segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 15)



IX

Durante mais de um ano tornara-se mais difícil saber o que sentia em relação a muitas coisas.
Não se tratava de uma dificuldade característica do seu povo, mas adquirira-a, fosse como fosse.

No decorrer daqueles quinze anos em que tinha aprendido a falar inglês, a apertar botões, a fazer o nó de uma gravata, a decorar a média de acertos de um jogador de basebol, as marcas dos automóveis, e mais inúmeros pormenores informativos desnecessários, durante todo esse tempo nunca sofrerá por
duvidar de si mesmo, nunca tinha posto em dúvida o plano para o qual fora escolhido.

E, naquele momento, após cinco anos de vida efetiva com seres humanos, era incapaz de saber como se sentia sobre um assunto tão simples como ser liberto da prisão.

Quanto ao plano em si, não sabia o que pensar e, portanto, raramente pensava nele.

Tornara-se muito humano.

De manhã, devolveram seus disfarces. Pareceu estranho tornar a usá-los antes de sair para o mundo, e também parecia tolo, por que e de quem deveria se ocultar? Todavia, sentiu-se satisfeito por estar de posse das lentes de contato, que davam aos olhos uma aparência mais humana. Seus filtros aliviavam-no da  luminosidade que até os óculos escuros, que usava permanentemente, não podiam evitar de todo. E, quando as colocou e se olhou no espelho, ficou aliviado por parecer humano de novo.

Um homem que nunca vira antes foi buscá-lo e o fez percorrer um corredor que estava iluminado por painéis — feitos sob a patente da W. E. Corporation — e guardado por soldados armados. Entraram num elevador.

As luzes do elevador eram opressivamente fortes. Ele pôs os óculos escuros.

— O que têm dito os jornais sobre tudo isto? — perguntou, embora, realmente, não se importasse.

O homem, embora calado até aquele instante, revelou-se, afinal, bastante afável. Era um indivíduo baixo, troncudo, escuro.

— Não é da minha conta — respondeu com ar agradável —, mas acho que disseram que o tinham sob custódia devido a razões de segurança. O seu trabalho é vital para a defesa do país. Coisas desse gênero.

— Teremos repórteres à espera, quando eu sair?

— Acho que não. — O elevador parou. A porta abriu-se para outro corredor com homens armados.

— Vamos tentar sair pela porta dos fundos.

— Agora?

— Daqui a duas horas, mais ou menos. Há certas rotinas a cumprir primeiro. Temos de prepará-lo. E para isso que eu estou aqui. — Continuaram pelo corredor, que era muito comprido e, como o resto do edifício, brilhantemente iluminado. — Me fale, esteve detido por quê?

— Não sabe?

— Essas coisas são mantidas em segredo.

— O Sr. Van Brugh não o informou?

O homem sorriu.

— O Sr. Van Brugh não conta nada a ninguém, talvez com exceção do Presidente, e só diz o que acha que precisa ser dito.

No fim do corredor — ou túnel — havia uma porta que os introduziu no que pareceu um enorme consultório de dentista. Sua limpeza era espantosa e tinha azulejos amarelo-canário. Viu uma cadeira, do tipo dos dentistas, ladeada por várias máquinas, com um ar desconfortavelmente moderno. Duas mulheres e um homem estavam de pé, à espera, sorrindo com delicadeza, e usando batas amarelo-canário, que condiziam com os azulejos.

Estava esperando Van Brugh, não sabia bem por que, mas Van Brugh não se encontrava ali.

O homem que o acompanhava conduziu-o até à cadeira. Fez uma careta.

— Sei que parece horrível, mas não vão fazer nada que o magoe. Só uns testes de rotina, principalmente por motivos de identificação.

— Meu Deus! — exclamou Newton. — Ainda não fizeram testes o suficiente?

— Nós não, Sr. Newton. Desculpe se parece uma repetição do que a CIA tem feito. Mas somos do

FBI, e temos que ter registros seus nos nossos arquivos. São testes do tipo sanguíneo, impressões digitais, um EEG, esse tipo de coisa.

— Muito bem.

Sentou-se na cadeira com ar resignado. De qualquer maneira, não demoraria muito.

Durante algum tempo, picaram-no e examinaram-no com agulhas, equipamento fotográfico e várias engenhocas. Puseram-lhe grampos na cabeça para medir ondas cerebrais, outros nos pulsos para contar batidas cardíacas. Sabia que alguns desses resultados deviam ser surpreendentes, mas eles não mostraram qualquer surpresa. Era tudo, como dissera o homem do FBI, uma questão de rotina.
Depois de quase uma hora, puxaram uma máquina com rodas para perto dele, e pediram para tirar os óculos. A máquina possuía duas lentes, espaçadas como uns olhos, que o examinasse curiosamente.
Ficou imediatamente assustado. Eles desconheciam as peculiaridades dos seus olhos...



— O que vão fazer com isso?

O técnico de bata amarela tirou uma régua pequena do bolso da camisa e atravessou-a contra a ponta do nariz de Newton, obtendo uma medida. Sua voz foi inexpressiva:

— Apenas umas fotografias — explicou. — Não vamos machucá-lo.

Uma das mulheres, com um sorriso profissional, estendeu a mão para os seus óculos escuros.

— Agora, vamos tirar esses...

Ele afastou a cabeça, levantando a mão para proteger-se.

— Só um momento. Que tipo de fotografia?

O homem da máquina hesitou um momento. Depois olhou de relance o indivíduo do FBI, então sentado junto à parede. O do FBI acenou com a cabeça, fazendo, afavelmente, um sinal afirmativo. O técnico da bata amarela disse:

— São dois tipos de imagens, ambas tiradas simultaneamente. Uma é uma foto das suas retinas, para captar a disposição dos vasos sanguíneos. A melhor identificação que se consegue obter. A outra é uma radiografia. Queremos determinar os sulcos no interior do seu occipício, a parte de trás do crânio.

Newton tentou sair da cadeira.

— Não! — gritou. — Não sabem o que fazem!

Mais depressa do que julgou possível, o afável homem do FBI encontrava-se atrás dele, agarrando-o e sentando-o de novo na cadeira. Estava imobilizado.

— Lamento muito, mas temos de fazer estas imagens.

Ele tentou acalmar-se.

— Não os informaram? Não contaram com o que se passa com meus olhos? Com certeza eles sabem.

— O que há com os seus olhos? — perguntou o homem da bata amarela, que parecia impaciente.

— São sensíveis aos raios X. Esse aparelho...

— Não há ninguém que tenha olhos que possam ver raios X. — O homem  obviamente estava irritado. — Ninguém enxerga nessas frequências.

Acenou afirmativamente para a mulher e, sorrindo, esta tirou-lhe os óculos. A luz da sala obrigou-o a pestanejar.

— Eu vejo tudo de uma maneira diferente da de vocês. Deixem-me mostrar como são  meus olhos. Se me largarem eu tiro as lentes de contato.

O sujeito do FBI não o largou.

— Lentes de contato? — perguntou o técnico. Inclinou-se de mais perto, perto dos olhos de Newton durante muito tempo. Depois recuou. — Não está de lentes de contato.
Ele sentiu uma coisa que há muito lhe era desconhecida — pânico.

A claridade da sala tornara-se opressiva, pulsando à sua volta com a regularidade dos batimentos do seu coração.

Falou de uma maneira lenta, embriagada: — São... um tipo novo. Uma membrana e não é de plástico. Se me largarem, só um instante, eu mostro.

O técnico ainda estava de lábios franzidos.

— Isso não existe — declarou. — Tenho experiência com lentes de contato há vinte anos e...

Por detrás dele, o homem do FBI disse algo simpático.

— Deixe-o, Arthur — e soltou-lhe os braços. — Afinal de contas, ele paga seus impostos.

Newton deixou escapar um suspiro. Depois disse: — Preciso de um espelho. — Começou a procurar nos bolsos e, de repente, entrou outra vez em pânico. Não tinha a pinça especial destinada a tirar as membranas... — Desculpe — declarou sem se dirigir a ninguém em especial. — Mas preciso de um instrumento. Talvez no meu quarto...

O homem do FBI sorriu, com ar paciente. — Não vamos ficar aqui o dia todo. E não poderia voltar àquele quarto mesmo que quisesse.

— Muito bem — disse Newton. — Então, têm uma pinça pequena?

O técnico fez uma careta.

— Só um minuto.

Murmurou qualquer coisa e depois foi até uma gaveta. De um momento para o outro tinha reunido um quantidade formidável de pinças — pinças, coisas parecidas com pinças, e instrumentos em forma de pinças, cujo funcionamento não era claro. Arrumou-as na mesa, junto à cadeira de dentista.
Uma das mulheres já tinha entregado a Newton um espelho redondo. Ele tirou da mesa uma pinça pequena sem pontas. Não era muito semelhante àquela que estava habituado a utilizar, mas talvez servisse. Abriu-a e fechou-a, para experimentar algumas vezes. Talvez fosse um pouco grande, mas devia servir.

Depois descobriu que não conseguia manter o espelho estável. Pediu à mulher para o segurar. Ela aproximou-se. O homem de bata amarela começou a bater com o pé no chão. As batidas pareciam andar a compasso com a palpitação das luzes na sala.

Quando levantou a mão, com a pinça, na direção dos olhos, os dedos começaram a tremer-lhe, descontroladamente. Tentou de novo, mas não conseguiu aproximar a pinça dos olhos.

— Desculpem — disse. — Só mais um minuto...

A mão fugiu-lhe, involuntariamente, do olho, com medo do instrumento e das sacudidelas, da tremer dos dedos, sem domínio. A pinça caiu-lhe da mão para o colo. Procurou-a, e então, suspirando, encarou o homem do FBI, cuja cara se mantinha inexpressiva. Por que as luzes precisavam ser tão fortes?

— Posso tomar uma bebida? Gim? — perguntou ele.

De repente o homem riu-se. Mas o riso não parecia afável. Parecia debochado, frio, brutal. E ecoou pela sala de azulejos.

— Vamos em frente! Vamos lá!

Então em desespero, ele agarrou na pinça. Se pudesse desprender parte de uma das membranas, mesmo se prejudicasse o olho, eles poderiam perceber...
Por que é que Van Brugh não aparecia e não lhes dizia? Seria preferível destruir um dos olhos do que submeter ambos àquela máquina.

Bruscamente, as mãos do homem do FBI agarraram seus pulsos e braços — aqueles braços tão débeis quando confrontados com o vigor de um humano — puxando-os para trás das costas e seguros. E, então, alguém lhe pôs um grampo em redor da cabeça, apertando-lhe as têmporas.
— Não! — disse baixinho. — Não façam isso!

Estava incapaz de mover a cabeça.

— Desculpe — disse o técnico. — Mas sua cabeça tem de ficar parada.

Então empurrou a máquina, diante da cara de Newton. Rodou uma maçaneta que fez com que as lentes se aproximassem dos olhos de Newton, como um binóculo.
E Newton, pela segunda vez em dias, fez algo muito humano. Gritou.

— Não sabem que não sou humano? Eu não sou humano!

E, a seguir, houve um lampejo de luz prateada que era mais brilhante para Newton, do que o sol do meio-dia em pleno verão para um humano que tivesse vindo de um quarto às escuras e sido forçado a olhar para cima, de olhos abertos.

Depois sentiu a pressão abandonara-lhe a face e soube que tinham puxado para longe a máquina com rodas.

Só após ter desmaiado duas vezes é que lhe examinaram os olhos e descobriram que estava cego.





X

Mantiveram-no incomunicável durante seis semanas em um hospital do governo, onde os médicos do governo não fizeram nada por ele. As células fotossensíveis das suas retinas tinham sido totalmente danificadas; não eram mais capazes de fazer distinções visuais, como uma chapa fotográfica que tivesse sofrido uma exposição demasiada à luz. Pôde, semanas mais tarde, destrinçar a luz das trevas, e podia dizer, quando um objeto escuro era colocado na sua frente, um objeto grande e escuro. E mais nada, sem cor, nada sobre a forma.

Foi durante esse período que começou a pensar outra vez em Anthea.

Primeiro a recordar pormenores antigos e dispersos, principalmente da infância.

Lembrou-se de certo jogo, parecido com o xadrez, que adorava quando criança — um jogo com
cubos transparentes, num tabuleiro circular — c deparou consigo a evocar as regras complexas pelas quais os cubos verde-pálidos tomavam ascendência sobre os cinzentos, quando se configuravam para formar polígonos.

Rememorou os instrumentos musicais que estudara, os livros que lera, em especial os de história, e o fim automático da sua infância, aos trinta e dois anos de Anthea — ou quarenta e cinco, tal como os humanos os contavam —, quando se casara. Não fora ele a escolher sua esposa, embora às vezes se fizesse isso, mas permitira que a família a escolhesse. O casamento fora eficaz e bastante agradável.

Não existia paixão, mas os antheanos não eram uma raça apaixonada.


 Cego, naquele momento, num hospital dos Estados Unidos, reparou que pensava na mulher com mais afeição do que jamais pensara antes. Tinha saudades dela, e gostaria que estivesse junto dele.

Às vezes chorava.

Como não podia ver televisão, ocasionalmente ouvia rádio.

O governo não conseguira manter em segredo a sua cegueira. Os republicanos estavam a usá-lo na sua campanha. Chamavam o ocorrido de um exemplo de arbitrariedade e irresponsabilidade.

Depois da primeira semana deixou de sentir rancor. Como enfurecer-se contra crianças? Van Brugh pedia-lhe desculpas envergonhadas; tinha sido tudo um erro; ignorava que o FBI não estava informado das peculiaridades de Newton. Tinha absoluta certeza de que Van Brugh não se importava mesmo. Newton assegurou-lhe, exausto, que fora tudo um acidente inevitável. Ninguém tinha culpa — fora um acidente.

Então, um dia, Van Brugh disse-lhe que tinha destruído a gravação. Sempre soubera, que ninguém acreditaria nela, de qualquer forma. Julgariam que se tratava de uma fraude, ou que Newton era louco; fosse o que fosse, menos a verdade.

Newton perguntou se ele acreditava.

— É claro que acredito — afirmou Van Brugh calmamente. — Seis pessoas, pelo menos, sabem dela e acreditam nela. O Presidente é uma dessas pessoas e o mesmo acontece com o Secretário de Estado. Mas destruímos todos os registros.

— Por quê?

— Bem — Van Brugh riu com frieza —, entre outras coisas não queremos entrar na história como o maior grupo de loucos que já governou este país.
Newton pousou o livro no qual andava a praticar Braille.

— Então posso recomeçar o meu trabalho? Em Kentucky?

— Possivelmente. Não sei. Vamos vigiá-lo durante o resto da sua vida. Mas se os republicanos ganharem eu serei substituído. Não sei.

Newton pegou outra vez o livro. Por um momento, interessara-se — era a primeira vez em semanas — pelo que acontecia à sua volta. Mas o interesse desaparecera tão depressa como surgira, sem deixar traços. Riu amavelmente.

— É interessante — comentou.

Quando abandonou o hospital, guiado por uma enfermeira, havia uma multidão esperando por ele na rua.

À luz resplandecente do Sol, podia distinguir silhuetas. Avançaram por uma passagem aberta por entre a gente, talvez graças a polícia, e a enfermeira levou-o até seu carro. Ouviu aplausos fracos.
Tropeçou duas vezes, mas não caiu. A enfermeira guiou-o com perícia; ficaria a seu lado meses, ou anos, todo o tempo que necessitasse. Chamava-se Shirley e, tanto quanto podia dizer, era gorda.
De súbito sentiu que lhe agarravam a mão com suavidade. Uma pessoa avantajada estava na sua frente.

— Que bom tê-lo de volta, Sr. Newton — era a voz de Famsworth.

— Obrigado, Oliver. — Sentiu-se muito cansado. — Temos vários assuntos a discutir.

— Sim. A televisão está filmando-o, sabe, Sr. Newton?

— Oh, não sabia. — Olhou em volta, tentando, sem êxito, descobrir a forma da câmera. — Onde?

— À sua direita — disse Famsworth.

— Vire-me na direção dela, por favor. Alguém pode querer fazer uma pergunta.
Uma voz, de um comentarista televisivo, falou junto ao seu cotovelo.

— Sr. Newton, Duane Whitely da CBS. Pode dizer como se sente por estar outra vez livre?

— Não — replicou Newton. — Ainda não.

O indivíduo não pareceu ficar admirado.

— Quais os seus planos para o futuro? Depois do que acabou de passar...

Newton acabara, finalmente, por descobrir a câmera, e enfrentava-a quase sem consciência alguma da sua audiência humana, tanto em Washington como em todo o país.

Pensava em outra audiência. Sorriu com ar débil. Para os cientistas antheanos? Para sua mulher?

— Eu estava, como sabem — declarou —, num projeto de exploração espacial. A minha empresa estava empenhada num projeto bastante especial, destinado a enviar uma nave para o sistema solar, medindo as radiações que, até agora, tomaram impossível viagens interplanetárias. — Fez uma pausa, para respirar, e percebeu que a cabeça e os ombros lhe doíam. Talvez fosse outra vez a gravidade, depois de tanto tempo passado na cama. — Durante a minha detenção, que não foi de forma alguma desagradável, tive oportunidade de pensar.

— Foi? — perguntou o homem preenchendo a pausa.

— Sim. — Sorriu gentilmente na direção da câmera, na direção do seu lar. — Concluí que o projeto era demasiado ambicioso. Vou abandoná-lo.

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