sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 11)



Numa manhã de domingo, cinco dias depois da sua conversa com Newton, Bryce estava em casa, tentando ler um romance. Encontrava-se sentado junto do aquecedor elétrico, na sua salinha pré-fabricada, vestindo apenas um pijama verde, de flanela de algodão, enquanto bebia a terceira caneca de café.

Sentia-se melhor naquela manhã a preocupação a cerca da identidade de Newton não o ensombrava tanto quanto o fizera durante dias atrás. O assunto ainda permanecia em pensamento; mas resolvera adotar uma espécie de política — e esperar, com todos os sentidos alerta. O romance policial era ridículo, de uma maneira agradável; o tempo lá fora se tornara incomodamente frio.
Sentia-se bem e não se achava preocupado com coisa alguma. Da parede, à sua esquerda, pendia ‘The Fall of Icarus’. Tinha mudado-o da cozinha para ali, dois dias antes.

Ia pela metade do livro quando ouviu uma pancada fraca na porta principal. Levantou-se, um pouco irritado, pensando quem poderia visita-lo numa manhã de domingo. Era bastante sociável em relação ao seu pessoal, mas tinha poucos amigos. Não possuía amigos suficientemente chegados para ir até seu bangalô num dia daqueles e antes do almoço. Vestiu o roupão de banho e abriu a porta.

Lá fora, em plena manhã cinzenta, tremendo num casaco de nylon leve, estava a governanta de Newton.

Sorriu-lhe e perguntou:

— Dr. Bryce?

— Sim? — Não lembravas seu nome, embora Newton o tivesse dito uma vez. Havia imensos boatos acerca de Newton e da mulher. — Entre e se aqueça, por favor.

— Obrigado. — Entrou muito depressa, mas com o ar de quem se desculpa, e fechou a porta. — O Sr. Newton mandou-me procurá-lo.

— É? — Foram até o aquecedor elétrico. — Você precisa de um casaco melhor para este frio.

Ela pareceu corar — ou talvez fosse apenas o avermelhado das faces devido ao frio.

— Não saio muito.

Depois de ter ajudado-a a despir o casaco, começou a aquecer as mãos. Bryce sentou-se e observou-a, meditativamente, esperando que lhe dissesse a razão da visita.

Era uma mulher interessante — boca carnuda, cabelo preto, corpo cheio, por baixo do simples vestido azul. Devia ter, mais ou menos, a sua idade, e tal como ele usava roupa antiquada. Não usava maquiagem, mas, com o rubor da pele que o frio lhe causara, também não precisava. Tinha seios pesados, como os daquelas camponesas russas em filmes de propaganda comunista; e teria o aspecto perfeito, monumental, da ‘mãe-terra’ se não fossem os olhos tímidos, que se apagavam a si mesmos, bem como a voz e as maneiras rústicas. Ele gostava, como gostava, do fato de ela não depilar as sobrancelhas.

De repente a mulher endireitou-se, sorrindo-lhe com um ar mais à vontade, e disse:

— Não é como um fogo de lenha.

Naquele momento não compreendeu o que aquilo significava. Depois, acenando para o aquecedor, que tinha um brilho vermelho, replicou:

— Não, nem perto. — E continuou. — Por que não se senta?

Ela aproveitou a poltrona que estava em frente de Bryce, recostou-se.

— Também não tem o mesmo cheiro de um fogo a lenha. — Sorriu, com ar pensativo. — Vivi numa fazenda e ainda me lembro dos fogos de lenha, de manhã. Punha a roupa à lareira, para esquentar, e deixava que o fogo me aquecesse as costas. Lembro-me do cheiro da lareira. Mas nunca mais o senti há, há uns vinte anos.

— Eu também não — concordou.

— Nada cheira tão bem, quando a gente está habituada — comentou ela. — Nem sequer o café, da maneira como fazem. Agora, a maior parte das coisas já não cheira a nada.

— Quer café?

— Claro. Quer que o vá buscar?

— Eu pego. Eu ia pegar mais para mim mesmo.

Foi à cozinha e pegou duas canecas e as pílulas de café que eram praticamente só o que se podia comprar, naquela época, desde que o país cortara relações com o Brasil. Trouxe-as numa bandeja e ela levantou os olhos e sorriu-lhe, com ar agradável, quando pegou na sua.

Ele sentou-se.

— Tem razão — disse —, não há nada que cheire como antigamente. Ou talvez estejamos velhos demais para lembrar.

A mulher continuava a sorrir. Depois retorquiu:

— Ele quer saber se vai a Chicago com ele. No mês que vem.

— O Sr. Newton?

— Ha-ha. Uma reunião. Disse que talvez você soubesse.

— Uma reunião? — Bebeu o café, pensativamente. — Ah, sim. No instituto de engenheiros químicos. Por que ele quer ir?

— Não sei. Me disse que se o senhor quisesse ir com ele, encontraria-o esta tarde. Não vai trabalhar, não?

— Não. Não trabalho aos domingos.

Havia ali uma oportunidade, ‘de bandeja’. Tinha um plano meio alinhavado, e se Newton fosse mesmo ali, a casa ...

— Ficarei satisfeito. — E acrescentou: — Disse quando?

— Não, não disse.

Acabou de tomar o café, pousou a caneca no chão, ao lado da poltrona. Não havia dúvidas de que se instalara como se estivesse em casa, pensou, mas não importava. Era informalidade genuína e não do tipo afetado como a do professor Canutti e seus iguais, lá de lowa.

— Ele ultimamente não tem falado muito. — Havia uma sugestão de tensão na sua voz. — Eu mal o vejo agora.

Havia qualquer coisa de triste na sua voz, igualmente, e Bryce pensou no que poderia existir entre aqueles dois. E, ocorreu-lhe que também havia ali uma oportunidade.

— Ele está doente?

Se conseguisse fazê-la começar a falar...

— Que eu saiba, não. Ele tem altos e baixos. — Olhava para o aquecedor à sua frente, não para ele.

— Às vezes ele conversa com aquele francês, Brinnarde, e outras vezes comigo. Outras vezes fica apenas sentado na sala. Dias inteiros. Ou bebe; mas é difícil saber.

— O que faz o Brinnarde?

— Não sei. — Olhou-o fugazmente e voltou ao aquecedor. — Acho que é um guarda-costas. — Voltou-se para ele, com uma expressão ansiosa. — Sabe, Sr. Bryce, Brinnarde tem uma arma.— Sacudiu a cabeça, com o ar de uma mãe preocupada.

— Não confio nele, e acho que o Sr. Newton também não devia.

— Homens ricos têm guarda-costas. Além disso, o Brinnarde também é uma espécie de secretário, não?

Ela riu-se, um riso breve, perverso.

— O Sr. Newton não escreve cartas.

— Não, creio que não.

Então, ainda a olhar para o aquecedor, disse, humildemente:

— Posso tomar uma bebida?

— Claro. — Ele levantou-se depressa. — Gim?

Ela ergueu os olhos.

— Sim, por favor.

Havia nela algo de melancólico e Bryce percebeu que ela devia se sentir muito só, não devia ter ninguém com quem falar. Ficou com pena — uma caipira perdida, anacrônica — e, ao mesmo tempo, excitado, ao compreender que estava na hora de lhe extrair informações. Podia amansá-la com um pouco de gim, deixá-la contemplar a falsa lareira por um bocado, e esperar que falasse. Sorriu para consigo mesmo, achando-se maquiavélico.

Quando estava na cozinha, pegando a garrafa de gim da prateleira, acima do lava-louças, ela disse da sala de estar:

— Importa-se de colocar um pouquinho de açúcar, por favor?

Açúcar? Aquilo era muito ‘moderno’.

— Três colheres, mais ou menos.

— Okay — concordou, abanando a cabeça. E disse, então:

— Esqueci seu nome.

A voz dela ainda denotava tensão — como se estivesse a evitar que tremesse ou a impedir-se de chorar.

— Betty Jo. Betty Jo Mosher.

Uma espécie de suave dignidade na maneira como lhe respondera o fez ficar mal por não ter se lembrado do seu nome. Pôs o açúcar num copo, começou a enchê-lo de gim, e sentiu-se envergonhado do que estava prestes a fazer, ia usá-la.

— É de Kentucky? — Perguntou o mais delicadamente que conseguiu.

Encheu o copo, quase até à borda, e mexeu o conteúdo.

— Sim. Irvine. A cerca de dez quilômetros de Irvine. Ao norte daqui.

Ele levou-lhe o copo e ela o recebeu com gratidão, tão tocante quanto ridícula.
Estava começando a gostar daquela mulher.

— Tem família ainda viva?

Lembrou-se de que devia estar arrancando informações sobre Newton, não dela. Por que seria que a sua mente passava a vida a afastar-se do verdadeiro assunto?

— Minha mãe morreu. — Bebeu um golinho, fê-lo girar à boca, engoliu. — Não há dúvida de que gosto de gim — disse. — Paizinho vendeu a propriedade para o governo, para uma tal de... uma... coisa hidro...

— Uma estação hidropônica?

— Isso mesmo! Onde fazem a porcaria daquela comida em tanques. De qualquer forma, o paizinho agora é dependente do Estado, lá em Chicago, como aconteceu comigo em Louisville, até conhecer o Tommy.

— O Tommy?

Sorriu amarelo.

— Sr. Newton. Eu o chamo de Tommy, às vezes. Achei que ele gostava.

Ele respirou fundo, desviando os olhos, e perguntou:

— Onde é que o conheceu?

Betty Jo bebeu mais um pouco, saboreou e engoliu. Depois riu baixinho.

— Num elevador. Eu subia no elevador, em Louisville, para ir buscar o auxílio-salário, e o Tommy também. Pai do Céu! Tinha um aspecto tão esquisito! Percebi logo. E então ele partiu a perna no elevador.

— Partiu uma perna?

— É. Parece mentira, mas foi o que aconteceu. O elevador devia ser demasiado por ele. Se soubesse como ele é levezinho...

— Até que ponto?

— A gente pode pegá-lo só com uma das mãos. Os ossos dele não são mais fortes dos que de um passarinho. É estranho. Pai do Céu, e é um homem bonito; e tão inteligente e rico, e tão paciente. Mas Sr. Bryce...

— Sim?

— Acho que ele está doente. Muito doente. Acho que tem uma doença no corpo, meu Deus! Devia ver os comprimidos que toma! Acho que tem a cabeça cheia de problemas. Quero ajudá-lo, mas nunca sei por onde começar. E nem sequer deixa um médico chegar nele. — Acabou o copo de gim e inclinou-se para frente, como se fosse contar um segredo. Mas havia desgosto na sua cara. Desgosto demasiado verdadeiro para que um fingimento servisse de desculpa à confidência.

— Acho que ele nunca dorme. Estou com ele há quase um ano e nunca o vi dormir. Ele não é humano!

Um arrepio espalhava-se pela nuca de Bryce, dos ombros ia descendo pela espinha.

— Quer mais gim? — perguntou. E depois declarou: — Vou lhe fazer companhia...

Ela tomou mais dois copos antes de partir. Não contou grande coisa — provavelmente por ele não lhe ter perguntado mais nada; não se achava capaz. Mas quando Betty Jo ia saindo — sem oscilar sequer um bocadinho, porque aguentava o álcool como um marinheiro — disse enquanto vestia o casaco:

— Sr. Bryce, sou uma mulher sem estudo e boba, mas gostei de falar com você. Sério.

— Foi um prazer. Pode vir sempre que quiser.

Ela pestanejou.

— Posso?...

Bryce não quisera dizer aquilo, literalmente, mas disse-o então e era verdade:

— Quero que volte. Também não tenho muita gente com quem conversar.

— Muito obrigada — Disse Betty Jo, e quando saía novamente para o tempo invernoso, deixou escapar:

— Com você já são três, não é?

Bryce ignorava quantas horas teria antes da chegada de Newton; mas sabia que teria de se arrumar se queria estar pronto a tempo. Sentia-se terrivelmente excitado e nervoso enquanto se vestia, murmurava sem parar:

— Não pode ser Massachusetts, tem que ser Marte.

Quería que fosse de Marte?

Quando já se encontrava vestido, enfiou um sobretudo e partiu para o laboratório — cinco minutos de caminhada. Naquele momento nevava e o frio afastou-lhe as ideias que turbilhonavam na sua cabeça, o enigma que estava prestes a resolver, de uma vez por todas, se conseguisse montar o aparelho como devia ser, e montá-lo a tempo.
No laboratório trabalhavam três assistentes seus. Não lhes deu nenhuma atenção. Apercebeu-se da curiosidade deles quando começou a desmanchar o aparelhinho no laboratório dos metais — aquele que usavam para medir a tensão dos raios X e para análises — mas fingiu não ver as sobrancelhas levantadas.

Não demorou muito; teve apenas que tirar os parafusos que seguravam a câmara e o gerador de raios catódicos. Era capaz de transportá-los sozinho com facilidade. Certificou-se de que a câmara estava carregada — carregada com filme de raios-X de alta velocidade da W. E. Corporation — e, depois, partiu, com a câmara numa das mãos e o sistema de raios catódicos na outra.

Antes de fechar a porta disse aos outros: — Por que não tiram uma folga?

Fechou a porta e foi embora.

Próximo do aquecedor da sala de estar de Bryce havia um respiradouro de ar condicionado, que não estava sendo usado. Após vinte minutos de trabalho, e de alguns xingamentos, conseguiu instalar a câmera por detrás da grelha, com o obturador aberto. Felizmente o filme da W. E. era um grande melhoramento técnico sobre os seus predecessores; a luz visível não o afetava. Apenas os raios X podiam impressioná-lo.




O tubo do gerador também era um aparelho da W. E. Corporation; funcionava como um estroboscópio, disparando um feixe de raios X instantâneo e concentrado. Instalou-o na gaveta do armário da cozinha, apontando-o na direção da câmera. Depois pegou o fio elétrico que saía da gaveta e ligou-o à tomada, por cima do lava-louças. Deixou a gaveta meio aberta, para poder estender a mão e acionar o interruptor lateral do pequeno transformador que fornecia potência ao tubo.
Regressou à sala e colocou, com todo o cuidado, a poltrona mais cômoda entre a câmera e o tubo de raios catódicos. Depois sentou-se noutra poltrona, aguardando a chegada de Thomas Jerome Newton.



Foi uma longa espera. Bryce sentiu fome; tentou um sanduíche, mas não conseguiu acabar de comer.

Passeou de um lado para o outro, pegou outra vez no romance policial, mas não conseguiu concentrar-se na leitura. Com intervalos de minutos voltava à cozinha e verificava a posição do tubo de raios catódicos que metera na gaveta. Para assegurar-se de que o aparelho funcionava, colocou o interruptor em ‘ligado’, esperou que aquecesse, e pressionou o botão que enviava um relâmpago invisível que penetrou a parede, passou através da poltrona, depois da lente da câmara, e expôs o filme na parte detrás da câmera. Logo depois de carregar no botão, amaldiçoou-se em silêncio e com fúria. Que estúpido! Expusera o filme.

Levou vinte minutos a tirar a grelha da conduta de ar e a retirar a câmera. Depois teve de trocar o filme — o primeiro ostentava a cor acastanhada que significava ter sido exposto de maneira correta - por outro que foi buscar ao depósito da câmera. Suando, com medo que Newton pudesse bater à porta a qualquer momento, tornou a instalar a câmera, verificou a lente, apontou na direção da poltrona, e recolocou a grelha. Assegurou-se de que a lente estava alinhada, de forma que o metal não interferisse.

Com as mangas arregaçadas, lavava as mãos, quando bateram à porta. Obrigou-se a caminhar devagar, ainda com a toalha nas mãos, e abriu a porta.

De pé, debaixo de neve, T. J. Newton, com óculos escuros e um casaco leve, sorria, quase com ironia, e dava a ideia, ao contrário de Betty Jo, de não sentir frio algum.
Marte, pensou Bryce. Marte era um planeta frio.

— Boa tarde — disse Newton. — Espero não ter interrompido nada.

Bryce esforçou-se por manter a voz firme e ficou admirado consigo mesmo ao consegui-lo.

— De maneira nenhuma. Não quer sentar-se?

Com um gesto vago, indicou-lhe a poltrona. Pensou, enquanto o fazia, em Dâmocles, no trono debaixo da espada.

— Não — respondeu Newton. — Não, obrigado. Estive sentado a manhã toda.

Tirou o casaco e colocou-o nas costas da poltrona. Usava, como sempre, uma camisa de manga curta. Seus braços pareciam canos.

— Vou pegar uma bebida.

Se lhe desse uma bebida podia ser que se sentasse.





— Não, obrigado. Estou... ‘careta’. — Foi até à parede lateral e observou o quadro de Bryce. Ficou ali alguns instantes, enquanto Bryce se sentava. Depois, disse: — Um quadro lindo, Dr. Bryce. É um Brueghel, não é?

— Sim.

E claro que era um Brueghel. Qualquer pessoa saberia que era um Brueghel. Por que não se senta Newton? Bryce começou a estalar os nós dos dedos e depois parou. Distraído, Newton sacudiu alguns flocos de neve derretida do cabelo.

— Como se chama? — indagou Newton. — O quadro.

Newton devia sabê-lo; o quadro era bastante famoso.

— Chama-se ‘The Fall of Icarus’. É Ícaro mergulhando na água.
Newton continuou a contemplá-lo.

— E muito bonito. E a paisagem se parece muito com a nossa. As montanhas, a neve e a água. —

Virou-se para Bryce. — Mas, é claro, no quadro há uma pessoa arando um campo e o Sol está mais baixo. Deve ser mais tarde, durante o dia...
Incomodado, ainda nervoso, a voz de Bryce saiu impaciente: — Por que não mais cedo?

O sorriso de Newton era muito estranho. Os olhos pareciam focar-se em algo distante.

— Não podia ter sido de manhã, ou podia?

Bryce não respondeu. Mas Newton tinha razão, é claro. O Sol não estava a pique quando Ícaro caía.

Devia ter caído de uma grande altura. No quadro, o Sol encontrava-se a meio caminho abaixo do
horizonte e Ícaro, com a perna e o joelho agitando-se prestes a afogar-se, sem que ninguém desse por conta disso, devido à sua louca ousadia. Devia ser meio-dia.
Newton interrompeu a sua especulação.

— Betty Jo me disse que estava disposto a ir comigo a Chicago.

— Sim. Mas, por que vai a Chicago?

Newton fez um gesto que parecia muito estranho nele — encolheu os ombros e virou as palmas das mãos para fora. Devia tê-lo aprendido com o Brinnarde. Disse:

— Oh, preciso de mais químicos. Pensei que era uma boa maneira de contratá-los.

— E eu?

— O senhor é um químico. Ou um engenheiro químico, aliás.

Bryce hesitou antes de falar. O que iria dizer seria rude, mas Newton parecia não se importar com a sinceridade.

— Tem muitos homens, Sr. Newton — comentou. Depois forçou-se a rir. — Tive de lutar através de um exército deles antes de chegar até você.

— Sim — respondeu Newton. Voltou-se e olhou de relance para o quadro, acrescentando. — Talvez o que desejo realmente seja uma... folga. Visitar um lugar novo.

— Nunca esteve em Chicago?

— Não, receio ser uma espécie de recluso neste mundo.

Bryce quase corou, perante o comentário. Virou-se para o aquecedor artificial e opinou:

— Chicago no Natal, não é o lugar mais indicado para uma folga.

— Não tenho nada a reclamar quanto ao frio — explicou Newton. — O senhor tem?
Bryce riu, nervosamente.

— Não estou imunizado como o senhor parece estar, mas posso sobreviver...

— Ótimo. — Foi até à poltrona, pegou no casaco e começou a vesti-lo. — Estou contente por me acompanhar.

Vendo-o preparar-se para partir, Bryce entrou em pânico. Podia não ter outra oportunidade.

— Só um minuto — disse gaguejando. — Eu ia... ia pegar uma bebida para mim.

Newton não respondeu. Bryce foi até à cozinha. Ao passar a porta virou-se, para ver se Newton poderia estar de pé, por detrás da poltrona. O coração disparou: Newton voltara para junto da gravura, estava de pé na sua frente, de novo. Tinha o corpo meio curvado, visto que a cabeça lhe ficava, pelo menos, um metro acima do objetivo da sua contemplação.

Bryce fez um scotch duplo e acabou de encher o copo com água da torneira. Não gostava de gelo nas suas bebidas.
Junto ao lava-louças, amaldiçoou em silêncio, a má sorte que fizera com que Newton optasse por ficar de pé.

Depois, voltou à sala, e viu que o outro se sentara.

— Creio que é melhor ficar — disse. — Podemos discutir nossos planos.

— Claro — concordou Bryce. — Suponho que sim. — ficou ali como se tivesse sido atacado por uma paralisia e, depois acrescentou: — Eu... esqueci-me do gelo. Para a bebida. Desculpe.

E foi outra vez para a cozinha.

A mão tremia quando a meteu na gaveta e ligou o interruptor. Enquanto a coisa aquecia, dirigiu-se a geladeira e tirou gelo. Foi uma das poucas vezes na sua vida em que se congratulou pelo progresso tecnológico; graças a Deus já não era necessário lutar com um tabuleiro de gelo. Largou dois cubos no copo.

Voltou à gaveta do pão, inspirou profundamente, e apertou o botão.
Houve um zumbido quase imperceptível e depois silêncio.

Desligou e encaminhou-se para a sala. Newton ainda estava na poltrona. Por um instante Bryce não conseguiu afastar os olhos da saída de ar.




Abanou a cabeça, esforçando-se para se libertar da ansiedade. Seria ridículo trair-se depois da coisa feita. E, percebeu-o então, sentia-se como um traidor — um homem que acabara de trair seu amigo.
Newton disse: —Suponho que iremos por via aérea.
Não conseguiu dominar-se.

— Como Ícaro? — Perguntou perversamente.

Newton riu.

— Como Dédalo, espero. Não aprecio afogamentos.

Era a vez de Bryce ficar de pé. Não queria sentar-se, para não ser obrigado a encarar Newton.

— Vamos usar seu avião?

— Sim. Pensei em irmos na manhã de Natal. Isto é, se o Brinnarde conseguir arranjar os detalhes com o aeroporto de Chicago, nesse dia. Suspeito que vai haver engarrafamento.
Bryce estava acabando a bebida — muito mais depressa do que era costume.

— Não necessariamente por ser Natal — comentou e prosseguiu sem saber exatamente o que devia perguntar: — A Betty Jo vai conosco?

Newton hesitou.

— Não. Só nós dois.

Sentiu-se um pouco irracional, como dias atrás, conversado à beira do lago.

— Ela não vai sentir sua falta?

Claro que não tinha que meter-se naquilo. Não pareceu ofendido com a pergunta.

— Acho que também vou sentir a falta dela, Dr. Bryce. — Olhou para a lareira durante um tempo mais longo, em silêncio. — Pode preparar-se para partir na manhã de Natal, às oito? Mandarei Brinnarde buscá-lo... se preferir.



— Ótimo! — Com a cabeça baixa, tomou o resto do scotch. — Quanto tempo ficaremos lá?

— Pelo menos, dois ou três dias.

Newton levantou-se, começou outra vez a vestir o casaco. Bryce sentiu uma onda de alívio; sentia que não se ia conter por muito tempo. O filme...

— Suponho que vai precisar de meia dúzia de camisas novas. As despesas são por minha conta.

— Por que não? — Bryce riu com um certo nervosismo. — O senhor é milionário.

— Exatamente — respondeu Newton puxando o fecho do casaco.

Bryce ainda se encontrava sentado, a olhar para cima, vendo como Newton, bronzeado e muito magro, se lhe sobrepunha como uma estátua. — Exatamente. Sou milionário.

Depois foi embora, caminhando pela neve...

Com os dedos a tremer de excitação, e cheio de vergonha deles por estarem tão descontrolados, Bryce tirou a grelhar, puxou a câmera para fora, pousou-a no sofá depois de sacar o filme. Depois vestiu o sobretudo, meteu o filme cuidadosamente no bolso, e dirigiu-se para o laboratório, debaixo da neve que caía em grande quantidade. Esforçava-se para não correr.

O laboratório estava deserto — graças a Deus mandara seus assistentes mais cedo para casa!
Foi direito à sala de revelação e projeção. Não se deteve para ligar os aquecedores, embora o laboratório se tivesse tornado muito frio. Manteve o sobretudo.

Quando tirou o negativo da lata de revelador gasoso, as mãos tremiam-lhe tanto que foi quase impossível colocar o filme na máquina. Então, quando ligou o interruptor do projetor e olhou para a tela na parede mais afastada, as mãos deixaram de lhe tremer e a respiração ficou suspensa. Olhou durante um minuto seguido. Então, abruptamente, virou-se, saiu da sala de projeção e entrou no laboratório — a sala enorme, comprida, vazia, e muito gelada.
Sozinho no laboratório, começou a rir alto.

— Sim — disse, e a palavra ricocheteou a partir da parede mais distante da sala, ricocheteou um pouco ocamente, por sobre as prateleiras de tubos de ensaios e bicos de Bunsen, dos vidros, cadinhos e estufas e máquinas para executar testes. —Sim. Sim. Sim, senhor Rumplestiltskin.




Antes de retirar o filme do projetor olhou outra vez para a imagem na parede.

A imagem, emoldurada pelo contorno débil de uma poltrona, de uma estrutura óssea impossível, de um impossível corpo sem externo, sem cóccix, sem costelas flutuantes, com vértebras cervicais cartilaginosas, omoplatas em ponta, minúsculas, segundas e terceiras costelas afuseladas.

Meu Deus, pensou. Vénus, Urano, Júpiter, Netuno ou Marte. Meu Deus!...




Viu em baixo, ao canto do filme, as palavras pequenas, quase indistintas, que formavam W. E. Corp.
E o significado, seu conhecido havia mais de um ano, atingiu-o de novo, com uma apavorante série de implicações: Associação Mundial de Empresas.

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