sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 08)



Durante os meses que se seguiram, Bryce andou mais ocupado do que jamais esteve antes em toda a sua vida. Desde que Brinnarde fora buscá-lo à porta da mansão e o enviara para os laboratórios de pesquisa, na margem mais distante do lago, mergulhara com entusiasmo e um fervor que jamais sentira, na multiplicidade de tarefas que Newton esperara dele. Havia ligas a serem escolhidas e melhoradas, testes infinitos a serem feitos, extraordinárias qualificações ideais de calor e resistência a ácidos a serem procuradas em plásticos, metais, resinas e cerâmica. Era um trabalho para o qual seu treinamento servia às mil maravilhas e adaptou-se com grande rapidez.

Tinha catorze empregados sob as suas ordens e dispunha de um enorme barracão de alumínio, um laboratório para trabalhar, um orçamento praticamente ilimitado, uma pequena casa privada de quatro quartos e carta branca para usar o avião para ir a Louisville, Chicago ou Nova York. Havia contratempos e confusões, é claro, especialmente com o atraso na entrega de equipamentos e materiais, e em disputas mesquinhas ocasionais entre seus assistentes, mas esses incômodos nunca foram suficientemente sérios para comprometer o trabalho.

Ele era, se não feliz, ocupado demais para ser infeliz. Ele estava absorvido, de uma maneira que nunca tinha experimentado como professor, e estava ciente de que muito em sua vida dependia dele. Sabia que não voltaria a ensinar, assim como ele tinha se afastado de vez, anos antes, do trabalho com o governo, e era imperativo que ele acreditasse em seu trabalho atual. Ele era velho demais para falhar novamente, já que nunca seria capaz de recuperar-se. Em uma série de eventos que tinham começado com um punhado de estalinhos, ele tinha chegado a uma situação com que muitos homens podiam apenas sonhar.

Muitas vezes encontrou-se trabalhando até tarde da noite, absorvido em seu trabalho; e já não bebia todas as manhãs. Havia prazos a serem cumpridos, alguns projetos tinham que estar prontos para a produção em certas datas, e ele não estava preocupado com isso. Ele estava bem no cronograma.

Ocasionalmente, o fato de que o trabalho focava em pesquisa aplicada e não em investigação genuinamente básica era uma fonte de preocupação para ele; era um pouco velho demais agora, um pouco desiludido, para se preocupar com honra e questões de integridade. Talvez a única questão moral real fosse, ou não, se estava trabalhando em uma nova arma, um novo meio de desmembrar homens ou destruir cidades. E a resposta para isso era não. Estavam construindo um veículo para transportar instrumentos em torno do sistema solar, e que em si era inofensivo.

Parte da rotina de seu trabalho consistia em verificar seu progresso em relação ao portfólio de especificações de Newton, passado por Brinnande. Esses papéis consistiam em grande parte em especificações de centenas de peças menores de refrigeração, controle de combustível e sistemas de orientação, especificações que pediam certas medidas de condutividade térmica, resistência elétrica, estabilidade química, massa, a temperatura de ignição, etc.

Era responsabilidade de Bryce encontrar o material mais adequado, ou se não havia tal material, encontrar o segundo melhor. Em muitos casos, isso era muito fácil, tanto que ele não podia deixar de pensar na ingenuidade de Newton sobre os materiais; mas em vários casos as especificações não eram atendidas por nenhuma substância conhecida. Em tais casos era forçado a reunir-se com os engenheiros de projeto e elaborar uma solução possível. Tal seria entregue a Brinnande, e depois para Newton. Os engenheiros de projeto lhe disseram que tinham tido esse tipo de problema o tempo todo, durante os seis meses que o projeto estava em andamento, Newton era um gênio em design, o mais sofisticado que já tinham visto e dado origem a mil inovações surpreendentes, mas por conta de centenas de compromissos, a construção da nave em si não começaria por mais um ano.

Todo o projeto fora programado para ser concluído no prazo de seis anos; por volta de 1990, e todos pareciam ter dúvidas sobre a probabilidade de terminar neste tempo. Mas essa especulação não perturbou Bryce. Apesar da natureza ambígua da sua única entrevista com Newton, sentia-se imensamente confiante nas habilidades científicas daquela estranha pessoa.

Então, numa noite fria, três meses depois de chegar a Kentucky, Bryce fez uma descoberta.
Era quase meia-noite e achava-se só no seu gabinete particular, ao fundo do edifício do laboratório, relendo um monte de folhas de especificações, pouco disposto para ir para casa, já que gostava da noite e apreciava a tranquilidade do laboratório. Olhava despreocupado alguns diagramas de Newton, uma esquematização do sistema de arrefecimento que deveria eliminar o problema de reentrada de calor, e procedia ao relacionamento das diversas partes, quando uma estranheza identificável, a cerca das medidas e dos cálculos, começou a preocupa-lo um pouco. Roeu a extremidade do lápis, observando primeiro os diagramas feitos com tanta nitidez e, depois, a janela que dava para o lago.

Não havia nada de errado nos números, mas existia um pormenor que o perturbava.
Já dera com aquilo antes, no âmago do seu espírito; mas fora sempre incapaz de descobrir a discrepância.

Lá fora uma meia-lua brilhante pairava sobre o lago negro e ao longe, insetos ocultos faziam-se ouvir. Parecia uma paisagem lunar. Voltou a olhar para o papel, que tinha à sua frente. O grupo central de números era uma progressão de valores térmicos numa sequência irregular, as especificações de Newton, feitas por tentativas, de um tipo de tubo. Algo na sequência se mostrava sugestivo; parecia uma progressão logarítmica e, contudo, não o era. O que seria? Por que teria Newton jogado com aquela série espacial de valores e não com outros? Tinha de ser arbitrário. Não passavam de requisitos; Bryce devia achar os valores genuínos para o material que satisfizessem mais as especificações. Olhou para os valores numa espécie de leve hipnose, até os algarismos parecerem indistintos e se misturarem, à sua frente; perderam todo o sentido para si, mas não seu padrão.

Pestanejou e, então afastou os olhos novamente para a janela, para a noite de Kentucky.

A Lua mudara de posição, estava obscurecida pelas colinas que ficavam para lá do lago. Através da água sombria, uma luz fraca no segundo andar da mansão, talvez no estúdio de Newton, e, por cima das estrelas, uma miríade de pontos luminosos fracos revestia o céu preto como grãos de poeira luminosa.

De súbito, sem motivo, um sapo começou a guinchar do lado de fora da janela, sobressaltando Bryce. O sapo continuou, sem resposta, sem coro, durante uns minutos, chamando com uma vibração forte, objetiva, agachado na humidade, em algum lugar; conseguia imaginar o corpo meio reptiliano, as pernas por baixo do queixo, na grama orvalhada. O som pareceu vibrar sobre o lago, rítmico, parando depois, abrupto, deixando os ouvidos de Bryce insatisfeitos, aguardando o fim, que nunca chegou.

Mas os insetos voltaram a manifestar-se, em coro, e ele pousou o papel, à sua frente, fatigado, e foi então que viu num breve instante de intuição, quando os olhos percorriam os números familiares de uma forma automática, aquilo que tinha estado a preocupar. Encontrava-se em progressão logarítmica; tinha que ser. Mas não numa base conhecida — nem dez, nem dois, nem PI — mas em outra, desconhecida.

Pegou na régua de cálculo, que estava na mesa e já sem o menor cansaço, começou a fazer divisões, pelo processo de tentativa e erro...

Uma hora depois esticou os braços e saiu do gabinete, caminhando através da grama molhada, à beira do lago. A Lua contemplava seu reflexo na água.

Olhou para a janela de Newton e pronunciou alto, com suavidade, a pergunta que começara a tomar forma na sua mente:

— Que tipo de homem trabalhava com logaritmos de base doze?

A luz da janela de Newton, muito mais débil que a da Lua, não se alterou e, a seus pés, a água lavava gentilmente a margem, numa cadência fraca, irracional e também monótona e tranquila; tão velha quanto o mundo.


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