segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 13)



VI

Newton pousou o livro.

O médico devia aparecer dentro de poucos minutos, e não sentia vontade de ler.
Nas duas semanas da sua detenção pouco fizera além de ler. Isso quando não estava sendo interrogado ou examinado pelos especialistas — médicos, antropólogos, psiquiatras — ou ainda por homens enfiados em ternos conservadores que deviam ser funcionários do governo, embora nunca lhe dissessem quem eram, quando perguntava.

Tinha relido Spinoza, Hegel, Spengler, Keats, o Novo Testamento e, agora dedicava a atenção a algumas obras sobre linguística. Eles lhe traziam tudo o que pedia, com muita rapidez e cortesia.

Também tinha um leitor de cassetes, que raramente usava, uma filmoteca, um conjunto televisivo da World Enterprises, e um bar, mas não havia janelas para poder ver Washington. Haviam dito que estava perto da cidade, se bem que não especificassem a que distância se encontrava.

Via televisão à noite, em parte por uma espécie de nostalgia, às vezes por curiosidade. De vez em quando, mencionava-se o seu nome — porque era impossível um homem tão rico como ele estar preso sem um pouco de publicidade. Mas as referências eram sempre vagas, vinham de fontes oficiais cujo nome não era citado e empregavam palavras como ‘suspeita’. A ideia era a de que se tratava de um ‘estrangeiro não registado’, mas nenhuma fonte governamental esclarecera com clareza de onde ele era, ou de onde pensavam que seria.

Um comentarista televisivo, célebre pelo seu humor cáustico, dissera com ar petulante:
“Por aquilo que se diz em Washington, entende-se que Sr. Newton, agora sob vigilância e custódia, é um visitante ou da Mongólia ou do espaço.”

Ele sabia também, que aquelas transmissões estariam sendo vigiadas pelos seus superiores em Anthea e sentia-se relativamente divertido com a consternação daqueles, ao saberem da sua posição, e na sua curiosidade em descobrirem o que havia acontecido na verdade.

Bom, ele também ignorava o que estava realmente acontecendo.

Ao que parecia, o governo desconfiava dele, devido às informações que Brinnarde lhes devia ter fornecido durante o ano e meio em que fora seu secretário. E Brinnarde, que tinha sido o seu braço-direito no projeto, com certeza teria colocado alguns bons espiões em todas as áreas da organização, de forma que o governo devia ter nas mãos boa quantidade de pormenores acerca das suas atividades e do projeto em si. Mas havia coisas que tinha ocultado a Brinnarde, coisas que eram muito improváveis que ele soubesse. Mesmo assim, tomava-se impossível determinar as intenções dos outros.

Por vezes pensava no que aconteceria se contasse aos seus inquisidores:"Realmente sou do espaço exterior, e tenciono conquistar o planeta”. Devia dar origem a reações interessantes. Mas acreditar, dificilmente seria uma dessas reações.

As vezes pensava no que estaria acontecendo com a World Enterprises, naquela altura em que se encontrava absolutamente fora de comunicação com a empresa. Famsworth tomaria a frente dela? Newton não podia receber correspondência, nem telefonemas. Existia um telefone na sua sala de estar, mas nunca tocava, e estava proibido de fazer chamadas para fora. O aparelho azul-bebé estava sobre uma mesa de mogno. Tentara utilizá-lo várias vezes, mas uma voz gravada dizia: “Lamentamos, mas o uso deste telefone é restrito”.

A voz era agradável, feminina, artificial. Nunca explicara o porquê de ser restrito. De vez em quando, ao encontrar-se só ou um pouco embriagado — não bebia tanto como antes, porque fora aliviado da tensão —, pegava no auscultador só para ouvir a voz dizer: “Lamentamos, mas o uso deste telefone é restrito”.

A voz era muito suave; sugeria uma delicadeza infinita e um tipo vago de eletrônica.

O médico foi pontual, como sempre: o guarda deixou-o entrar as onze horas. Trazia a sua mala e vinha acompanhado por uma enfermeira, com uma cara impassível — o tipo de cara que parecia dizer: “Não me importo nada com o motivo por que vai morrer, sou eficiente no papel que vou desempenhar nisso”.

Tratava-se de uma loira e, pelos padrões humanos, era bonita. O médico chamava-se Martinez; era um fisiologista.

— Bom dia, doutor — disse Newton. — Em que posso ser-lhe útil?

O médico sorriu com um ar casual, da prática.


— Outro teste, Sr. Newton. Outro testezinho.

Falava com um leve sotaque espanhol. Newton quase gostava dele; era menos formal que a maior parte das pessoas com quem tivera de lidar.

— Julguei que já sabiam tudo que poderiam desejar — replicou Newton. — Já me tiraram radiografias, amostras de sangue e de linfa, já me registraram as ondas cerebrais, mediram e me tiraram amostras dos ossos, fígado e rins. É difícil supor que ainda possa haver mais para aprender sobre mim.

O médico abanou a cabeça e brindou Newton com um sorriso penetrante.

— Deus sabe como o achamos... interessante. Tem uma série de órgãos nunca vistos.

— Sou um monstro, doutor.





O médico riu-se outra vez; mas era um riso tenso.

— Não sei o que faríamos se tivesse uma apendicite, ou qualquer outra coisa. Mal sabemos onde procurar.
Newton sorriu-lhe.

— Não precisa se preocupar. Não tenho apêndice. Mas calculo que me operariam, de qualquer forma. Provavelmente, ficariam encantados por me abrirem e verem o que poderiam descobrir.

— Oh, não sei. Uma das primeiras coisas que aprendemos a cerca de você, depois de lhe contarmos os dedos, é claro, foi que não tinha apêndice. Na realidade há muitas coisas que lhe faltam. Temos utilizado equipamento bastante avançado. — Depois voltou-se para a enfermeira. — Pode dar o Nembucaine ao Sr. Newton, Miss Griggs?
Newton estremeceu.

— Doutor — declarou —, já lhe disse que os anestésicos não têm qualquer efeito no meu sistema nervoso, exceto provocarem dor de cabeça. Se vai fazer qualquer coisa que cause dor não há motivo para o tomar ainda mais doloroso.

A enfermeira, ignorando-o totalmente, começou a preparar a seringa hipodérmica. Martinez dedicou-lhe o sorriso paternalista reservado, como era evidente, para os esforços habilidosos dos pacientes quando tentavam entender os ritos da medicina.

— Talvez não esteja consciente de como podemos machucá-lo, se não usássemos anestésicos.
Newton começava a ficar exasperado. A sua sensação de ser um ser humano inteligente, maltratado por macacos curiosos e pomposos, tinha se tornado intensa durante as últimas semanas. Só que, é claro, quem estava na jaula era ele, enquanto os macacos entravam e saíam, tentando parecer sábios.

— Doutor — disse ele —, não viu os resultados dos testes de inteligência?

O médico abrira a pasta, em cima do aparador, e tirava algumas folhas. Cada folha tinha “CONFIDENCIAL” impresso.

— Testes de inteligência não fazem parte da minha especialidade, Sr. Newton. E, como deve saber, talvez, todas estas informações sejam altamente confidenciais.

— Sim. Mas o senhor sabe.

O médico pigarreou. Estava preenchendo um dos formulários. Data, tipo de teste.

— Bom, tem havido alguns boatos.

Newton estava novamente furioso.

— Imagino que sim. Também imagino de que percebe que a minha inteligência é cerca do dobro da sua. Pode acreditar em mim quando digo que sei que as anestesias locais surtem, ou não, efeito.

— Temos estudado exaustivamente a estrutura do seu sistema nervoso. Parece não haver motivo para
que o Nembucaine não faça efeito... como faz em todo mundo.

— Talvez não saiba tanto sobre sistemas nervosos como julga saber.

— Pode ser. — O médico acabara de preencher o formulário e pousara o lápis, enquanto pegava num peso de papéis. Um peso de papéis desnecessário, visto não haver janelas, nem vento. — Pode ser. Mas, repito, não é a minha especialidade.

Newton olhou de relance para a enfermeira, que já tinha a agulha pronta. Parecia esforçar-se em fingir que não ouvia a conversa. Pensou como fariam para que aquela gente se calasse sobre o seu curioso prisioneiro, mantendo afastados dos repórteres. Talvez o governo condenasse ao isolamento todos os que trabalhavam com ele. Mas seria difícil. Achava quase divertido que tivesse de ser o motivo de algumas especulações apaixonadas entre as poucas pessoas que estavam a par das suas ‘peculiaridades’.

— Qual é a sua especialidade, doutor?

O médico encolheu os ombros.

— Principalmente ossos e músculos.

— Isso parece agradável.

A enfermeira veio com a seringa e Newton, resignando-se, começou a arregaçar a manga da camisa.

— Poderia tirar a camisa — sugeriu o médico. — Vamos trabalhar nas suas costas desta vez.

Não protestou e começou a desabotoar a camisa. Quando estava quase, ouviu a enfermeira suspender a respiração, discretamente. Ergueu os olhos. Era óbvio que não lhe tinham dito grande coisa, visto que tentava, com todo o cuidado, não olhar para o seu peito, sem pelos e sem mamilos.

Eles tinham, claro, retirado os elementos do seu disfarce. Pensou qual seria a reação da enfermeira quando se aproximasse o suficiente para reparar nas suas pupilas.

Depois de tirar a camisa, a enfermeira injetou-lhe os músculos de ambos os lados da espinha. Tentou não lhe fazer doer, mas foi bastante doloroso. A seguir, perguntou:

— Agora, o que vai fazer?

O médico escreveu a hora da injeção no seu formulário. Depois disse:

— Primeiro, vou esperar vinte minutos, enquanto o Nembucaine... faz efeito. Depois, vou tirar
amostras da sua medula espinhal.

Newton não disse palavra. Mas acabou por proferir:

— Ainda não lhe disseram? Meus ossos não têm medula. São ocos.

O médico pestanejou.

— Deve haver medula. Os corpúsculos do sangue...

Newton não estava habituado a interromper as pessoas, mas, daquela vez, interrompeu.

— Não quero saber nada de corpúsculos vermelhos, nem de medula. Provavelmente, sei tanto de fisiologia quanto o senhor. Mas não existe medula nos meus ossos. E não posso dizer-lhe que vou adorar sujeitar-me a qualquer sondagem penosa da sua parte, de forma que o senhor, ou os seus superiores, sejam lá quem forem, possam satisfazer a curiosidade a cerca das minhas... singularidades. Já lhe expliquei uma dúzia de vezes, que sou um mutante, um monstro. Não pode acreditar na minha palavra?

— Desculpe — disse o médico parecendo lamentar aquilo tudo.

Newton olhou para além dele, por instantes, observando uma má reprodução da ‘Mulher de Aries’, de Van Gogh. O que teria o governo dos Estados Unidos a ver com uma mulher de Aries?

— Um dia gostaria de conhecer seus superiores — declarou. — E, enquanto espero que o seu inútil Nembucaine faça efeito, gostaria de experimentar um anestésico que prefiro.

A cara do médico estava pálida.

— Gim — disse Newton. — Gim com água. Gostaria de me acompanhar?
O médico sorriu, automaticamente. Todos os médicos sorriem perante as piadas de seus pacientes.

— Desculpe — disse. — Estou a serviço.

— Tenho a certeza de que o senhor é um clínico muito caro na sua... especialidade, com um bar imitação de mogno no gabinete. Juro que não lhe darei álcool suficiente para fazer sua mão tremer, enquanto sonda a minha espinha.

— Não tenho gabinete — replicou o outro. — Trabalho num laboratório. Geralmente, não bebemos quando estamos trabalhando.

— Não, creio que não. Regulamentos. — Depois se levantou e sorriu-lhe do alto da sua estrutura. — Vou beber sozinho.

Era agradável ser mais alto do que eles. Foi até ao bar no canto, e encheu um copo de gim. Decidiu pôr a água a parte, visto que, enquanto ele falava, a enfermeira estivera dispondo uma série de instrumentos num lençol que estendera sobre a mesa. Havia várias agulhas, um bisturi pequeno e alguns tipos de grampos, tudo de aço inoxidável. Tinham um brilho lindo...

Depois do médico e a enfermeira terem partido, ficou de bruços na cama, durante mais de uma hora. Não vestira novamente a camisa e tinha as costas nuas, excetuando as ligaduras. Sentia um pouco de frio — uma coisa incomum —, mas não fez qualquer esforço para se cobrir. A dor fora muito intensa durante vários minutos e, embora já tivesse cessado, exaurira-o, bem como o medo. Sempre o assustara pensar de antemão na dor, mesmo quando criança.


Poderiam saber as dores que estavam provocando nele? Estariam torturando-o por qualquer processo mal-intencionado de lavagem cerebral, na esperança que fraquejasse mentalmente? O pensamento era particularmente assustador, porque, se fosse assim, tinham apenas começado. Mas era muito pouco provável. Apesar da desculpa da perpétua guerra-fria, e apesar da tirania muito genuína que se tolerava naqueles tempos ‘democráticos’, seria demasiado difícil continuarem. Era ano de eleições.

Os discursos de campanhas, protestando contra a arbitrariedade do partido atualmente no poder já tinham iniciado. A expressão ‘encobrir’ já fora usada muitas vezes.

A única razão lógica para o submeterem a testes penosos devia ser um tipo qualquer de curiosidade burocrática. Provavelmente, a justificação seria o desejo de provarem, de maneira conclusiva, que ele não era humano, provarem que, na verdade, era o que deviam ter suspeitado que era — suspeitado, mas sem o conseguirem admitir devido ao absurdo da ideia.

Se era assim que pensavam, estavam a cometer um erro óbvio desde o início. Porque, fossem quais fossem os atributos não humanos que descobrissem, seria sempre mais plausível que constituísse um desvio físico humano, uma mutação, um espécime aleijão, do que alguém de outro planeta.
Mas pareciam não se aperceber da dificuldade. O que poderiam esperar descobrir em pormenor, que já não soubessem na generalidade? E que provariam? E, para terminar, se fosse provado para além de qualquer dúvida, o que poderiam fazer?

Mas não preocupava com o que descobrissem sobre ele, nem sequer se preocupava com o que acontecesse aquele plano, concebido vinte anos atrás, em outra parte do sistema solar. Supunha, sem aprofundar muito a questão, que já estava tudo acabado, de qualquer forma, e sentia-se mais do que aliviado.

O que o aborrecia era o que iriam fazer com aquelas experiências e testes e perguntas infernais e queria que o deixassem em paz.

Estar preso não constituía problema — em muitos aspectos, era uma forma mais aproximada da sua vida nativa e mais satisfatória do que a liberdade.




VII

O FBI era bastante delicado e amável, mas, dois dias depois de perguntas sem sentido, Bryce sentia-se muito cansado, incapaz de se zangar perante o desprezo que sentia por trás da cortesia.
Se não o tivessem libertado no terceiro dia, achava que teria ficado muito mal.
Contudo, pareciam considerá-lo quase insignificante.

Na terceira manhã o homem apareceu, como de costume, na YMCA para levá-lo a quatro quarteirões de distância, onde se encontrava o prédio do FBI de Cincinnati. A YMCA tinha sido um fator para o seu cansaço. Se tivesse atribuído ao FBI imaginação suficiente, poderia considerar sua estada na YMCA como uma tentativa propositada de o deprimir com a jovialidade esfarrapada que enchia as salas públicas, juntamente com a sombria mobília de carvalho e os incontáveis panfletos sobre o cristianismo; que ninguém lia.

Daquela vez o homem levou-o a uma sala desconhecida, parecida com o consultório de um dentista, onde um técnico lhe espetou agulhas hipodérmicas, lhe mediu as batidas cardíacas e a pressão arterial e até lhe tirou radiografias do crânio. Aquelas coisas eram feitas, como explicou alguém, devido a um ‘procedimento de identificação rotineiro’.

Bryce não conseguiu entender o que teriam as suas batidas cardíacas a ver com a identificação; mas sabia que era melhor não fazer perguntas. Então, pararam sem mais nem menos, e o homem lhe disse que, ao que dizia respeito ao FBI, estava livre.

Bryce olhou para o relógio. Eram dez e meia da manhã.

Quando abandonou a sala e desceu o corredor em direção da entrada principal, teve outro choque ao se deparar com Betty Jo, bem à sua frente, que sorriu, mas nada disse.
Apesar da fadiga sentiu uma excitação que lhe vinha do estômago, uma espécie de deleite, ao ver aquela pessoa de cara franca e roliça, naquele corredor absurdo, carregado de severidade.
Fora do prédio sentou-se nos degraus, ao sol frio de Dezembro. Ela se sentou, pesada e envergonhadamente, a seu lado. Ao ar frio o seu perfume parecia quente, forte e doce.

Um jovem com uma pasta de executivo, subiu as escadas correndo, e fingiu não os ver ali sentados.
Bryce voltou-se para Betty Jo e ficou admirado ao reparar que tinha os olhos inchados, como se tivesse acabado de chorar.

— Onde eles a prenderam?

— Na YWCA. — Estremeceu.

Era lógico que a teriam  mantido lá, mas não pensara no assunto.

— Eu tenho estado na outra. Como a trataram? O FBI, quero dizer.
Era estúpido usar todas aquelas iniciais... YMCA, FBI.

— Acho que me trataram bem. — Sacudiu a cabeça e depois umedeceu os lábios. Bryce apreciou o gesto, ela tinha uns lábios cheios, sem batom, então vermelhos por causa do frio. — Fizeram um monte de perguntas sobre Tommy.

De certo modo, a referência a Newton incomodou-o. Naquele momento não queria falar do antheano.
Betty Jo pareceu pressentir o seu embaraço — ou partilhá-lo. Após uma pausa, perguntou:

— Quer ir almoçar?

— E uma boa ideia.

Levantou-se e pôs o sobretudo nas costas. Depois curvou-se, para ajuda-la a erguer-se, tomando-lhe ambas as mãos nas suas.

Por sorte encontraram um restaurante agradável, tranquilo, e comeram bem. Era comida natural, sem sintéticos, e havia até café de verdade, embora custasse trinta e cinco centavos a caneca.
Pouco se falaram durante o almoço e não tocaram no nome de Newton.





Ele perguntou-lhe quais eram os seus planos e descobriu que ela não tinha nenhuns.
Quando acabaram de comer, ele perguntou: — O que fazemos, agora?
Betty Jo já parecia melhor, mais sob controle e alegre.

— Por que não vamos ao Jardim Zoológico? 

— Por que não? -— Parecia boa ideia. — Podemos tomar um táxi.

Talvez por ainda serem férias de Natal, havia pouca gente no jardim. Os animais estavam todos recolhidos e ambos vaguearam de jaula para jaula. Ele gostava dos felinos grandes, insolentes, em especial das panteras, e ela apreciava os pássaros, os de plumagem brilhante. Bryce ficou contente que ela não gostasse dos macacos, ele os achava umas criaturinhas obscenas e teria ficado desanimado se ela, como tantas mulheres, os achasse divertidos. Nunca via nada de divertido nos macacos.

Também ficou satisfeito por descobrir que podia comprar cerveja à entrada do aquário. Levaram as cervejas para dentro, embora uma tabuleta o proibisse em absoluto, e sentaram-se à luz difusa, em frente de um grande tanque com uma enorme lampreia. A lampreia era uma criatura bonita, vigorosa, de aspecto plácido, com bigodes de mandarim e uma pele cinzenta, paquidérmica. Olhou-os lúgubre, enquanto bebiam as cervejas.

Depois de estarem sentados, em silêncio, durante um bocado, observando a lampreia, Betty Jo disse:

— O que acha que vão fazer ao Tommy?

Bryce percebeu que tinha estado à espera que ela trouxesse o assunto à tona.

— Não sei — respondeu. — Não creio que o magoem, ou coisa do gênero.
Betty Jo bebeu um golinho.

— Disseram que ele não era... não era um americano, Dr.Bryce.

Tencionava dizer-lhe para chama-lo de Nathan, mas não lhe pareceu correto fazê-lo, justamente naquela altura.

— Suponho que eles têm razão — respondeu, perguntando-se como eles poderiam deportá-lo, se tivessem descoberto.

— Acha que vão prendê-lo por muito tempo?

Bryce lembrou-se daquela radiografia do esqueleto de Newton e da meticulosidade do FBI ao submetê-lo a testes no consultório do dentista, e compreendeu para que houvessem feito os testes com ele.

Queriam ter a certeza de que não era, também, um antheano.

— Sim — replicou. — Acho que provavelmente, vão mantê-lo lá por muito tempo. O máximo que puderem.

Não recebeu resposta e olhou-a. Segurava o recipiente no colo, com ambas as mãos, e fitava-o como se contemplasse o interior de um poço. A luz uniforme, difusa, do tanque da lampreia não lhe sombreava a face, e a simplicidade das suas feições, sem maquilhagem, bem como a sua postura calma, no banco, faziam com que parecesse uma estátua bonita e consistente.

Olhou-a, silenciosamente, durante o que lhe pareceu um longo tempo. Então, Betty Jo levantou os olhos para ele e tornou-se óbvio porque havia chorado antes.

— Tem saudades dele, acho. — E acabou a cerveja.

A expressão dela não mudou. A voz era suave.

— Não há dúvida de que tenho. Vamos ver o resto dos peixes.

Andaram visitando os outros animais, mas nenhum deles pareceu tão belo como a velha lampreia.
Quando foram ao ponto de táxi para voltarem à cidade, ele compreendeu que não tinha uma indicação para morar, que não existia qualquer lugar para onde ir. Olhou para Betty Jo, de pé, a seu lado, à luz do Sol.

— Onde vai ficar? — perguntou.

— Não sei — respondeu. — Não tenho ninguém em Cincinatti.

— Podia voltar para a sua família em... onde mesmo?

— Em Irvine. Não é muito longe. Mas não quero ir. Nunca nos demos bem.
Bryce disse, sem pensar: — Quer ficar comigo? Talvez num hotel? E depois, se quiser, podíamos procurar um apartamento.

Ela pareceu, momentaneamente, surpresa e Bryce temeu que ela não gostasse da proposta. Mas deu um passo, aproximando-se dele, e disse:
— Meu Deus! Sim. Acho que devíamos ficar juntos, Dr. Bryce!

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