degraus.

Olhou para a janela da sacada do primeiro andar, mas não conseguiu ver nada, devido ao reflexo do céu no vidro. Na altura em que o Sol estava quase tão a pique como devia estar naquela época do ano encontrou-se a caminhar na extremidade mais afastada do lago. Os maciços de vegetação e as ervas daninhas eram, então, mais espessos; havia arbustos e troncos apodrecidos. De repente pensou em cobras, mas afastou a ideia. Descobriu um lagarto, imobilizado sobre uma pedra, com uns olhos que pareciam de vidro.

Começou a sentir fome e pensou, com preguiça, como resolveria a questão. Cansado, sentou-se num tronco à beira da água, desapertou os botões da camisa, limpou a nuca com o lenço e olhou para a superfície líquida. Por momentos sentiu-se como Henry Thoreau e sorriu para si mesmo.

“A maior parte dos homens levam vidas de tranquilo desespero”.

Olhou para trás, observando a mansão, em parte obscurecida pelas árvores, naquele momento. Alguém, ainda muito distante, vinha na sua direção. Pestanejou à luz intensa, observou-o por instantes e chegou, gradualmente, à conclusão de que se tratava de T. J. Newton.
Pousou os cotovelos nos joelhos e aguardou, começando a ficar nervoso.
Newton trazia um cestinho ao braço. Vestia uma camisa branca, de manga curta, e calças cinzentas.
Andava devagar, com o alto corpo aprumado, mas com graciosidade nos seus movimentos. Existia uma estranheza indefinível na sua maneira de andar, uma característica que recordou a Bryce o primeiro homossexual que tinha visto, quando era demasiado novo para saber o que era um homossexual.
Newton não andava assim; mas também não andava como qualquer outra pessoa, leve e pesado ao mesmo tempo.

Quando já estava próximo disse:

— Trouxe queijo e vinho.

Estava de óculos escuros.

— Ótimo — Bryce levantou-se. — Me viu quando passei à sua porta?

— Vi.

O tronco era bastante comprido e de forma semicircular. Newton sentou-se numa das pontas, colocando o cesto no chão. Retirou uma garrafa de vinho e um saca-rolhas e estendeu tudo a Bryce.

— Consegue abrir?

— Vou tentar.

Pegou na garrafa reparando que os braços de Newton eram tão magros e pálidos como os seus, mas não tinham pelos. Os dedos eram muito compridos e esguios, os nós mais delgados que já vira. Quando o outro lhe passou a garrafa, as mãos tremeram um pouco.
O vinho era um Beaujolais. Bryce segurou a garrafa fria e húmida entre os joelhos, e começou a utilizar o saca-rolhas. Era uma operação na qual se mostrava muito hábil, ao contrário do arremesso de pedrinhas. Tirou a rolha, com um estalo típico. Newton aproximou-se com dois copos, não para vinho, mas para água — e segurou-os.

— Seja generoso — disse Newton, sorrindo; e Bryce quase encheu os copos.

A voz de Newton era agradável; o ligeiro sotaque parecia bastante natural.
O vinho revelou-se excelente, fresco e perfumado na sua garganta seca. Aqueceu imediatamente o estômago com um vestígio do requintado prazer duplo que o álcool lhe provocara — físico e espiritual.

O queijo era um cheddar forte e velho. Comeram e beberam sem dizer palavra. Estavam à sombra e Bryce puxou as mangas para baixo. Sentia frio outra vez. Perguntou-se por que motivo Newton, naquele traje leve, não parecia ter frio. Parecia o tipo de homem que se sentaria junto a uma fogueira embrulhado num xale — um personagem que George Arliss representaria em filmes antigos: magro, pálido e de sangue frio. Mas quem saberia dizer que tipo de personagem seria? Podia ser um conde vagamente estrangeiro, numa comédia inglesa, ou Hamlet, a envelhecer; ou um cientista louco, planejando, com discrição, fazer o mundo ir pelos ares; ou um Cortez sem ostentação, construindo, com calma, a sua cidadela à custa da mão-de-obra local. Pensar em Cortez trouxe-lhe à mente a sua melhor ideia, de que Newton poderia ser um extraterrestre.

Naquele momento quase tudo parecia possível; não era assim tão ridículo que ele, Nathan Bryce, pudesse estar a beber vinho e a comer queijo com um homem vindo de Marte. Por que não? Cortez conquistara o México com cerca de quatrocentos homens; um marciano sozinho conseguiria igualar a proeza? Parecia possível, enquanto estava ali sentado, com o vinho no estômago e o sol na cara. Newton encontrava-se a seu lado, na mesma posição, mastigando com delicadeza, depois bebericando. De perfil fazia lembrar um Ichebod Crane. Como podia ele, Bryce, estar certo de que, se Newton fosse de Marte, só existia um? Por que não tinha pensado nisso antes? Por que não quatrocentos marcianos, ou quatro mil? Olhou para ele outra vez e Newton reparou e sorriu. Marte?
Se bobear era da Lituânia ou de Massachusetts!

Sentindo-se um pouco embriagado — quanto tempo passara desde que não bebia ao meio-dia? — espreitou Newton, como num interrogatório, e indagou:

— Você é da Lituânia?

— Não. — Newton contemplava o lago e não se virou à pergunta de Bryce. Depois disse: — Este lago todo me pertence. Comprei-o.

— É bonito.

Acabou o vinho. Era o fim da garrafa.

— Uma quantidade enorme de água — comentou Newton. Depois, voltando-se para ele. — Quanta calcula? 

— Quanta água?

— Sim.

Com ar distraído. Newton partiu um pedaço de queijo e deu-lhe uma dentada.

— Deus! Sei lá!... Cinco milhões de litros?! Dez? — Riu-se. — Mal consigo calcular a quantidade de ácido sulfúrico, num copo de água! — Olhou para o lago. — Vinte milhões? Caramba, o que me importa?... Sou um especialista. — Depois se lembrou da reputação de Newton. — Mas o senhor não é... Conhece todas as ciências que existem. E talvez algumas que não existem.

— Tolice. Sou só um... inventor. Se é que sou. — Acabou o queijo. — Suponho que sou mais especialista do que o senhor.

— Em quê?

Newton ficou calado. Depois, replicou:

— Seria difícil dizê-lo. — Sorriu de novo, com ar misterioso. — Gosta de gim puro?

— Não precisamente. Ou talvez.

— Tenho aqui uma garrafa.
Newton estendeu a mão para o cesto a seus pés e tirou uma garrafa. Bryce riu. Não conseguiu evitar.

— Ichabod Crane com um litro de gim no cesto de piquenique. Newton encheu-lhe o copo e arranjou outro para si. De repente disse, ainda com a garrafa na mão:

— Bebo demais.

— Todo mundo bebe demais.

Bryce provou o gim. Não gostou: sempre lhe pareceu perfume. Mas bebeu-o. Quantas vezes teria a oportunidade de se embriagar com o patrão? E quantos patrões eram Ichabod Crane — Hamlet. Cortez — recém-chegado de Marte, e prestes a conquistar o mundo na era espacial, no outono?

Bryce tinha as costas cansadas, se deixou escorregar para a grama e se encostou ao tronco, com os pés na direção do lago. Trinta milhões de litros? Pegou mais gim e pescou um maço de cigarros, todo amarrotado, do bolso e ofereceu um a Newton. Este ainda se encontrava sentado no tronco e do ponto de vista de Bryce, no chão, ele parecia mais alto ainda, mais distante.

— Fumei um, a cerca de um ano — replicou Newton. — Fiquei muito mal.

— Oh... — Tirou um cigarro do maço. — Prefere que eu não fume? 

— Sim. — E Newton baixou os olhos para ele. — Acha que vai haver uma guerra?

Bryce olhou o cigarro, com ar pensativo, depois o atirou ao lago. Ficou a flutuar.

— Já não tivemos três guerras? Ou foram quatro?

— Três. Quis dizer uma guerra com armas potentes. Há nove países com armas de hidrogênio; pelo menos doze com armas bacteriológicas. Acha que vão utilizá-las?
Bryce bebeu uma golada de gim.

— Provavelmente. Claro. Contudo, não sei por que ainda não aconteceu. Não percebo como é que ainda não nos embriagamos até morrer. Ou nos amamos até morrer. — O Veículo estava na margem oposta à deles, mas não se podia ver por causa das árvores. Bryce acenou com o copo na direção dele e perguntou:

— Aquilo vai ser uma arma? Se for, quem é que precisa dela?

— Não será uma arma. Não é nada disso... Não lhe digo o que é. — E acrescentou. — Daqui a quanto tempo?

— Daqui a quanto tempo o quê?

Também se sentia bêbado. Ótimo. Era uma tarde adorável para isso.

— Até começar a guerra final. Aquela que vai acabar com tudo.

— Por que alguém precisa acabar com tudo?
Estendeu a mão para a garrafa que estava na cesta.

— Pode ser que tudo precise ser destruído. — Enquanto tirava a garrafa, ergueu os olhos para
Newton, mas não lhe pôde ver seu rosto devido ao Sol que estava por detrás dele.

— Você é de Marte?

— Não. Em dez anos? Segundo me ensinaram, dez anos, pelo menos.

Quem ensina estas coisas? Encheu um copo para si.

— Eu diria cinco.

— Não chega.

— Não chega para quê?

— Não. — Newton baixou os olhos para ele. — Está enganado.

— Muito bem, três anos. Você é de Vénus? De Júpiter? Da Filadélfia?

— Não. Me chamo Rumplestiltskin.

Newton baixou-se, tirou-lhe a garrafa e encheu outro copo.

— Acha que não pode mesmo acontecer?

— Talvez não. O que poderia evitar que acontecesse, Rumplestiltskin? Os instintos mais elevados do homem? Os duendes vivem em caravanas ou vivem em cavernas?

— Gigantes e anões é que vivem em cavernas. Os duendes vivem em toda parte. Os duendes têm poderes para se adaptarem a ambientes extraordinariamente difíceis, tal como este. — Fez um gesto, com a mão tremente, na direção do lago, fazendo saltar pingos do copo de gim para a camisa. — Eu sou um duende, Dr. Bryce, e vivo sozinho, em toda parte. Completamente sozinho.
Ficou a admirar a água.

Um grande bando de patos tinha pousado no lago, talvez migradores cansados no seu caminho para o longínquo sul. Pareciam flutuar como balõezinhos à superfície de água, parecendo incapazes de se locomover.

— Se fosse de Marte, estaria só — disse Bryce contemplando os patos. — Se o fosse, seria como um pato sozinho num lago, um migrador.

— Não é preciso.

— O que é que não é preciso?

— Ser de Marte. Julgo que se tem sentido sozinho também, Dr. Bryce. Você é de Marte?

— Creio que não.

— Da Filadélfia?

Bryce riu.

— Partswouth, Ohio. Fica mais longe que Marte.

Sem aviso aparente, os patos começaram a grasnar confusamente e de súbito, levantaram voo, começando numa desordem, mas coordenando-se depois de uma maneira que se assemelhava um pouco, a uma formação. Bryce viu-os desaparecer sobre as montanhas, ainda a ganharem altura.
Pensou confuso, na migração das aves, das aves e insetos e animaizinhos de pelo, deslocando-se, seguindo caminhos antigos, muito antigos, para velhos lares e novas mortes. E então, o bando de patos fez-lhe lembrar, com amargura, um esquadrão de mísseis que vira na capa de uma revista, anos antes, e isso obrigou-o a pensar outra vez na coisa que estava a ajudar a construir para aquele estranho homem sentado a seu lado. A nave lustrosa, semelhante a um míssil que, em princípio, devia fazer explorações espaciais, ou executar experiências ou tirar fotografias, ou fosse o que fosse, e por se sentir embriagado ao sol do meio da tarde, não confiava, não confiava nada mesmo.

Newton levantou-se, oscilando, e disse:

— Podemos ir a pé até em casa. Peço a Brinnarde para levá-lo de volta, se quiser.

— Quero. — Ergueu-se sacudindo folhas e acabando com o gim. — Estou bêbado demais, e sou demasiado velho para voltar a pé.

Encaminharam-se cambaleando de leve, em silêncio. Quando se encontravam já perto, Newton comentou:

— Espero que sejam dez anos.

— Por que dez? — replicou Bryce. — Se levar tanto tempo, as armas ainda vão ser melhores. Farão tudo ir pelos ares. Tudo, talvez até a Lituânia. Ou Filadélfia.

Newton olhou-o com um ar estranho e Bryce sentiu-se momentaneamente sem graça.

— Se tivermos dez anos — opinou Newton —, pode ser que não aconteça nada.

— E quem vai parar isso, então? As virtudes humanas? A Segunda Vinda?

Parecia não ser capaz de encarar Newton.
Pela primeira vez, este riu baixinho e com um ar divertido.

— Pode ser que seja a Segunda Vinda. Pode ser que seja o próprio Jesus Cristo. Dentro de dez anos.

— Se ele vier— devolveu Bryce —, é melhor que saiba no que está se metendo desta vez.
Suponho que se lembre do que lhe sucedeu da última vez — disse Newton.

Brinnarde saiu da casa para vir ao seu encontro. Bryce sentiu-se aliviado: começara a sentir-se tonto.
Brinnarde o levou para casa, sem parar no laboratório. Eram cinco horas quando chegou a casa. Foi ate a cozinha, que era, como sempre, uma verdadeira confusão. Na parede pendia The Fall of Icarus, trazida de Iowa, e no lava-louça encontravam-se os pratos. Tirou uma perna de galinha da geladeira na parede e, mastigando-a, cambaleou até à cama onde adormeceu rápido, com a perna meio comida a seu lado, na mesa-de-cabeceira.

Teve sonhos confusos, envolvendo o voo de pássaros, em formações esparsas, num céu azul e frio...
Acordou às quatro da manhã, na escuridão, completamente lúcido, com a boca seca, a cabeça doendo e o pescoço suado, por causa do grosso colarinho de lã. Sentia os pés inchados de ter andado e tinha muita sede. Sentou-se na borda da cama, olhando para o mostrador luminoso do relógio, durante uns minutos e, depois acendeu a luminária da cabeceira, fechando os olhos antes de ouvir o estalido.
Levantou-se e foi ao banheiro, piscando os olhos, encheu a pia e um copo com água fria e bebeu. Fechou a torneira, acendeu a luz e começou a arrancar a incômoda camisa escocesa. No espelho viu um bocado do seu peito nu, por baixo da camisa, em forma de U e afastou os olhos. Mergulhou as mãos na água e manteve-as aí, deixando que o frio lhe estimulasse a circulação. Banhou a nuca e o rosto. Esfregou com uma toalha áspera; lavou os dentes e conseguiu tirar todo o gosto ruim que sentia na boca. Penteou-se, foi ao quarto, vestiu uma camisa azul limpa.

Durante todo tempo, uma frase girava-lhe na cabeça: “Você paga; é você quem escolhe”.
Na cozinha dissolveu uma pílula de café em água quente e fazendo um omelete, condimentou-o com imensos cogumelos tirados de uma lata. Enrolou com uma espátula, tirou-o da panela enquanto estava ainda húmido no meio e sentou-se a mesa para comer devagar, deixando que seu estômago sobrecarregado de gim aceitasse aquela coisa suculenta, suavemente. Por um tempo sentiu-se satisfeito consigo.

Estremeceu. Poderia pelo menos ter ingerido algumas dessas pílulas PA que as pessoas utilizam quando não queriam ter o trabalho de fazer um jantar honesto. PA era basicamente uma proteína de algas, por mais que o pensamento fosse repugnante, comer porcarias de um charco, em vez de fígado acebolado. Mas talvez ele devesse passar a usá-las, considerando a população e os desertos asiáticos que tinham levado os fascistas de volta a China, e, assim, o "mundo livre" de ditadores, demagogos, e hedonistas estava fazendo fígado acebolado ou carne com batatas cada vez mais difícil de encontrar.
Em vinte anos vamos estar comendo a porcaria dos charcos e óleo de peixe e carbohidratos Erlenmeyer em frascos, pensou terminando a omelete. Quando não houver mais espaço para as galinhas, vão manter os ovos em museus. Talvez o Smithsonian exibirá um omelete preservado em plástico.

Tomou seu café, em parte sintéticpo também, pensando na velha máxima dos antigos biólogos que “uma galinha é o caminho de um ovo para se reproduzir”. Isso o fez pensar, tristemente, que um jovem biólogo com um corte de cavelo escovinha e calças com babados provavelmente encontrará uma maneira mais eficiente de obter um ovo, eliminando completamente a galinha. 
T. J. Newton seria o homem propenso a fazer aparecer um umbigo em um ovo, como a laranja com umbigo, tudo embrulhado em plástico de cores alegres e comercializado pela World Enterprises Corporation. Um ovo auto-reprodutor; você o joga na água da lagoa e ele cresce como um colar de contas de plástico, surgindo a cada dia um ovo novo. Jamais poderia produzir um galo Bantam, orgulhoso, um galo de briga, ou uma galinha estúpida para as crianças perseguirem. Ou um jantar de frango frito.

Ao acabar o café, ergueu os olhos e deparou-se com ‘The Fall of Icarus’. Pousou o bule e disse, em voz alta:

— Chega de jogos intelectuais, Bryce. Você é que paga, você é que escolhe: Marte ou Massachusetts?

E, ainda a olhar o rapaz que caía do céu para o oceano, na serena gravura da parede, pensou: “Amigo ou traidor?".

Continuou a fitar a imagem.

“Destruidor ou salvador?”

As palavras de Newton continuavam presentes:

”Na verdade pode ser a Segunda Vinda”.

Mas Ícaro tinha falhado, tinha queimado e se afogado, enquanto Dédalo, que não subira tão alto, fugira da sua ilha solitária. Apesar disso, não para salvar o mundo. Talvez até para destruí-lo, visto que inventara o voo; e a destruição, quando surgisse, teria de vir do ar.

“O resplendor a cair do céu”, pensou; “adoeço; tenho de morrer; Deus tenha piedade de nós.”.

Sacudiu a cabeça, tentando impedir o devaneio. O problema, naquela altura, era Marte ou Massachusetts; todo o resto era secundário. O que sabia dele então? Havia o sotaque, o seu aspecto, a sua maneira de andar. Havia as concepções da sua mente, implicando uma tecnologia mais estranha do que o sistema astrodinâmico de Ptolomeu. Aqueles logaritmos fantásticos, e das duas vezes que Bryce o vira, pode sentir a sua solidão impiedosa, a mesma que um extraterrestre devia sentir, ou uma incapacidade para suportar as agressões da cultura diferente da sua. Mas embriagar-se era algo tão tremendamente humano que anulava o outro argumento. Não era improvável que um extraterrestre fosse afetado pelo álcool, tal qual um homem o era? Mas Newton devia ser um homem — ou algo parecido com um. Com a química orgânica de um homem; seria capaz de se embriagar. O que era ainda mais plausível se tivesse nascido em Massachusetts. Ou na Lituânia. Mas por que não um marciano beberrão? O próprio Cristo bebia vinho e descera dos Céus — ‘O bebedor de vinho’, chamavam os fariseus. Um bebedor de vinho do espaço exterior.

Por que é que não parava de pensar naquilo?

Com certeza, teriam dado tequila a Cortez; e ele fora outro Segundo Visitante: mas o deus de olhos azuis, Quetzalcoatl aparecera para salvar os soldados dos Astecas.

Dez anos? Logaritmos de base doze. E que mais? O que mais?


(*) Figura que faz parte do folclore alemão. Trata-se de um duende que transforma linho em ouro, com o objetivo de salvar a vida de uma princesa, se esta em troca lhe entregar o primeiro filho que tiver. Mas esta última condição deixaria de ser válida se ela adivinhasse o seu nome, o que a princesa conseguiu. (N. da T.)

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