segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017
O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Final)
1990:
O afogamento de Ícaro
Nathan Bryce tinha descoberto Thomas Jerome Newton por meio de uma caixa de estalinhos.
Redescobriu-o por meio de uma gravação fonográfica. Deu com a gravação tão acidentalmente como descobrira os estalinhos, mas o que ela significava — pelo menos, em parte — era, de imediato, muito mais evidente do que tinham significado os estalinhos.
Isso aconteceu em Outubro de 1990, numa loja de conveniência em Louisville, a alguns quarteirões de distância do apartamento em que vivia com Betty Jo.
Se passara sete meses depois da declaração de despedida, na televisão.
Tanto Bryce como Betty Jo tinham poupado a maior parte dos seus salários na World Entreprises, e
com isso não precisavam mais trabalhar para viver, pelo menos durante um ou dois anos. Todavia Bryce aceitara um cargo de consultor, numa fábrica de brinquedos científicos — um trabalho que achava certa satisfação, que fazia com que a sua carreira na química encerrasse um círculo.
Certa tarde ao sair do trabalho, parou numa loja no caminho de casa, ao ver um grande cesto com gravações fonográficas, por baixo de um letreiro que dizia ‘Liquidação’. Mexeu em algumas, brincou por momentos, com uma ou duas, e depois descobriu algo que era o produto de um trabalho amadorístico, e que o espantou por causa do título. Desde os tempos em que as gravações fonográficas se haviam transformado em pequenas bolas de aço, os fabricantes embalavam- nas, em geral em caixinhas de plástico, presas a uma chapa de plástico. A chapa exibia uma imagem pseudo-artística e o comentário, habitualmente ridículo, que os melhores álbuns quadrafónicos costumavam trazer. Mas, a placa onde aquela estava era apenas de cartão e não tinha gravura alguma.
O título da gravação usava o estratagema banal, em letras todas minúsculas, no cartão inteiro. Dizia:
“Poemas do espaço exterior”.
E no verso: “Garantimos-lhe que não vai perceber a língua, mas vai desejar entendê-la! Sete poemas que não são deste mundo, da autoria de um homem a quem chamaremos ‘O visitante’”.
Sem a menor hesitação, Bryce levou a gravação para a cabine onde se podiam ouvir, colocou a bola no canal e acionou o interruptor. A língua que surgiu era estranha, na verdade — triste, fluida, de vogais longas, com agudos, subindo e descendo esquisitamente, completamente ininteligível.
Mas a voz, sem dúvida alguma, era a de T. J. Newton.
Desligou o interruptor. Ao fundo do cartão da gravação estava impresso: Gravada pela Terceira Renascença, Sullivan Street, 23, Nova Iorque.
A Terceira Renascença ficava num sótão. O pessoal de escritório era apenas uma pessoa, um jovem negro garboso, com um bigode enorme. A pessoa em questão estava, felizmente, bem humorada, quando Bryce apareceu no escritório, e explicou com toda a boa vontade, que ‘o visitante’ da gravação era um excêntrico rico, chamado Tom e que vivia no Village. Esse excêntrico, ao que parecia, tinha ele próprio trazido a gravação e pagara o preço da gravação quanto também sua distribuição. Podia-se encontrá-lo num bar e cafeteria na esquina, chamada ‘The Key and Chain’...
The Key and Chain era uma relíquia das velhas cafeterias, que tinham desaparecido nos anos 70. Tal como sucedera a outras, haviam conseguido sobreviver instalando um bar e vendendo bebidas alcoólicas baratas. Não havia anúncios de leitura de poesia, mas existiam quadros amadores nas paredes, mesas de madeira baratas, espalhadas ao acaso, e seus poucos clientes tinham todo o cuidado em se vestirem como maltrapilhos.
Thomas Jerome Newton não se encontrava entre eles.
Bryce pediu um uísque com soda no bar, e bebeu-o devagar, resolvido a esperar, pelo menos, uma hora.
Tinha iniciado a segunda bebida quando Newton entrou.
Primeiro, Bryce não o reconheceu. Newton estava um pouco curvado, e andava com um ar mais pesado que nunca. Trazia os habituais óculos escuros, e também uma bengala, e usava um chapéu de feltro cinzento — o cúmulo do absurdo. Uma gorda enfermeira, fardada, conduzia-o pelo braço.
Levou-o para uma mesa isolada, ao fundo da sala, o fez sentar e partiu.
Newton virou-se para o bar e disse: — Boa tarde, Sr. Elbert.
E o barman respondeu: — Já te atendo, tio.
Depois abriu uma garrafa de gim Gordon's, pôs numa bandeja com outra de angustura, cerveja inglesa e um copo, e levou tudo para a mesa de Newton.
Este tirou uma nota do bolso da camisa, entregou-a, sorriu com ar vago, e disse:
— Guarde o troco.
Bryce observou-o com atenção, do bar, enquanto tateava à procura do copo, o encontrava e o enchia de gim até a metade, acrescentando-lhe uma porção generosa de cerveja. Não se serviu de gelo e não mexeu a bebida, começando a bebê-la. Bryce começou a pensar no que iria dizer a Newton, já que o encontrara. Poderia ir até ele, com o uísque na mão e dizer:
“Mudei de ideia no ano passado. Quero que os antheanos venham, afinal de contas. Tenho lido os jornais e agora quero que os antheanos nos dominem.”
Tudo aquilo parecia tão ridículo, e Newton parecia uma criatura patética!
Aquela conversa de Chicago parecia ter acontecido num sonho, em outro planeta.
Olhou para o antheano, durante um tempo que lhe pareceu enorme, recordando a última vez que tinha visto o Projeto, a nave de Newton, do avião da Força Aérea que o transportara, junto com Betty Jo e mais cinquenta pessoas, tirando-os de Kentucky.
Por momentos, ao pensar nisso, quase esqueceu onde estava. Lembrou-se daquela linda nave, grande e absurda, que tinham construído, rememorou o prazer que tivera ao trabalhar nela, a maneira como, durante um tempo, andara tão absorvido em resolver problemas de metais e cerâmica, de temperatura e pressão, a sensação de que a sua vida estava, realmente, inserida em algo de importante, que valia a pena.
Naquela altura, a nave já tinha enferrujado, se é que o FBI não a tinha enfiado toda em termoplástico, selando, e entregue aos porões do Pentágono.
Então pensou, que diabo, levantou-se, encaminhou-se para a mesa de Newton, sentou-se e disse, com uma voz calma e resoluta: — Olá, Sr. Newton.
A voz de Newton parecia, também, calma: — Nathan Bryce?
— Sim.
Newton acabou a bebida que tinha na mão.
— Estou feliz que tenha aparecido. Pensei que talvez pudesse aparecer algum dia.
Por uma razão qualquer, o tom da voz de Newton, talvez a casual despreocupação, embaraçou Bryce. Sentiu-se, subitamente, envergonhado.
— Descobri a sua gravação — disse. — Os poemas.
Newton sorriu vagamente: — Sim? Gostou deles?
— Não muito. — Tentara apelar para a sua audácia ao dizer aquilo, mas sentiu-se como se, apenas, tivesse bancado o impertinente. Pigarreou: — Por que é que fez aquilo?
Newton continuou a sorrir.
— É espantoso como as pessoas não descobrem as coisas — comentou. — Pelo menos foi o que me disse o homem da CIA. — Começou a arranjar outro gim e Bryce reparou que a mão tremia. Pousou a garrafa, com ar pouco firme. — A gravação não tem nada a ver com poesia antheana. É uma carta.
— Uma carta para quem?
— Para a minha mulher, Sr. Bryce. E para algumas das pessoas inteligentes do meu planeta que me treinaram para... para esta vida. Esperava que fosse transmitida na rádio, em FM. Só o FM transpõe o espaço entre planetas. Mas, tanto quanto sei, não a tocaram.
— O que diz ela?
— Oh ‘Adeus’. ‘Vão pro inferno’. Coisas desse gênero.
Bryce sentia-se cada vez mais incomodado.
Momentaneamente, desejou ter trazido Betty Jo consigo. Betty Jo teria recuperado sua sanidade, para tornar as coisas compreensíveis em suportáveis. Mas Betty Jo acreditara ter estado apaixonada por T.
J. Newton, e isso seria ainda mais incômodo que o que se passava.
Ficou calado, sem saber o que dizer.
— Bem, Nathan, suponho que não se importará que lhe chame de Nathan. Agora que me encontrou, o que quer de mim?
Sorriu por baixo dos óculos e do ridículo chapéu. O sorriso parecia tão velho como a Lua; não era, de modo algum, um sorriso humano.
De súbito, Bryce sentiu-se envergonhado por causa do sorriso, por causa do tom de voz grave, cansado, terrivelmente exausto. Antes de responder, deixou a bebida cair no copo, batendo, sem querer, com o gargalo da garrafa contra ele. Depois bebeu, mal olhando para Newton, para o verde opaco dos óculos de Newton. Agarrou o copo com ambas as mãos, apoiando os cotovelos na mesa, e disse:
— Quero que salve o mundo, Sr. Newton.
O sorriso de Newton não se alterou e a sua resposta foi imediata.
— Vale a pena salvá-lo, Nathan?
Ele não tinha vindo ali para trocar frases irônicas.
— Sim. Acho que vale. Quero viver.
Abruptamente, Newton inclinou-se para diante na cadeira, cm direção ao bar.
— Sr. Elbert — chamou. — Sr. Elbert!
O barman, um homem baixo, com uma cara triste, aflita, saiu do seu devaneio.
— Sim? — Perguntou delicadamente.
— Sr. Elbert, tem consciência de que eu não sou um ser humano? Sabe que sou de outro planeta, que se chama Anthea, e que cheguei aqui numa nave?
O barman encolheu os ombros.
— Ouvi dizer — respondeu.
— Bom, sou mesmo. — Fez uma pausa e Bryce olhou-o chocado, não por aquilo que Newton dissera, mas por uma faceta pueril, adolescente, pateta, que havia na sua voz. O que lhe teriam feito?
Apenas cegado?
Newton chamou outra vez o barman:
— Sr. Elbert, sabe por que motivo eu vim para este mundo?
Daquela vez, o barman nem sequer ergueu os olhos.
— Não, não sei.
— Vim para salvá-los. — A voz de Newton era irônica, existia nela um vestígio de histeria. — Vim para salvar a todos.
Bryce percebeu que o barman sorria. Depois, atrás do balcão disse:
— E melhor começar já. Precisamos ser salvos, e depressa.
Então Newton deixou pender a cabeça, se por vergonha, desespero ou fadiga, Bryce não saberia.
— Oh, sim. Precisamos ser salvos, e depressa. — Depois levantou o rosto e sorriu para Bryce. — Tem visto a Betty Jo? — Perguntou.
Aquilo o pegou desprevenido.
— Sim...
— Como está? Como está Betty Jo?
— Está bem. Tem saudades suas... Mas, como disse, Sr. Elbert, precisamos ser salvos. Pode fazê-lo?
— Não. Desculpe.
— Não há uma hipótese?
— Não. É claro que não. O governo sabe tudo sobre mim...
— Contou-lhes?
— Podia ter contado; mas não foi preciso. Parece que já sabiam, há muito tempo. Acho que fomos ingênuos.
— Quem? O senhor e eu?
— O senhor. Eu. A minha gente, lá em casa, meus dirigentes... — disse suavemente: — Fomos ingênuos.
Elbert replicou, com a mesma suavidade: — É mesmo.
Parecia genuinamente preocupado, como se acreditasse mesmo, no que Newton estava afirmando.
— Percorreu um longo caminho.
— Oh, percorri sim. E numa nave pequena... Foi uma viagem muito longa, Nathan, mas li bastante.
— Sim. Mas não me referia a isso. Quero dizer que percorreu um longo caminho desde que chegou. O dinheiro, a nova nave...
— E ganhei muito dinheiro. Ainda ganho. Mais que nunca. Tenho dinheiro em Louisville e dinheiro em Nova Iorque e quinhentos dólares no meu bolso e uma pensão do governo. Agora sou um cidadão, Nathan. Fizeram de mim um cidadão. E talvez possa obter um seguro de desemprego. A World Entreprises é um negócio de sucesso, mesmo sem mim, Nathan. A World Entreprises.
Bryce, intimidado pelo estranho aspecto de Newton, pela sua maneira de falar, sentiu dificuldade em continuar, portanto dirigiu o olhar para a mesa.
— Não pode acabar a nave?
— Acha que deixariam?
— Com todo o seu dinheiro...
— Acha que eu desejo?
Bryce levantou os olhos para ele: — Deseja?
— Não. — Depois, subitamente, Newton reassumiu sua aparência mais antiga, mais composta, mais humana. — Oh, sim, suponho que o desejo, Nathan. Mas não o suficiente. Não o suficiente.
— E a sua gente? A sua família?
Newton fez, outra vez, aquele sorriso que não era terreno.
— Calculo que morrerão todos. Mas talvez ainda vivam mais do que vocês.
— Eles fritaram seu cérebro como fizeram com seus olhos, Sr. Newton?
Bryce ficou surpreendido com as suas próprias palavras, mas a expressão de Newton não se modificou.
— Vocês não sabem nada, absolutamente nada, sobre meu cérebro, Nathan. E isso se deve por serem
humanos.
— Você mudou, Sr. Newton.
Newton riu baixinho: — Em que aspecto, Nathan? Mudei para algo novo, ou voltei a ser algo antigo?
Bryce não soube o que dizer e ficou em silêncio.
Newton pousou o copo na mesa. Depois prosseguiu:
— Este mundo está condenado, tão claro quanto Sodoma e nada posso fazer. — Hesitou. — Sim, uma parte do meu cérebro está destruído.
Bryce, procurando uma maneira de protestar, disse: — A nave...
— A nave é inútil. Tinha que ser acabada a tempo e agora não há mais tempo. Nossos planetas não vão estar suficientemente próximos um do outro, durante mais de sete anos. Já estão afastando-se. E os Estados Unidos nunca me deixariam construí-la. Se a construísse nunca me deixariam lançá-la. E se a lançasse prenderiam os antheanos aqui viessem e iriam cegá-los. E arruinariam os seus cérebros...
Bryce terminou a bebida.
— Você me disse que tinha uma arma.
— Sim. Disse isso. Estava mentindo. Não tenho arma nenhuma.
— Por que mentiria?
Newton inclinou-se pra frente, pousando, cuidadosamente, os cotovelos na mesa.
— Nathan, Nathan. Naquela altura, eu tinha medo de vocês. Tenho medo agora. Sempre tive medo de todas as coisas, cada momento que tenho passado neste planeta, neste planeta monstruoso, belo, aterrorizante, com todas as suas estranhas criaturas e a sua água abundante, e todos os seus habitantes humanos. Tenho medo agora. Tenho medo de morrer aqui.
Calou-se e, como Bryce nada dissesse ainda, recomeçou a falar:
— Nathan, pense em viver com macacos durante seis anos. Ou pense em viver com os insetos, em viver com as formigas, brilhantes, atarefadas e estúpidas.
— Acho que está mentindo. Não somos insetos para você. Talvez no princípio, mas não agora.
— Oh, eu gosto de vocês, sem dúvida. Mas, de qualquer modo, não passam de insetos. Contudo, posso ser mais parecido com vocês do que vocês comigo. — Fez o seu sorriso antigo, esquisito. —
Afinal de contas, são o meu campo de pesquisa, vocês humanos. Estudei vocês durante toda a minha vida.
Bruscamente, o barman falou-lhes: — Amigos, querem mais?
Newton terminou a sua bebida.
— Certamente — disse —, traga-nos dois. Sr. Elbert.
Enquanto Elbert estava limpando a mesa, com um pano laranja, Newton esclareceu:
— Sr. Elbert, resolvi que não vou salvá-los.
— Isso é péssimo — respondeu o outro. Pôs os copos limpos na mesa húmida. — Lamento ouvir isso.
— É uma pena, não? — Tateou procurando a nova garrafa de gim, encontrou-a, e despejou no copo.
Disse: — Vê Betty Jo com frequência, Nathan?
— Sim. Betty Jo e eu vivemos juntos.
Newton bebeu um gole.
— Como amantes?
Bryce riu, baixinho.
— Sim.
A cara de Newton tomou-se impávida, com a impassibilidade que Bryce descobrira ser uma máscara dos seus sentimentos.
— Então a vida continua.
— O que esperava? — Perguntou Bryce. — É claro que a vida continua.
De súbito, Newton desatou a rir. Bryce estava pasmo; nunca o ouvira rir, antes. Então, ainda a tremer, por causa do riso, Newton disse:
— É uma boa coisa. Agora ela não estará mais sozinha. Onde está?
— Em casa, em Louisville, com os seus gatos. Bêbada, provavelmente.
A voz de Newton estava outra vez firme:
— Você a ama?
— É uma boa mulher. Sou feliz com ela.
Newton sorriu, gentil.
— Não leve a mal o meu riso, Nathan. Acho que é uma coisa linda, vocês estarem casados.
— Não estamos, mas tenho pensado nisso.
— Certamente vai casar com ela. Case e vão viajar de lua-de-mel. Precisa de dinheiro?
— Não foi por isso que não casei. Mas posso fazer uso de algum dinheiro, sim. Quer me dar algum?
Newton riu de novo. Parecia satisfeito. Bryce tomou um gole.
— Um milhão de dólares.
— Vou passar um cheque. — Newton tateou o bolso da camisa, tirou um talão de cheques, pousou-o na mesa. Era do Chase Manhattan Bank. — Eu costumava ver na televisão aquele programa, do cheque de um milhão — disse e empurrou o cheque para Bryce. — Preencha que eu assino.
Bryce tirou do bolso sua esferográfica Woolworth, escreveu o seu nome no cheque e depois os algarismos $1.000.000.
A seguir, por extenso: um milhão de dólares. Empurrou o talão para o outro lado da mesa.
— Já está no meu nome — anunciou.
— Tem que me guiar a mão.
Bryce levantou-se, rodeou a mesa, pôs a caneta na mão de Newton e segurou-a, enquanto o antheano escrevia, Thomas Jerome Newton, numa letra clara e firme.
Bryce meteu o cheque na carteira.
— Lembra de um filme — disse Newton — que passou na televisão, chamado ‘A Letter to Three Wives’
— Não.
— Eu aprendi a escrever inglês a partir de uma fotografia dessa carta, há vinte anos, em Anthea. Tínhamos uma recepção bastante clara, em vários canais, desse filme.
— Tem uma letra boa e legível.
— Claro que tenho. Fazemos tudo muitíssimo bem. Trabalhei a sério para me tornar uma imitação de um ser humano. — Virou-se para Bryce, como se o pudesse realmente ver. — E obtive sucesso.
Bryce, nada dizendo, voltou ao seu lugar. Sentiu que devia mostrar simpatia, fosse o que fosse, mas não sentia nada. Portanto ficou calado.
— Para onde vão viajar? Com o dinheiro?
— Não sei. Talvez até o Pacífico, Taiti. Provavelmente levaremos conosco um aparelho de ar condicionado.
Newton começou a mostrar o sorriso lunar, o sorriso antheano e não terreno.
— E vão embriagar-se.
Bryce sentiu-se incomodado.
— Podemos tentar — respondeu.
Não sabia o que iria fazer com um milhão de dólares. As pessoas costumam perguntar a si mesmas, o que fariam se alguém lhes desse um milhão de dólares, mas nunca o tinha perguntado. Talvez fossem, na verdade, até ao Taiti e se embriagassem numa cabana, se ainda houvesse cabanas em Taiti. Se não, teriam de ficar no Taiti Hilton.
— Bem, desejo uma boa viagem — disse Newton. E depois: — Estou contente por poder fazer qualquer coisa com o dinheiro. Tenho uma quantidade horrorosa dele.
Bryce levantou-se para partir, sentindo-se cansado e um pouco bêbado.
— E não há qualquer hipótese?
Newton sorriu-lhe, de maneira ainda mais estranha que antes; a boca, por baixo dos óculos e do chapéu, era uma linha curva imperfeita, desajeitada, como a de uma criança ao desenhar um sorriso.
— Claro, Nathan, claro que sempre há uma hipótese.
— Bom. Obrigado pelo dinheiro.
Por causa dos óculos escuros, Bryce não podia ver seus olhos.
— A fortuna é caprichosa, Nathan — comentou ele. — A fortuna é caprichosa.
Newton começou a tremer.
Seu corpo anguloso foi-se inclinando para a frente e o chapéu de feltro caiu silenciosamente na mesa, revelando o cabelo branco como giz.
Depois sua cabeça antheana tombou, sobre os magros braços antheanos, e Bryce viu que ele chorava.
Por um instante, ficou paralisado a olhar. Depois contornou a mesa e, ajoelhando-se, passou os braços em redor do tronco de Newton, e segurou-o gentilmente, sentindo o corpo leve a tremer nas suas mãos, como o de uma ave delicada, palpitante, angustiada.
O barman aproximou-se e, quando Bryce levantou os olhos, ele disse:
— Acho que o seu camarada precise de ajuda.
— Sim — concordou Bryce. — Acho que precisa. Acho que precisa.
FIM.
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