segunda-feira, 22 de agosto de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 12)



No avião quase não conversaram. Bryce tentou ler uns panfletos, sobre pesquisa no campo metalúrgico, mas toda hora dava consigo a pensar tolices. De vez em quando olhava através da estreita sala para o local onde Newton estava sentado, sereno, com um copo de água numa das mãos e um livro na outra.

O livro era ‘The Collected Poetry of Wallace Stevens’. A cara de Newton mostrava-se plácida; parecia absorto. As paredes da cabine de passageiros tinham sido decoradas com grandes fotografias coloridas de aves aquáticas, grous, flamingos, garças, patos. Da outra vez que estivera a bordo do avião, na primeira viagem para o local do projeto, Bryce admirara os quadros devido ao bom gosto de quem os colocara ali; mas naquele momento incomodavam-no, pareciam quase sinistros. Newton beberricava a sua água, virava folhas, sorria uma ou duas vezes para Bryce, mas nada dizia.

Através de uma janelinha, por detrás de Newton, Bryce via um retângulo de céu cinzento-sujo.

Levaram pouco menos de uma hora para chegar a Chicago e mais dez minutos para aterrissar. Saíram entre a confusão de caminhões cinzentos, indistintos, multidões de funcionários e a neve vidrada, cheia de sulcos, que já tornara a congelar e estava suja. O vento golpeou lhes a cara como uma bofetada de agulhas. Ele enfiou o queixo dentro do lenço do pescoço, virou para cima a gola do sobretudo, enterrou o chapéu. Enquanto o fazia, olhou para Newton. Até este parecia afetado pelo vento frio, meteu as mãos nos bolsos e estremeceu. Bryce usava um sobretudo grosso; Newton tinha apenas um casaco de lã, em tweed, e calças também de lã. Era estranho vê-lo assim vestido.

Gostaria de saber como ficaria com um chapéu na cabeça, pensou Bryce. Talvez um marciano devesse usar um chapéu-coco.

Um caminhão de nariz empinado rebocava o avião da pista. O gracioso e pequeno jato pareceu seguir o caminhão em silêncio, como que amargurado pela ignomínia de estar no chão.

Alguém gritou ‘Feliz Natal’ a qualquer outra pessoa, e Bryce apercebeu-se de que era Natal.
Newton passou-lhe à frente, preocupado, e Bryce começou a segui-lo, andando devagar e com cuidado sobre as elevações e as crateras de gelo, que pareciam pedra cinzenta suja debaixo dos seus pés, como a superfície lunar.

O edifício do terminal era quente, suado, barulhento, abarrotado.

No centro da sala de espera via-se uma árvore de Natal gigantesca, giratória, feita de plástico, coberta de neve de plástico, de pingentes de gelo em plástico e de luzes intermitentes. ‘White Christmas’ cantado por um coro invisível, com sinos e órgãos elétricos, erguia- se, de vez em quando, acima do rugido da multidão:

“I'm dream... ing of a white Chrisss... mass...”

Aquela linda e velha canção natalícia...

De algum lugar saia um cheiro de pinheiros, óleo de pinho. Mulheres embrulhadas em peles, reuniam-se em grupos que guinchavam; homens caminhavam porta afora, com o ar de quem tem um objetivo, transportando pastas, embrulhos, câmeras. Um bêbado estava afundado numa poltrona, com a cara cheia de manchas. Uma criança, perto de Bryce, disse para outra criança,’ É você!’, Bryce não conseguiu captar a resposta:
“May your day be merry and bright, and may all your Chrisss... mass... esss be whiiite!”

— O nosso carro deve estar na frente do prédio — disse Newton.

Algo na sua voz sugeria dor. Bryce concordou, com um aceno de cabeça e atravessaram silenciosamente o mar de gente e saíram para o ar frio. Foi um alívio.
O carro esperava por eles, com um motorista fardado.
Quando já estavam instalados e acomodados, Bryce perguntou:

— O que acha de Chicago?

— Quase me esqueci de tanta gente. — E, depois, com um sorriso forçado, citou Dante: — “Não julguei que a morte tivesse ceifado tantos.”

Bryce pensou:

Se tu és Dante, entre os condenados — e, se calhar é mesmo — então eu devo ser Virgílio.
Depois do almoço no seu quarto de hotel, tomaram o elevador até à antecâmara onde os delegados circulavam já, esforçando-se para parecerem felizes, importantes e à vontade. A antecâmara estava cheia de mobiliário de alumínio e mogno, em estilo japonês moderno, que era o substituto corrente da elegância. Passaram várias horas a conversar com pessoas a quem Bryce conhecia relativamente — não gostando da maioria delas — e descobriram três que pareciam interessadas em ir trabalhar para Newton. Marcaram entrevistas. O próprio Newton pouco falou. Baixava a cabeça e sorria, quando era apresentado e fazia um comentário, uma vez ou outra. Atraiu certa atenção — tendo circulado a informação que o identificou —, mas pareceu reparar nisso. Bryce ficou com uma forte impressão de que o outro se encontrava sob uma tensão considerável, embora a sua expressão permanecesse tão impávida como sempre.

Foram convidados para um banquete comemorativo numa das suítes, uma festa suscetível de ser descontada nos impostos e oferecida por uma firma de engenheiros. Newton aceitou pelos dois. O homem, com cara de doninha, que os convidara pareceu deliciado por terem aceito e disse, levantando os olhos para Newton, que era bem mais alto que ele:

— Será uma verdadeira honra, Sr. Newton. Uma verdadeira honra ter oportunidade de conversar consigo.

— Muito obrigado — respondeu Newton, sorrindo como sempre sorria.

Depois, quando o homem se afastou, comentou para Bryce:

— Agora quero dar um passeio. Quer vir comigo?

Bryce respondeu, aliviado: — Vou buscar o sobretudo.

A caminho do elevador passaram por um grupo de três homens, todos com ternos de três peças, falando alto e com ar importante. Um deles dizia:

—... não somente em Washington. Ora, vocês não podem dizer-me que não haverá futuro na guerra química. E uma especialidade que precisa de novas cabeças.

Mesmo sendo Natal havia lojas abertas. As ruas enxameadas de gente. A maior parte das pessoas olhava fixamente em frente, com feições sérias. Newton parecia nervoso. Parecia reagir à presença de pessoas como se fosse uma onda, ou um campo de energia palpável, semelhante ao criado por mil eletromagnetos, prestes a engoli-lo. Continuar a movimentar-se parecia exigir-lhe esforço.
Entraram em diversas lojas e foram oprimidos por brilhantes luzes, que pendiam sobre as suas cabeças, e por um calor pegajoso.

— Acho que devia comprar um presente para Betty Jo — disse Newton.
Finalmente, numa joalharia, adquiriu um delicado relógio, feito de mármore branco e ouro. Foi Bryce quem o levou para o hotel, numa caixa ostentosamente embrulhada.

— Acha que ela vai gostar? — perguntou Newton.

Bryce encolheu os ombros.

— É claro que vai.

Estava começando a nevar...

Várias apresentações ocorreram durante a tarde e a noite, mas Newton não falou delas e Bryce sentiu-se aliviado por não ter de ir a nenhuma. Nunca gostara daquilo — discussões sobre ‘desafios’ e ‘conceitos práticos’. Passaram a tarde a entrevistar os três homens que haviam mostrado interesse em trabalhar para as World Enterprises. Dois aceitaram e começariam na primavera — como era lógico, considerando os ordenados que Newton estava pagando. Um deles trabalharia em elementos arrefecedores para os motores do veículo; o outro, um homem novo, brilhante e afável, ficaria sob as ordens de Bryce. Era especialista em corrosão. Newton pareceu bastante agradado por contratar os dois, mas, também era evidente que não se importava com isso. Durante as entrevistas manteve-se distraído, vago, e Bryce foi obrigado a conduzir a maior parte da conversação. Quando tudo acabou, parecia que tinha tirado um peso de cima dos ombros de Newton. Mas era muito difícil dizer, com precisão, o que ele sentia a cerca do que quer que fosse. Seria curioso saber o que ia naquela mente alienígena, ocultado pelo sorriso automático — aquele sorriso leve, prudente, voluntarioso.

A festa decorria no terraço. Passaram de um curto corredor para uma sala ampla, com tapete azul, cheia de gente falando baixinho; homens, na sua maioria. Uma das paredes da sala era totalmente feita de vidro, e as luzes da cidade espelhavam-se na sua superfície, como se estivessem ali pintadas, numa espécie qualquer de complicado diagrama molecular. A mobília era toda Luís XV, o que agradou a Bryce. Os quadros eram bons. Uma ‘fuga’ barroca, suave, mas nítida, vinha de um alto-falante escondido; Bryce não conhecia a peça, mas gostou dela. Bach? Vivaldi? Sentiu-se mais disposto à festa pelo prazer de estar naquele ambiente. Mas havia algo de incongruente na parede de vidro, com Chicago a cintilar.

Um homem destacou-se de um grupo e veio cumprimentá- los, sorrindo sedutoramente. Com um sobressalto, Bryce percebeu que era o homem da guerra química, que estivera na antecâmara. Vestia um terno preto, feito por um excelente alfaiate.

— Bem-vindos ao nosso refúgio nos subúrbios — saudou estendendo a mão. — Sou Fred Benedict. O bar é ali.

Bryce apertou-lhe a mão, de certo modo aborrecido pelo aperto calculadamente firme e apresentou-se, bem como a Newton. Era evidente que Bryce estava impressionado.

— Thomas Newton! — exclamou. — Meu Deus, tinha esperanças que aparecesse. Sabe que tem uma certa reputação de... — pareceu embaraçado, por momentos — de eremita. — Riu-se. Thomas Newton baixou os olhos para ele, com o mesmo sorriso plácido. Benedict prosseguiu: — Thomas J. Newton... sabe que é difícil acreditar que você existe? Minha equipe de trabalho foi processada por você sete vezes, ou pela World, isto é, e a única imagem mental que conseguia fazer de você, era a de um computador.

— Talvez eu seja uma máquina — respondeu Newton. E perguntou: — Qual é a sua empresa, Sr. Benedict?

Benedict olhou-o por um momento, como se receasse que o outro estivesse fazendo-o de bobo. O que devia estar, pensou Bryce.

— Trabalho para a ‘Futures Unlimited’. Na maior parte é guerra química, embora façamos alguma coisa em plástico — contentores e coisas do gênero. — Curvou-se ligeiramente, numa tentativa de se mostrar engraçado. — Somos os seus parasitas.

Newton disse: — Obrigado. — E deu um passo para a direção do bar. — Muito agradável aqui.

— Também achamos. E tudo dedutível nos impostos. — Como Newton começou a afastar-se, acrescentou: — Deixe-me ir buscar suas bebidas, Sr. Newton. Gostaria que conhecesse alguns dos nossos hóspedes.

Parecia não saber muito bem o que fazer àquele homem alto e peculiar, mas tinha receio de o deixar ir.

— Não se incomode, Sr. Benedict. Conversamos em breve.

Benedict não pareceu satisfeito, mas não protestou.

Entrando na sala do bar, Bryce comentou:

— Não sabia que era tão famoso. Quando tentei procurá-lo há um ano, ninguém tinha sequer ouvido falar de você.

— Não se pode manter um segredo eternamente — comentou Newton, dessa vez sem sorrir.

A sala era menor que a outra, mas possuía a mesma elegância. Sobre o bar polido pendia  ‘Déjeuner sur l’herbe’, de Manet. O barman, de cabelos brancos, era idoso e ainda mais distinto que os cientistas e homens de negócios da outra sala. Ao sentar-se no bar, Bryce tomou consciência do ar comum do seu terno cinzento, comprado numa grande loja de departamentos quatro anos antes. A camisa também estava roçada no colarinho e tinha mangas compridas demais.
Pediu um Martini e Newton pediu água simples, sem gelo.
Enquanto o barman tratava de atendê-los, Bryce examinou ao redor e disse:

— Sabe, às vezes, penso que devia ter arranjado um emprego numa firma como a deles, quando obtive o meu doutorado. — Riu-se secamente. — Podia estar ganhando uns oitenta mil por ano e vivendo assim.

Fez um gesto com a mão na direção da sala, deixando os olhos pousarem por instantes numa mulher de meia-idade, bem vestida, com um corpo conservado graças a cirurgias bem aplicadas, e uma cara que sugeria dinheiro e prazer. Sombra verde nos olhos e uma boca ideal para o sexo.

— Podia ter inventado um tipo novo de plástico para bonecas gorduchas de bochechas rosadas, ou lubrificante para motores...

— Ou gás asfixiante?

Newton já tinha a água e estava abrindo a caixinha de prata e tirando um comprimido.

— Por que não? — Bryce pegou no Martini com cuidado. — Alguém tem de fazer gás asfixiante. — Bebeu um gole. A bebida era tão seca que lhe queimou a garganta e a língua, elevando-lhe a voz uma oitava inteira. — Não dizem que precisamos de coisas como gás asfixiante para evitar a guerra? É comprovado.

— É? Não trabalhou em algo ligado à bomba de hidrogênio... antes de dar aulas?

— Sim. Trabalhei. Como sabe?

Newton sorriu-lhe — não o sorriso estereotipado, mas um verdadeiro sorriso, divertido.

— Mandei investigá-lo.

Ele bebeu um gole maior.

— Para quê? Por causa da minha lealdade?

— ... por curiosidade. — Fez uma pausa e indagou: — Por que trabalhou na bomba?

Bryce pensou um bocado. Depois riu da sua situação: utilizar como confessor um marciano, num bar. Mas talvez fosse adequado.

— Primeiro eu não sabia que ia ser uma bomba. E naquela altura eu acreditava na ciência pura. Atingir as estrelas. Os segredos do átomo. A nossa única esperança num mundo caótico.
Acabou o Martini.

— E já não acredita nessas coisas?

— Não.

A música da outra sala mudou para um madrigal que ele reconheceu vagamente. Fluía com delicadeza, de uma maneira intrincada, com a falsa implicação de ingenuidade que a velha música polifónica parecia ter para si. Ou seria falso? Não haveria artes ingênuas e artes sofisticadas? E também artes corruptas? E não sucederia o mesmo às ciências? Poderia a química ser mais corrupta que a botânica? Mas não era assim. Eram as utilizações, os objetivos que...

— Creio que eu também não — declarou Newton.

— Acho que vou tomar outro Martini — disse Bryce.

Um belo, inegavelmente corrupto Martini. Na sua mente, acudiram-lhe as palavras. “Ó vós de pouca fé.”

 Riu-se e olhou para Newton. Estava sentado direito, ereto, bebendo água.
O segundo Martini já não lhe queimou tanto a garganta. Pediu um terceiro. Afinal de contas o homem da guerra química é quem pagava. Ou era o contribuinte? Dependia do ponto de vista. Encolheu os ombros. Toda a gente pagaria por aquilo tudo, de qualquer forma — Massachusetts e Marte; todos, em todo lado, havia de pagar.

— Vamos voltar para a outra sala — disse, pegando no novo Martini e bebendo-o com cautela, para não entornar. A manga da camisa, reparou, saía toda para fora do casaco, com o punho sujo.
Quando passavam pela porta, a caminho da sala maior, foram bloqueados por um homem baixo, gorducho,  falando agitado, produto de uma ligeira embriaguez.

Bryce afastou-se depressa, fazendo votos para que o homem não o reconhecesse.
Era Walter Canutti, da Pendley University, em Pendley, Iowa.

— Bryce! — berrou Canutti. — ...Então, não é que é o Nathan Bryce?

— Olá, professor Canutti.

Mudou o Martini, desajeitadamente, para a mão esquerda, e cumprimentou o outro. A cara de Canutti estava encarnada; era óbvio que se encontrava bastante bêbado. Usava um casaco de seda verde e uma camisa castanho-dourada, com folhinhas discretas no colarinho. A vestimenta era demasiado juvenil para ele. Parecia um manequim da capa de uma revista de modas masculina, se não fosse a cara vermelha e mole. Bryce tentou dominar a agitação da própria voz.

— Prazer em vê-lo de novo!

Canutti olhava para Newton com ar inquiridor e não havia nada a fazer a não ser apresentá-los.
Bryce tropeçou nos nomes, furioso consigo mesmo por ser tão desajeitado.
Canutti estava, se é que estava alguma coisa, mais impressionado com o nome de Newton do que o outro homem, Benedict, tinha estado. Desatou a dar sacudidelas com ambas as mãos de Newton, enquanto dizia:

— Sim. Sim, claro. World Enterprises! A coisa mais importante desde a General Dynamics foi fundada!

Usava aquilo como se esperasse um contrato de pesquisa para a Pendley. Sempre horrorizara Bryce ver a bajulação dos professores quando se tratava de negócios — para com os mesmos homens que ridicularizavam pelas costas — quando um contrato de pesquisa podia estar em jogo.
Newton murmurou qualquer coisa e sorriu e, Canutti, por fim, lá lhe soltou as mãos, fez uma tentativa para sorrir, com ar juvenil, e disse:

— Bom — E então, atirando um braço por cima de um ombro de Bryce: — Bom, já passou muita água por debaixo da ponte, Nate! — Bryce estremeceu de apreensão, no seu íntimo. Canutti olhou-os a ambos, a Bryce e a Newton, e indagou: — Então está trabalhando para a World Entreprises, Nate?
Ele não respondeu, sabendo o que aconteceria a seguir. Então Newton disse:

— O Dr. Bryce está conosco há mais de um ano.

— É... — a cara de Canutti estava encarnada, acima do colarinho . — Trabalhando para a World Entreprises!

Um riso espalhou-se pelas bochechas, e Bryce, bebendo o Martini de um só gole, achou que poderia facilmente acertar um soco naquele rosto. O sorriso tornou-se uma risada, um arroto, e depois Canutti virou-se para Newton e disse:

— Isso não tem preço. Eu tenho que te dizer isso, Sr. Newton.

Riu novamente.

— Tenho certeza de que Nate não vai se importar, porque está tudo acabado agora. Mas você sabe. Sr. Newton, quando Nate deixou a Pendley ele estava preocupado sobre algumas das mesmas coisas que ele provavelmente está ajudando você a fazer.

— Sério? — Disse Newton.

— Mas o que importa é... o velho Nate aqui pensou que você estava produzindo todas as coisas por algum tipo de vudu. Certo, Nate?

— É isso mesmo — disse Bryce. — Vudu.

Canutti riu: — Nate é um dos melhores homens no seu campo, como eu tenho certeza que você sabe Sr. Newton. Mas talvez estivesse perturbado. Ele pensava que seus filmes coloridos tinham sido inventados em Marte.•.

— Oh? — Disse Newton.

— Marte ou em algum lugar. ‘Extraterrestre’ era o que ele dizia. — Canutti apertou o ombro de Bryce, para mostrar que não quis ofendê-lo — Eu aposto que quando viu você, esperava alguém com três cabeças. Ou tentáculos.

Newton sorriu cordialmente.

— Isso é muito divertido.  — Então olhou para Bryce. — Me desculpe se eu desapontei.

 Bryce desviou o olhar.

— Não desapontou.

Suas mãos estavam tremendo e ele colocou o copo sobre uma mesa, forçou as mãos nos bolsos. Canutti estava falando de novo, desta vez sobre algum artigo que tinha lido, algo sobre a W.E. e suas contribuições para o produto nacional bruto.

De repente Bryce interrompeu-o: — Desculpe-me. Acho que vou pegar outra bebida.
Ele se virou e saiu rapidamente de volta para o bar, sem olhar para nenhum dos outros dois. 
Mas quando recebeu a bebida já não lhe apetecia. O bar tornara-se opressivo; o barman já não lhe parecia distinto, mas apenas um lacaio pretensioso. A música da outra sala era nervosa e arrepiante. Havia mais gente no bar, e vozes demasiado barulhentas. Olhou à sua volta, como se estivesse desesperado: os homens eram todos pálidos, afetados; as mulheres assemelhavam-se a harpias.
Obrigou-se a sair do bar, deixando a bebida intacta, e caminhou deliberadamente até à sala principal.
Newton esperava-o sozinho.

Bryce olhou-o nos olhos, tentando não fraquejar.

— Onde se meteu o Canutti? — perguntou.

— Eu disse que nós íamos embora. — Encolheu os ombros, num gesto implausível que Bryce já notara antes. — Um homem repulsivo, não? — Completou com uma expressão indefinível.

— Vamos embora daqui.

Saíram em silêncio, e caminharam lado a lado, sem uma palavra, descendo o corredor longo, espessamente atapetado, até ao seu quarto. Bryce abriu a porta com a chave, e depois de ter fechado atrás deles, disse, já com calma e firme:

— Bom, e é verdade?

Newton sentou-se na beira da cama, sorriu fatigado e respondeu:

— Claro que sou.

Não havia o que dizer. Bryce deu consigo a murmurar:

— Jesus Cristo! Jesus Cristo! — Sentou-se numa poltrona e olhou para os pés. — Jesus Cristo!
Ficou ali sentado, durante o que lhe pareceu muito tempo, olhando para os pés. Ele já sabia, mas o choque de ouvir era diferente.

Então Newton falou: — Quer beber alguma coisa?

Ele ergueu os olhos, de súbito, rindo.

— Deus! Sim.

Newton pegou o telefone da cabeceira e chamou o serviço de quarto. Pediu duas garrafas de gim, vermute e gelo. Depois, desligando, disse: —Vamos nos embebedar, Dr. Bryce. É uma ocasião especial.

Não falaram mais até o funcionário chegar, com um carrinho com bebidas e o gelo, bem como um misturador de martinis. No tabuleiro havia um prato com cebolas de aperitivo, casca de limão e azeitonas verdes e outro prato de nozes. Quando o rapaz saiu, Newton sugeriu:

— Importa-se de servir as bebidas? Quero meu gim simples. — Ainda estava sentado na cama.

— Claro. — Bryce levantou-se, sentindo-se leve. — É de Marte?

— Faz alguma diferença?

— Com certeza. É deste... Sistema solar?

— Sim. Tanto quando sei não há outros.

— Não há mais nenhum sistema solar?
Newton pegou no copo de gim, oferecido por Bryce e olhou-o com ar especulador.

— Apenas sóis, não há planetas. Ou eu não sei de nenhum.

Bryce mexia seu Martini. As mãos tinham parado totalmente de tremer. Sentia-se como se mais nada o pudesse impressionar ou abalar.

— Há quanto tempo está aqui? — Perguntou, enquanto fazia a mistura e escutava o tilintar do gelo contra os lados do misturador.

— Já não chacoalhou isso o bastante? — Perguntou Newton e deu um gole no seu gim. — Estou na Terra há cinco anos.

Bryce parou de mexer o Martini e derramou-o num copo. Depois, sentindo-se generoso, soltou três azeitonas dentro. Um pouco do líquido caiu na toalha de linho branco, deixando nódoas.

— Pretende ficar? — indagou.

Parecia que estava num café de Paris, perguntando a um turista. Newton devia usar uma máquina fotográfica ao pescoço.

— Sim.

Então, já sentado, Bryce deu com os seus olhos a vagar pelo quarto. Era um quarto agradável, com paredes verde-pálidas e quadros inofensivos pendurados nelas.
Voltou seu olhar para Newton. Thomas Jerome Newton, de Marte. Marte ou qualquer outro lugar.

— Você é humano?

A bebida de Newton ia pela metade.

— É uma questão de critério. Contudo, sou suficientemente humano.

Ele ia começar a dizer: suficientemente humano para quê, mas não o fez. O melhor era passar à segunda pergunta importante, visto já ter feito a primeira.

— Está aqui para quê? Quais são as suas intenções? O que planeja fazer?
Newton levantou-se, deixou cair gim no copo, foi até uma poltrona, sentou-se e olhou para Bryce, segurando delicadamente o copo na mão esguia.

— Não tenho certeza.

— Não tem certeza?

Newton pousou o copo na mesa, junto à cama, e começou a tirar os sapatos.

— Pensei saber, a princípio. Mas durante os primeiros dois anos andei cheio de afazeres, muito mesmo. Neste ano, que está quase ao fim, tive mais tempo para pensar. Tempo até demais.

Arrumou muito bem os sapatos, lado a lado, debaixo da cama. Depois estendeu as pernas compridas, em cima da colcha e encostou-se à almofada.
Não havia dúvidas de que naquela pose parecia suficientemente humano.

— Para que a nave? É uma nave, não é? Não é apenas um engenho para exploração.

— E uma nave. Ou, mais precisamente, uma nave para transporte de passageiros.

Durante algum tempo, mesmo desde a conversa com Canutti, Bryce sentira-se fascinado; tudo tinha um aspecto irreal. Mas, naquela altura, estava alcançando a compreensão das coisas, e o cientista, que nele existia, começava a recompor-se.

Pousou os óculos, decidido a não beber mais nada, naquele momento. Era importante manter as ideias claras. Mas a mão, enquanto pousava os óculos, tremia.

— Então planeja trazer mais da sua... gente pra cá? Na nave?

— Sim.

— E há mais gente da sua aqui?

— Sou o único.

— Mas para quê construir a nave aqui? Com certeza elas existem no lugar de onde veio.

— Sim, mas era uma nave individual. O problema é o combustível. Havia apenas o suficiente para um, e só em um dos sentidos.

— Combustível atômico? Urânio ou coisa assim?

— Sim. É claro. Mas quase já não temos mais nenhum. Nem temos petróleo, nem carvão, nem potência hidroelétrica. — Sorriu. — Há, provavelmente, centenas de naves, muito superiores àquela que estamos construindo em Kentucky; mas não há como trazê-las aqui. Nenhuma delas tem sido usada durante cinco centenas dos nossos anos. Aquela em que vim nem sequer se destinava a ser um transporte interplanetário. Originariamente foi concebida como nave de emergência, salva-vidas. Destruí os motores e os controles depois de aterrar, e deixei o casco num campo. Li nos jornais que há um fazendeiro que cobra cinquenta centavos para as pessoas olharem para ela. Instalou uma tenda e vende refrigerantes. Desejo-lhe boa sorte.

— Não há qualquer perigo?

— De ser descoberto pelo FBI, ou coisa do gênero? Não creio. O pior que poderia acontecer era escreverem qualquer disparate, nesses jornais de domingo sensacionalistas, acerca de possíveis invasores do espaço. Mas têm surgido coisas mais interessantes para esse tipo de leitor do que supostos cascos de naves espaciais encontrados em campos de Kentucky. Não acho que ninguém se importante ou leve a sério.

— “Invasores do espaço exterior” é apenas um disparate?

Newton desapertou o colarinho.

— Acho que sim.

— Então o que o seu povo vai fazer aqui? Turismo?

Newton riu-se.

— Não exatamente. Pode ser que conseguíssemos ajuda-los.

— Como? — De certa maneira não gostava da forma como Newton tinha dito aquilo. — Ajudar-nos como?

— Impedir de se destruírem, se fôssemos bastante rápidos. — E, quando Bryce ia começar a falar, prosseguiu: — Deixe-me falar. Acho que ignora o prazer que me dá falar sobre isso, falar, falar. — Depois de se deitar, cruzou as mãos no estômago, e olhando amavelmente para Bryce, continuou: — Tivemos as nossas guerras. Muito mais do que vocês e mal conseguimos sobreviver. Foi onde se empregou a maior parte dos nossos materiais radioativos, em bombas. Costumávamos ser um povo muito poderoso, muito poderoso; mas isso acabou. Agora é com dificuldade que nos mantemos vivos.

Olhou para as mãos, como se especulasse acerca do assunto.

— É estranho que a maioria da sua literatura imaginativa, a cerca da vida em outros planetas parta sempre do princípio de que cada um deles tivesse apenas uma raça inteligente, um tipo de sociedade, uma língua, um governo. Em Anthea, somos de Anthea, embora, é claro, não seja esse o nome que vem nos seus livros de astronomia. Tivemos, a certa altura, três espécies inteligentes e sete governos mais importantes. Agora há apenas uma espécie com certa importância, que é a minha. Somos os sobreviventes, depois de cinco anos de luta com armas radioativas. Não somos muitos mas sabemos o bastante sobre guerras. E temos um grande conhecimento tecnológico. — Os olhos de Newton ainda estavam fixos nas mãos; a voz tinha se tornado monótona, como se recitasse um discurso preparado.

— Tenho estado aqui há cinco anos, e tenho bens que valem mais de três centenas de milhões de dólares. Em cinco anos terei o dobro. E isto é apenas o começo. Se o plano for levado a cabo haverá, equivalentes da World Entreprises em todos os países mais importantes deste mundo. Depois entraremos na política. E nas forças armadas. Conheço armas. As de vocês ainda estão cruas. Podemos, por exemplo, tornar impotentes os radares, uma coisa bastante necessária quando cheguei aqui, na minha nave, e ainda mais necessária quando a nave de transporte regressar. Também podemos gerar um sistema energético que evite a detonação de qualquer das suas armas nucleares num raio de muitos quilômetros.

— Isso é o bastante?

— Não sei... Mas os meus superiores não são estúpidos e parecem pensar que é possível. Enquanto mantivermos os nossos aparelhos e os nossos conhecimentos sob o nosso controle, desenvolvendo a economia de um país pequeno, aqui, comprando um excesso de comida acolá, iniciando uma indústria noutro lado, dando uma arma a um país e a outro a defesa contra ela...

— Mas, vocês não são deuses!

— Não. Mas os seus alguma vez os salvaram?

— Não sei. Não. E claro que não.

Bryce acendeu um cigarro. Foi preciso três tentativas; as mãos recusavam-se a parar de tremer.
Inspirou profundamente o fumo, tentando acalmar-se.
Sentia-se um pouco como um estudante do segundo anos de filosofia, a discutir o destino da humanidade. Mas aquilo não era bem filosofar.

— A humanidade não tem o direito de escolher a sua própria forma de destruição?

Newton esperou um instante, antes de falar.

— Acredita, realmente, que a humanidade tem um direito desses?

Bryce esmagou o cigarro pela metade no cinzeiro a seu lado.

— Sim. Não. Não sei... Não há uma coisa chamada destino? O direito de nos realizarmos, de viver como quisermos e de arcarmos com as consequências?

Ao dizer aquilo foi subitamente atingido pela ideia de que Newton era o único elo com... com quê?... com Anthea. Se Newton fosse destruído o plano não seria levado a cabo e tudo terminaria. E Newton era frágil, muito frágil. O pensamento deixou-o fascinado durante um minuto; ele, Bryce, era, potencialmente, o herói dos heróis — o homem que podia, com um soco do seu punho, salvar talvez o mundo.

— Pode haver uma coisa chamada destino — disse Newton — Mas é difícil imaginar que se assemelhe ao destino de um animal extinto. Ou o destino daquelas enormes criaturas com miolos minúsculos, acho que se chamavam dinossauros.
Aquilo parecia um pouco arrogante.

— Não vamos ser necessariamente extintos. O desarmamento esta sendo negociado. Nem todos são loucos.

— Mas a maior parte é. Uma parte que chega e sobra, apenas é preciso meia dúzia de loucos, nos lugares certos. Suponha que Hitler tivesse nas mãos a bomba de fusão e os mísseis intercontinentais?! Não teria usado-os, sem olhar às consequências? No final da guerra, já não tinha nada mais a perder.

— Como sei se os seus antheanos não são Hitleres?

Newton desviou os olhos.

— É possível, mas improvável.

— Vocês vivem em uma sociedade democrática?

— Não temos nada que se assemelhe a uma sociedade democrática em Anthea. Nem possuímos instituições sociais-democráticas. Mas não temos intenção de governá-los, mesmo se pudéssemos.

— Então o que chamam a isso, — indagou Bryce — se planejam ter um bando de antheanos a manipular homens e governos em toda a Terra?

— Podíamos chamar de manipulação, ou orientação. E talvez não funcionasse. Pode ser um tremendo fracasso. Vocês podem explodir o mundo antes, ou nos descobrir e começarem uma caça às bruxas, somos vulneráveis, você sabe. Mesmo se obtivéssemos muito poder, podíamos não conseguir controlar todos os acidentes. Mas conseguiríamos reduzir as probabilidades dos Hitleres e proteger as cidades maiores da destruição. E isso — encolheu os ombros — é mais do que vocês podem fazer.

— E querem fazer isso só para nos ajudarem?

Bryce reparou no sarcasmo da própria voz e esperou que Newton não notasse. Se notou não demostrou.

— É claro que não. Viríamos para cá para nos salvarmos. Mas — sorriu — não queremos que os índios queimem a nossa reserva depois de nos instalarmos nela.

— Estão querendo se salvar do quê?

— Da extinção. Quase não temos mais água, nem combustíveis, nem recursos naturais. Temos uma fraca luz solar, fraca por estarmos muito longe do Sol, e ainda temos grandes reservas de alimentos. Mas estão diminuindo. Há menos de três centenas de antheanos vivos.

— Menos de trezentos? Meu Deus, vocês quase deram cabo da espécie!

— Sim, na verdade foi isso. Tal como vocês farão daqui a pouco tempo, creio, se não viermos para cá.

— Talvez devessem vir — disse ele —, talvez devessem.

Bryce sentia a garganta apertada. — Mas se lhe acontecesse alguma coisa, antes da nave estar pronta? Não seria o fim de tudo?

— Sim. Seria o fim.

— Não há combustível para outra nave?

— Não há.

— Então — disse Bryce tenso —, o que me impede de parar com isto, com esta invasão, ou manipulação? Não deveria matá-lo? O senhor é muito fraco, eu sei. Calculo que seus ossos são como os de um pássaro, por aquilo que a Betty Jo me contou.
A cara de Newton continuou completamente impávida.

— Quer fazer parar tudo isso? Tem razão; pode torcer-me o pescoço como faria com uma galinha. Quer fazer? Agora que sabe que o meu nome é Rumplestiltskin, quer me botar para fora do palácio?

— Não sei.

Newton falou, com suavidade.

— Rumplestiltskin transformou palha em ouro.

Bryce ergueu os olhos, repentinamente cansado.

— Sim. E tentou roubar o filho da princesa.

— Claro que tentou. Mas, se não tivesse tecido palha em ouro, a princesa teria morrido. E, então, não haveria filho algum.

— Muito bem! — Replicou Bryce — Não vou torcer seu pescoço para salvar o mundo.

— Sabe de uma coisa, — disse Newton — eu agora, quase desejo que pudesse fazê-lo. Simplificaria muito mais as coisas. — Fez uma pausa. — Mas não pode.

— Por que é que não posso?

— Não cheguei ao seu mundo sem que estivesse preparado para me descobrirem. Embora não
esperasse contar a alguém o que lhe contei. Mas também houve muita coisa que eu não esperava. — Olhou para as mãos, outra vez, parecendo examinar as unhas. — Trago comigo uma arma, no caso de haver um percalço. Trago sempre.

— Uma arma antheana?

— Sim. Muito eficaz. O senhor nunca conseguiria chegar até mim.

Bryce inspirou com rapidez.

— Como é que funciona?

Newton sorriu.

— Será que o rato vai contar ao gato? — perguntou. — Ainda posso ter de usá-la.

Uma característica na maneira como Newton acabara de falar — não irônica ou pseudo-sinistra  declaração em si mesma, mas uma espécie de leve estranheza nos seus modos — lembrou a Bryce que estava, afinal de contas, a falar com alguém que não era humano.

A aparência de humanidade, adquirida com a prática, que Newton assumia, podia não passar disso, apenas: uma aparência. O quer que estivesse subjacente à aparência, a essência de Newton, a sua natureza especificamente antheana, podia muito bem ser inacessível a ele, Bryce, ou, qualquer pessoa da Terra. A maneira como Newton sentia ou pensava, na verdade, podia estar além da sua compreensão,  fora do seu alcance, no seu todo.

— Seja qual for a sua arma — falou com mais cuidado dessa vez —, espero ter que usar.
E, então, olhou outra vez à sua volta, para o grande quarto de hotel, o tabuleiro quase intacto das bebidas, olhou novamente Newton, reclinado na cama.

— Meu Deus — exclamou. — É difícil de acreditar. Estou sentado neste quarto falando com um homem de outro planeta.

— Sim — disse Newton. — Também penso o mesmo. Estou a conversar com um homem de outro planeta, também, certo?

Bryce levantou-se e espreguiçou-se. Depois, foi até à janela, afastou as cortinas e olhou para a rua, lá em baixo. Havia faróis de automóveis por todo o lado, movendo-se com dificuldade. Um enorme outdoor iluminado, mostrava Papai Noel bebendo uma garrafa de Coca-Cola. Montes de lâmpadas intermitentes faziam com que os seus olhos piscassem, obrigavam o refrigerante a cintilar. Bryce ouvia carrilhões natalícios tocando Adeste Fideles.

Virou-se para Newton, que não se mexera.

— Por que contou pra mim? Não devia ter feito isso.

— Quis contar. — Sorriu. — No último ano não tenho estado bem certo das minhas motivações; não sei muito bem porque quis contar-lhe. Os antheanos não sabem tudo, necessariamente. De qualquer forma, o senhor já sabia.

— Está se referindo ao que o Canutti disse? Podia ter sido apenas um tiro no escuro. Podia não ter sido nada.

— Não estava pensando no que disse o professor Canutti. Embora achasse divertida a sua reação a isso; pensava que o senhor estava tendo uma apoplexia quando ele falou em ‘Marte’. Mas não me afetou.

— E por que não?

— Bom, Dr. Bryce, há diferenças muito grandes entre o senhor e eu. Uma delas é que a minha visão é muito mais aguda do que a sua, e que a minha amplitude de frequência é muitíssimo maior. O que significa que eu não posso ver o que vocês chamam de vermelho. Mas posso ver raios X.
Bryce abriu a boca para falar, mas emudeceu.

— Uma vez tendo visto o disparo, não foi difícil descobrir o que fez. — Olhou para Bryce, com um ar inquiridor. — Como ficou a imagem?

Bryce sentiu-se tolo, como um menino da escola que é apanhado com a mão na botija.

— Ficou... notável.

Newton acenou com a cabeça.

— Imagino. Se conseguiu ver meus órgãos internos deve ter tido algumas surpresas. Uma vez fui a um museu de história natural, em Nova Iorque. Um local muito interessante para um... para um turista. Ocorreu-me que era o único espécime biológico verdadeiramente diferente de tudo, em todo o edifício. Imaginei-me conservado, num frasco, com a etiqueta ‘Humanoide extraterrestre’. Saí de lá correndo.

Bryce não conseguiu deixar de rir. E Newton mostrava-se expansivo, parecia paradoxalmente ainda mais ‘humano’, depois de ter esclarecido que não era. A expressão facial mostrava-se mais clara, seus modos eram mais descontraídos do que Bryce já notara. Mas ainda havia aquela surpresa de outro Newton, de um Newton antheano, dos pés à cabeça, inacessível e alienígena.

— Pretende voltar ao seu planeta? — Indagou Bryce. — Na nave?

—  Não vai ser necessário. A nave será orientada automaticamente. Receio ser um exilado permanente, aqui.

— Sente saudades da sua... da sua gente?

— Sinto.

Bryce voltou à poltrona e sentou-se de novo.

— Mas a verá em breve.

Newton hesitou:  —Talvez.

— Por que talvez? Pode acontecer algo de errado?

— Não pensava nisso. Já lhe disse que não estou completamente certo do que quero fazer.
Bryce olhou-o, confuso.

— Não entendi.

— Bom — Newton sorriu, debilmente — há algum tempo tenho pensado em não completar o plano, em não enviar a nave, em não acabar sequer a construção... Precisa só de uma simples ordem.

— Por amor de Deus, por quê?

— O plano era inteligente, embora desesperado. Mas que mais poderíamos fazer? Contudo, comecei a ter certas dúvidas se valia a pena. Há coisas na sua cultura, na sua sociedade, que ignorávamos. Sabe, Dr. Bryce — mudou de posição, na cama, inclinando-se mais para o outro lado — às vezes penso que enlouquecerei daqui a poucos anos. Não estou bem certo de que meu povo seja capaz de suportar o seu mundo. Temos vivido numa torre de marfim, durante muito tempo.

— Mas podem se isolar do mundo. O senhor tem dinheiro; pode ficar junto dos seus, construírem a sua própria sociedade. Pode construir a sua própria cidade, em Kentucky.

Que estava fazendo? Defendendo a invasão antheana?

— E esperar as bombas cairem? Estaríamos melhor em Anthea. Lá podemos viver, pelo menos, mais cinquenta anos. Aqui seremos uma colônia de excêntricos, isolada. Teremos de nos dispersar por todo o mundo, colocarmos-nos em posições influentes. De outra forma, seria uma loucura.

— Seja o que for, será um grande risco. Não pode nos deixar resolver nossos próprios problemas, se tem medo de um contato mais próximo conosco? — Um sorriso amarelo. — Façam favor de se instalarem como se fosse sua casa.

— Dr. Bryce — disse Newton, com uma cara muito séria —  somos muito mais prudentes do que vocês. Acredite, muito mais do que pode imaginar. E estamos absolutamente convencidos, de que seu mundo será um monte de cascalho atômico daqui a trinta anos, no máximo, se ficarem sozinhos. —

Continuou, tristemente. — Para ser franco, ficamos desanimados ao ver o que estão prestes a fazer a um mundo tão belo e fértil. Nós destruímos o nosso, há muito tempo, e temos muito menos do que vocês têm aqui para recomeçar. Percebe que não só destroem a sua civilização, tal como é, e matam a maior parte da sua gente, como também vão envenenar o peixe dos rios, os esquilos das árvores, os bandos de aves, o solo, a água? A esta altura, vocês parecem macacos perdidos num museu, com facas na mão, a retalhar as telas, a quebrar as estátuas com martelos.

Por momentos, Bryce não respondeu. Depois rebateu:

— Mas foram seres humanos que pintaram os quadros, e que esculpiram as estátuas.

— Apenas alguns seres humanos — corrigiu Newton. — Apenas alguns.

De repente levantou-se e acrescentou: — Acho que já chega de Chicago. O que me diz de voltar para casa?

— Agora? — Bryce olhou para o relógio. Eram duas e trinta da manhã. O Natal já passara.

— De qualquer maneira, acha que conseguirá dormir esta noite? — Perguntou Newton.
Ele encolheu os ombros.

— Acho que não. — E depois, lembrando do que Betty Jo dissera: — Você não dorme, não?

— Às vezes durmo, mas não é frequente. — Sentou-se junto do telefone. — Tenho que acordar nosso piloto. E precisamos de um carro para nos levar ao aeroporto.

Foi difícil arranjar o carro; só chegaram ao aeroporto às quatro horas. Por essa altura, Bryce começava a sentir-se tonto e havia um zumbido nos seus ouvidos. Newton não demonstrava sinal de fadiga. Seu rosto,  como de costume, não indicava o que estava pensando.
Houve vários adiamentos até obterem licença para descolarem, e ao voarem sobre o lago Michigan, uma alvorada meiga e rosada, começou a surgir.

Era dia claro quando chegaram a Kentucky; o começo de um claro dia de inverno.

Ao fazerem a aproximação, a primeira coisa que viram foi o casco radiante da nave — a nave de transporte de Newton —, parecendo um monumento lustroso ao sol da manhã. E então, quando chegaram ao campo de aterragem, viram uma coisa surpreendente. Elegantemente pousado na extremidade mais longínqua da pista, ao lado do hangar de Newton, encontrava-se um avião branco, com umas linhas bonitas, duas vezes maior que aquele em que tinham viajado. Nas asas ostentava as insígnias da Força Aérea dos Estados Unidos.

— Bom — disse Newton —, quem será que está nos visitando?

Tinham de passar pelo avião branco, a caminho do monotrilho e, quando o fizeram, Bryce não deixou de ficar impressionado com a sua beleza — as belas proporções e a graciosidade das linhas.

— Se conseguíssemos fazer tudo assim tão bonito! — comentou.
Newton também contemplou o avião.

— Mas não conseguem.

Guiaram o carro do monotrilho em silêncio. Os braços e as pernas de Bryce doíam-lhe devido à necessidade de dormir; mas a cabeça abarrotada de imagens intensas, rápidas, de pensamentos meio formulados.
Devia ter ido para casa; mas quando Newton o convidou para um café, aceitou. Seria mais fácil que arranjar ele próprio a comida.

Betty Jo estava de pé, vestia um quimono cor de laranja, com o cabelo metido num lenço, atado debaixo do queixo. Tinha uma cara preocupada, os olhos vermelhos, as pálpebras inferiores inchadas.

Ao abrir a porta, disse: — Tem uns homens aqui, Sr. Newton. Não sei...

A voz falhou. Passaram por ela e entraram na sala de estar.

Sentados nas poltronas viram cinco homens; levantaram- se quando Newton e Bryce entraram.
Brinnarde encontrava-se no centro do grupo. Havia mais três homens com ternos de três peças, e o quarto, com uma farda azul, era, obviamente, o piloto do avião da Força Aérea. Brinnarde apresentou-os, à sua maneira eficiente, imparcial. Quando acabou, ainda de pé, Newton indagou:

— Esperaram muito?

— Não — disse Brinnarde —, não muito. Conseguimos que o segurassem na pista, no aeroporto de Chicago. Foi o tempo certo para chegarmos aqui antes de vocês.

Newton não mostrou qualquer emoção.

— Como é que conseguiu isso?

— Bom, Sr. Newton — explicou Brinnarde —, trabalho para o FBI. Estes homens são meus colegas.

A voz de Newton hesitou de leve.

— Muito interessante. Suponho que isso faz de você um... um espião?

— Suponho que sim. Em todo o caso, Sr. Newton, ordenaram-me que o prendesse e o levasse comigo.

Newton inspirou lenta e profundamente, de uma maneira muito humana.

— Por que é que me vão prender?

Brinnarde sorriu, delicadamente. —É acusado de entrada ilegal no país. Achamos que é um estrangeiro, Sr. Newton.

Newton ficou sem falar, por um longo momento. Depois, perguntou:

— Posso tomar primeiro o café, por favor?

Brinnarde hesitou, depois sorriu de uma maneira que era até simpática.

— Não vejo por que não, Sr. Newton. Acho que também poderíamos comer alguma coisa. Nos fizeram levantar às quatro da madrugada, em Louisville, para esta prisão.

Betty Jo providenciou ovos mexidos e café. Enquanto comiam, Newton perguntou, casualmente, se podia telefonar ao seu advogado.

— Receio que não — respondeu Brinnarde.

— Não há um direito constitucional sobre isso?

— Sim — Brinnarde pousou a xícara de café. — Mas o senhor não tem quaisquer direitos constitucionais. Tal como disse, pensamos que não é um cidadão americano.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 11)



Numa manhã de domingo, cinco dias depois da sua conversa com Newton, Bryce estava em casa, tentando ler um romance. Encontrava-se sentado junto do aquecedor elétrico, na sua salinha pré-fabricada, vestindo apenas um pijama verde, de flanela de algodão, enquanto bebia a terceira caneca de café.

Sentia-se melhor naquela manhã a preocupação a cerca da identidade de Newton não o ensombrava tanto quanto o fizera durante dias atrás. O assunto ainda permanecia em pensamento; mas resolvera adotar uma espécie de política — e esperar, com todos os sentidos alerta. O romance policial era ridículo, de uma maneira agradável; o tempo lá fora se tornara incomodamente frio.
Sentia-se bem e não se achava preocupado com coisa alguma. Da parede, à sua esquerda, pendia ‘The Fall of Icarus’. Tinha mudado-o da cozinha para ali, dois dias antes.

Ia pela metade do livro quando ouviu uma pancada fraca na porta principal. Levantou-se, um pouco irritado, pensando quem poderia visita-lo numa manhã de domingo. Era bastante sociável em relação ao seu pessoal, mas tinha poucos amigos. Não possuía amigos suficientemente chegados para ir até seu bangalô num dia daqueles e antes do almoço. Vestiu o roupão de banho e abriu a porta.

Lá fora, em plena manhã cinzenta, tremendo num casaco de nylon leve, estava a governanta de Newton.

Sorriu-lhe e perguntou:

— Dr. Bryce?

— Sim? — Não lembravas seu nome, embora Newton o tivesse dito uma vez. Havia imensos boatos acerca de Newton e da mulher. — Entre e se aqueça, por favor.

— Obrigado. — Entrou muito depressa, mas com o ar de quem se desculpa, e fechou a porta. — O Sr. Newton mandou-me procurá-lo.

— É? — Foram até o aquecedor elétrico. — Você precisa de um casaco melhor para este frio.

Ela pareceu corar — ou talvez fosse apenas o avermelhado das faces devido ao frio.

— Não saio muito.

Depois de ter ajudado-a a despir o casaco, começou a aquecer as mãos. Bryce sentou-se e observou-a, meditativamente, esperando que lhe dissesse a razão da visita.

Era uma mulher interessante — boca carnuda, cabelo preto, corpo cheio, por baixo do simples vestido azul. Devia ter, mais ou menos, a sua idade, e tal como ele usava roupa antiquada. Não usava maquiagem, mas, com o rubor da pele que o frio lhe causara, também não precisava. Tinha seios pesados, como os daquelas camponesas russas em filmes de propaganda comunista; e teria o aspecto perfeito, monumental, da ‘mãe-terra’ se não fossem os olhos tímidos, que se apagavam a si mesmos, bem como a voz e as maneiras rústicas. Ele gostava, como gostava, do fato de ela não depilar as sobrancelhas.

De repente a mulher endireitou-se, sorrindo-lhe com um ar mais à vontade, e disse:

— Não é como um fogo de lenha.

Naquele momento não compreendeu o que aquilo significava. Depois, acenando para o aquecedor, que tinha um brilho vermelho, replicou:

— Não, nem perto. — E continuou. — Por que não se senta?

Ela aproveitou a poltrona que estava em frente de Bryce, recostou-se.

— Também não tem o mesmo cheiro de um fogo a lenha. — Sorriu, com ar pensativo. — Vivi numa fazenda e ainda me lembro dos fogos de lenha, de manhã. Punha a roupa à lareira, para esquentar, e deixava que o fogo me aquecesse as costas. Lembro-me do cheiro da lareira. Mas nunca mais o senti há, há uns vinte anos.

— Eu também não — concordou.

— Nada cheira tão bem, quando a gente está habituada — comentou ela. — Nem sequer o café, da maneira como fazem. Agora, a maior parte das coisas já não cheira a nada.

— Quer café?

— Claro. Quer que o vá buscar?

— Eu pego. Eu ia pegar mais para mim mesmo.

Foi à cozinha e pegou duas canecas e as pílulas de café que eram praticamente só o que se podia comprar, naquela época, desde que o país cortara relações com o Brasil. Trouxe-as numa bandeja e ela levantou os olhos e sorriu-lhe, com ar agradável, quando pegou na sua.

Ele sentou-se.

— Tem razão — disse —, não há nada que cheire como antigamente. Ou talvez estejamos velhos demais para lembrar.

A mulher continuava a sorrir. Depois retorquiu:

— Ele quer saber se vai a Chicago com ele. No mês que vem.

— O Sr. Newton?

— Ha-ha. Uma reunião. Disse que talvez você soubesse.

— Uma reunião? — Bebeu o café, pensativamente. — Ah, sim. No instituto de engenheiros químicos. Por que ele quer ir?

— Não sei. Me disse que se o senhor quisesse ir com ele, encontraria-o esta tarde. Não vai trabalhar, não?

— Não. Não trabalho aos domingos.

Havia ali uma oportunidade, ‘de bandeja’. Tinha um plano meio alinhavado, e se Newton fosse mesmo ali, a casa ...

— Ficarei satisfeito. — E acrescentou: — Disse quando?

— Não, não disse.

Acabou de tomar o café, pousou a caneca no chão, ao lado da poltrona. Não havia dúvidas de que se instalara como se estivesse em casa, pensou, mas não importava. Era informalidade genuína e não do tipo afetado como a do professor Canutti e seus iguais, lá de lowa.

— Ele ultimamente não tem falado muito. — Havia uma sugestão de tensão na sua voz. — Eu mal o vejo agora.

Havia qualquer coisa de triste na sua voz, igualmente, e Bryce pensou no que poderia existir entre aqueles dois. E, ocorreu-lhe que também havia ali uma oportunidade.

— Ele está doente?

Se conseguisse fazê-la começar a falar...

— Que eu saiba, não. Ele tem altos e baixos. — Olhava para o aquecedor à sua frente, não para ele.

— Às vezes ele conversa com aquele francês, Brinnarde, e outras vezes comigo. Outras vezes fica apenas sentado na sala. Dias inteiros. Ou bebe; mas é difícil saber.

— O que faz o Brinnarde?

— Não sei. — Olhou-o fugazmente e voltou ao aquecedor. — Acho que é um guarda-costas. — Voltou-se para ele, com uma expressão ansiosa. — Sabe, Sr. Bryce, Brinnarde tem uma arma.— Sacudiu a cabeça, com o ar de uma mãe preocupada.

— Não confio nele, e acho que o Sr. Newton também não devia.

— Homens ricos têm guarda-costas. Além disso, o Brinnarde também é uma espécie de secretário, não?

Ela riu-se, um riso breve, perverso.

— O Sr. Newton não escreve cartas.

— Não, creio que não.

Então, ainda a olhar para o aquecedor, disse, humildemente:

— Posso tomar uma bebida?

— Claro. — Ele levantou-se depressa. — Gim?

Ela ergueu os olhos.

— Sim, por favor.

Havia nela algo de melancólico e Bryce percebeu que ela devia se sentir muito só, não devia ter ninguém com quem falar. Ficou com pena — uma caipira perdida, anacrônica — e, ao mesmo tempo, excitado, ao compreender que estava na hora de lhe extrair informações. Podia amansá-la com um pouco de gim, deixá-la contemplar a falsa lareira por um bocado, e esperar que falasse. Sorriu para consigo mesmo, achando-se maquiavélico.

Quando estava na cozinha, pegando a garrafa de gim da prateleira, acima do lava-louças, ela disse da sala de estar:

— Importa-se de colocar um pouquinho de açúcar, por favor?

Açúcar? Aquilo era muito ‘moderno’.

— Três colheres, mais ou menos.

— Okay — concordou, abanando a cabeça. E disse, então:

— Esqueci seu nome.

A voz dela ainda denotava tensão — como se estivesse a evitar que tremesse ou a impedir-se de chorar.

— Betty Jo. Betty Jo Mosher.

Uma espécie de suave dignidade na maneira como lhe respondera o fez ficar mal por não ter se lembrado do seu nome. Pôs o açúcar num copo, começou a enchê-lo de gim, e sentiu-se envergonhado do que estava prestes a fazer, ia usá-la.

— É de Kentucky? — Perguntou o mais delicadamente que conseguiu.

Encheu o copo, quase até à borda, e mexeu o conteúdo.

— Sim. Irvine. A cerca de dez quilômetros de Irvine. Ao norte daqui.

Ele levou-lhe o copo e ela o recebeu com gratidão, tão tocante quanto ridícula.
Estava começando a gostar daquela mulher.

— Tem família ainda viva?

Lembrou-se de que devia estar arrancando informações sobre Newton, não dela. Por que seria que a sua mente passava a vida a afastar-se do verdadeiro assunto?

— Minha mãe morreu. — Bebeu um golinho, fê-lo girar à boca, engoliu. — Não há dúvida de que gosto de gim — disse. — Paizinho vendeu a propriedade para o governo, para uma tal de... uma... coisa hidro...

— Uma estação hidropônica?

— Isso mesmo! Onde fazem a porcaria daquela comida em tanques. De qualquer forma, o paizinho agora é dependente do Estado, lá em Chicago, como aconteceu comigo em Louisville, até conhecer o Tommy.

— O Tommy?

Sorriu amarelo.

— Sr. Newton. Eu o chamo de Tommy, às vezes. Achei que ele gostava.

Ele respirou fundo, desviando os olhos, e perguntou:

— Onde é que o conheceu?

Betty Jo bebeu mais um pouco, saboreou e engoliu. Depois riu baixinho.

— Num elevador. Eu subia no elevador, em Louisville, para ir buscar o auxílio-salário, e o Tommy também. Pai do Céu! Tinha um aspecto tão esquisito! Percebi logo. E então ele partiu a perna no elevador.

— Partiu uma perna?

— É. Parece mentira, mas foi o que aconteceu. O elevador devia ser demasiado por ele. Se soubesse como ele é levezinho...

— Até que ponto?

— A gente pode pegá-lo só com uma das mãos. Os ossos dele não são mais fortes dos que de um passarinho. É estranho. Pai do Céu, e é um homem bonito; e tão inteligente e rico, e tão paciente. Mas Sr. Bryce...

— Sim?

— Acho que ele está doente. Muito doente. Acho que tem uma doença no corpo, meu Deus! Devia ver os comprimidos que toma! Acho que tem a cabeça cheia de problemas. Quero ajudá-lo, mas nunca sei por onde começar. E nem sequer deixa um médico chegar nele. — Acabou o copo de gim e inclinou-se para frente, como se fosse contar um segredo. Mas havia desgosto na sua cara. Desgosto demasiado verdadeiro para que um fingimento servisse de desculpa à confidência.

— Acho que ele nunca dorme. Estou com ele há quase um ano e nunca o vi dormir. Ele não é humano!

Um arrepio espalhava-se pela nuca de Bryce, dos ombros ia descendo pela espinha.

— Quer mais gim? — perguntou. E depois declarou: — Vou lhe fazer companhia...

Ela tomou mais dois copos antes de partir. Não contou grande coisa — provavelmente por ele não lhe ter perguntado mais nada; não se achava capaz. Mas quando Betty Jo ia saindo — sem oscilar sequer um bocadinho, porque aguentava o álcool como um marinheiro — disse enquanto vestia o casaco:

— Sr. Bryce, sou uma mulher sem estudo e boba, mas gostei de falar com você. Sério.

— Foi um prazer. Pode vir sempre que quiser.

Ela pestanejou.

— Posso?...

Bryce não quisera dizer aquilo, literalmente, mas disse-o então e era verdade:

— Quero que volte. Também não tenho muita gente com quem conversar.

— Muito obrigada — Disse Betty Jo, e quando saía novamente para o tempo invernoso, deixou escapar:

— Com você já são três, não é?

Bryce ignorava quantas horas teria antes da chegada de Newton; mas sabia que teria de se arrumar se queria estar pronto a tempo. Sentia-se terrivelmente excitado e nervoso enquanto se vestia, murmurava sem parar:

— Não pode ser Massachusetts, tem que ser Marte.

Quería que fosse de Marte?

Quando já se encontrava vestido, enfiou um sobretudo e partiu para o laboratório — cinco minutos de caminhada. Naquele momento nevava e o frio afastou-lhe as ideias que turbilhonavam na sua cabeça, o enigma que estava prestes a resolver, de uma vez por todas, se conseguisse montar o aparelho como devia ser, e montá-lo a tempo.
No laboratório trabalhavam três assistentes seus. Não lhes deu nenhuma atenção. Apercebeu-se da curiosidade deles quando começou a desmanchar o aparelhinho no laboratório dos metais — aquele que usavam para medir a tensão dos raios X e para análises — mas fingiu não ver as sobrancelhas levantadas.

Não demorou muito; teve apenas que tirar os parafusos que seguravam a câmara e o gerador de raios catódicos. Era capaz de transportá-los sozinho com facilidade. Certificou-se de que a câmara estava carregada — carregada com filme de raios-X de alta velocidade da W. E. Corporation — e, depois, partiu, com a câmara numa das mãos e o sistema de raios catódicos na outra.

Antes de fechar a porta disse aos outros: — Por que não tiram uma folga?

Fechou a porta e foi embora.

Próximo do aquecedor da sala de estar de Bryce havia um respiradouro de ar condicionado, que não estava sendo usado. Após vinte minutos de trabalho, e de alguns xingamentos, conseguiu instalar a câmera por detrás da grelha, com o obturador aberto. Felizmente o filme da W. E. era um grande melhoramento técnico sobre os seus predecessores; a luz visível não o afetava. Apenas os raios X podiam impressioná-lo.




O tubo do gerador também era um aparelho da W. E. Corporation; funcionava como um estroboscópio, disparando um feixe de raios X instantâneo e concentrado. Instalou-o na gaveta do armário da cozinha, apontando-o na direção da câmera. Depois pegou o fio elétrico que saía da gaveta e ligou-o à tomada, por cima do lava-louças. Deixou a gaveta meio aberta, para poder estender a mão e acionar o interruptor lateral do pequeno transformador que fornecia potência ao tubo.
Regressou à sala e colocou, com todo o cuidado, a poltrona mais cômoda entre a câmera e o tubo de raios catódicos. Depois sentou-se noutra poltrona, aguardando a chegada de Thomas Jerome Newton.



Foi uma longa espera. Bryce sentiu fome; tentou um sanduíche, mas não conseguiu acabar de comer.

Passeou de um lado para o outro, pegou outra vez no romance policial, mas não conseguiu concentrar-se na leitura. Com intervalos de minutos voltava à cozinha e verificava a posição do tubo de raios catódicos que metera na gaveta. Para assegurar-se de que o aparelho funcionava, colocou o interruptor em ‘ligado’, esperou que aquecesse, e pressionou o botão que enviava um relâmpago invisível que penetrou a parede, passou através da poltrona, depois da lente da câmara, e expôs o filme na parte detrás da câmera. Logo depois de carregar no botão, amaldiçoou-se em silêncio e com fúria. Que estúpido! Expusera o filme.

Levou vinte minutos a tirar a grelha da conduta de ar e a retirar a câmera. Depois teve de trocar o filme — o primeiro ostentava a cor acastanhada que significava ter sido exposto de maneira correta - por outro que foi buscar ao depósito da câmera. Suando, com medo que Newton pudesse bater à porta a qualquer momento, tornou a instalar a câmera, verificou a lente, apontou na direção da poltrona, e recolocou a grelha. Assegurou-se de que a lente estava alinhada, de forma que o metal não interferisse.

Com as mangas arregaçadas, lavava as mãos, quando bateram à porta. Obrigou-se a caminhar devagar, ainda com a toalha nas mãos, e abriu a porta.

De pé, debaixo de neve, T. J. Newton, com óculos escuros e um casaco leve, sorria, quase com ironia, e dava a ideia, ao contrário de Betty Jo, de não sentir frio algum.
Marte, pensou Bryce. Marte era um planeta frio.

— Boa tarde — disse Newton. — Espero não ter interrompido nada.

Bryce esforçou-se por manter a voz firme e ficou admirado consigo mesmo ao consegui-lo.

— De maneira nenhuma. Não quer sentar-se?

Com um gesto vago, indicou-lhe a poltrona. Pensou, enquanto o fazia, em Dâmocles, no trono debaixo da espada.

— Não — respondeu Newton. — Não, obrigado. Estive sentado a manhã toda.

Tirou o casaco e colocou-o nas costas da poltrona. Usava, como sempre, uma camisa de manga curta. Seus braços pareciam canos.

— Vou pegar uma bebida.

Se lhe desse uma bebida podia ser que se sentasse.





— Não, obrigado. Estou... ‘careta’. — Foi até à parede lateral e observou o quadro de Bryce. Ficou ali alguns instantes, enquanto Bryce se sentava. Depois, disse: — Um quadro lindo, Dr. Bryce. É um Brueghel, não é?

— Sim.

E claro que era um Brueghel. Qualquer pessoa saberia que era um Brueghel. Por que não se senta Newton? Bryce começou a estalar os nós dos dedos e depois parou. Distraído, Newton sacudiu alguns flocos de neve derretida do cabelo.

— Como se chama? — indagou Newton. — O quadro.

Newton devia sabê-lo; o quadro era bastante famoso.

— Chama-se ‘The Fall of Icarus’. É Ícaro mergulhando na água.
Newton continuou a contemplá-lo.

— E muito bonito. E a paisagem se parece muito com a nossa. As montanhas, a neve e a água. —

Virou-se para Bryce. — Mas, é claro, no quadro há uma pessoa arando um campo e o Sol está mais baixo. Deve ser mais tarde, durante o dia...
Incomodado, ainda nervoso, a voz de Bryce saiu impaciente: — Por que não mais cedo?

O sorriso de Newton era muito estranho. Os olhos pareciam focar-se em algo distante.

— Não podia ter sido de manhã, ou podia?

Bryce não respondeu. Mas Newton tinha razão, é claro. O Sol não estava a pique quando Ícaro caía.

Devia ter caído de uma grande altura. No quadro, o Sol encontrava-se a meio caminho abaixo do
horizonte e Ícaro, com a perna e o joelho agitando-se prestes a afogar-se, sem que ninguém desse por conta disso, devido à sua louca ousadia. Devia ser meio-dia.
Newton interrompeu a sua especulação.

— Betty Jo me disse que estava disposto a ir comigo a Chicago.

— Sim. Mas, por que vai a Chicago?

Newton fez um gesto que parecia muito estranho nele — encolheu os ombros e virou as palmas das mãos para fora. Devia tê-lo aprendido com o Brinnarde. Disse:

— Oh, preciso de mais químicos. Pensei que era uma boa maneira de contratá-los.

— E eu?

— O senhor é um químico. Ou um engenheiro químico, aliás.

Bryce hesitou antes de falar. O que iria dizer seria rude, mas Newton parecia não se importar com a sinceridade.

— Tem muitos homens, Sr. Newton — comentou. Depois forçou-se a rir. — Tive de lutar através de um exército deles antes de chegar até você.

— Sim — respondeu Newton. Voltou-se e olhou de relance para o quadro, acrescentando. — Talvez o que desejo realmente seja uma... folga. Visitar um lugar novo.

— Nunca esteve em Chicago?

— Não, receio ser uma espécie de recluso neste mundo.

Bryce quase corou, perante o comentário. Virou-se para o aquecedor artificial e opinou:

— Chicago no Natal, não é o lugar mais indicado para uma folga.

— Não tenho nada a reclamar quanto ao frio — explicou Newton. — O senhor tem?
Bryce riu, nervosamente.

— Não estou imunizado como o senhor parece estar, mas posso sobreviver...

— Ótimo. — Foi até à poltrona, pegou no casaco e começou a vesti-lo. — Estou contente por me acompanhar.

Vendo-o preparar-se para partir, Bryce entrou em pânico. Podia não ter outra oportunidade.

— Só um minuto — disse gaguejando. — Eu ia... ia pegar uma bebida para mim.

Newton não respondeu. Bryce foi até à cozinha. Ao passar a porta virou-se, para ver se Newton poderia estar de pé, por detrás da poltrona. O coração disparou: Newton voltara para junto da gravura, estava de pé na sua frente, de novo. Tinha o corpo meio curvado, visto que a cabeça lhe ficava, pelo menos, um metro acima do objetivo da sua contemplação.

Bryce fez um scotch duplo e acabou de encher o copo com água da torneira. Não gostava de gelo nas suas bebidas.
Junto ao lava-louças, amaldiçoou em silêncio, a má sorte que fizera com que Newton optasse por ficar de pé.

Depois, voltou à sala, e viu que o outro se sentara.

— Creio que é melhor ficar — disse. — Podemos discutir nossos planos.

— Claro — concordou Bryce. — Suponho que sim. — ficou ali como se tivesse sido atacado por uma paralisia e, depois acrescentou: — Eu... esqueci-me do gelo. Para a bebida. Desculpe.

E foi outra vez para a cozinha.

A mão tremia quando a meteu na gaveta e ligou o interruptor. Enquanto a coisa aquecia, dirigiu-se a geladeira e tirou gelo. Foi uma das poucas vezes na sua vida em que se congratulou pelo progresso tecnológico; graças a Deus já não era necessário lutar com um tabuleiro de gelo. Largou dois cubos no copo.

Voltou à gaveta do pão, inspirou profundamente, e apertou o botão.
Houve um zumbido quase imperceptível e depois silêncio.

Desligou e encaminhou-se para a sala. Newton ainda estava na poltrona. Por um instante Bryce não conseguiu afastar os olhos da saída de ar.




Abanou a cabeça, esforçando-se para se libertar da ansiedade. Seria ridículo trair-se depois da coisa feita. E, percebeu-o então, sentia-se como um traidor — um homem que acabara de trair seu amigo.
Newton disse: —Suponho que iremos por via aérea.
Não conseguiu dominar-se.

— Como Ícaro? — Perguntou perversamente.

Newton riu.

— Como Dédalo, espero. Não aprecio afogamentos.

Era a vez de Bryce ficar de pé. Não queria sentar-se, para não ser obrigado a encarar Newton.

— Vamos usar seu avião?

— Sim. Pensei em irmos na manhã de Natal. Isto é, se o Brinnarde conseguir arranjar os detalhes com o aeroporto de Chicago, nesse dia. Suspeito que vai haver engarrafamento.
Bryce estava acabando a bebida — muito mais depressa do que era costume.

— Não necessariamente por ser Natal — comentou e prosseguiu sem saber exatamente o que devia perguntar: — A Betty Jo vai conosco?

Newton hesitou.

— Não. Só nós dois.

Sentiu-se um pouco irracional, como dias atrás, conversado à beira do lago.

— Ela não vai sentir sua falta?

Claro que não tinha que meter-se naquilo. Não pareceu ofendido com a pergunta.

— Acho que também vou sentir a falta dela, Dr. Bryce. — Olhou para a lareira durante um tempo mais longo, em silêncio. — Pode preparar-se para partir na manhã de Natal, às oito? Mandarei Brinnarde buscá-lo... se preferir.



— Ótimo! — Com a cabeça baixa, tomou o resto do scotch. — Quanto tempo ficaremos lá?

— Pelo menos, dois ou três dias.

Newton levantou-se, começou outra vez a vestir o casaco. Bryce sentiu uma onda de alívio; sentia que não se ia conter por muito tempo. O filme...

— Suponho que vai precisar de meia dúzia de camisas novas. As despesas são por minha conta.

— Por que não? — Bryce riu com um certo nervosismo. — O senhor é milionário.

— Exatamente — respondeu Newton puxando o fecho do casaco.

Bryce ainda se encontrava sentado, a olhar para cima, vendo como Newton, bronzeado e muito magro, se lhe sobrepunha como uma estátua. — Exatamente. Sou milionário.

Depois foi embora, caminhando pela neve...

Com os dedos a tremer de excitação, e cheio de vergonha deles por estarem tão descontrolados, Bryce tirou a grelhar, puxou a câmera para fora, pousou-a no sofá depois de sacar o filme. Depois vestiu o sobretudo, meteu o filme cuidadosamente no bolso, e dirigiu-se para o laboratório, debaixo da neve que caía em grande quantidade. Esforçava-se para não correr.

O laboratório estava deserto — graças a Deus mandara seus assistentes mais cedo para casa!
Foi direito à sala de revelação e projeção. Não se deteve para ligar os aquecedores, embora o laboratório se tivesse tornado muito frio. Manteve o sobretudo.

Quando tirou o negativo da lata de revelador gasoso, as mãos tremiam-lhe tanto que foi quase impossível colocar o filme na máquina. Então, quando ligou o interruptor do projetor e olhou para a tela na parede mais afastada, as mãos deixaram de lhe tremer e a respiração ficou suspensa. Olhou durante um minuto seguido. Então, abruptamente, virou-se, saiu da sala de projeção e entrou no laboratório — a sala enorme, comprida, vazia, e muito gelada.
Sozinho no laboratório, começou a rir alto.

— Sim — disse, e a palavra ricocheteou a partir da parede mais distante da sala, ricocheteou um pouco ocamente, por sobre as prateleiras de tubos de ensaios e bicos de Bunsen, dos vidros, cadinhos e estufas e máquinas para executar testes. —Sim. Sim. Sim, senhor Rumplestiltskin.




Antes de retirar o filme do projetor olhou outra vez para a imagem na parede.

A imagem, emoldurada pelo contorno débil de uma poltrona, de uma estrutura óssea impossível, de um impossível corpo sem externo, sem cóccix, sem costelas flutuantes, com vértebras cervicais cartilaginosas, omoplatas em ponta, minúsculas, segundas e terceiras costelas afuseladas.

Meu Deus, pensou. Vénus, Urano, Júpiter, Netuno ou Marte. Meu Deus!...




Viu em baixo, ao canto do filme, as palavras pequenas, quase indistintas, que formavam W. E. Corp.
E o significado, seu conhecido havia mais de um ano, atingiu-o de novo, com uma apavorante série de implicações: Associação Mundial de Empresas.

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 10)



Às vezes parecia que ia enlouquecer, da mesma maneira que acontecia aos homens; e contudo era impossível, do ponto de vista teórico, que um antheano enlouquecesse.

Não entendia o que estava acontecendo, ou o que lhe tinha acontecido.

Haviam preparado-o para a extrema dificuldade da sua tarefa e fora escolhido por causa do vigor físico e da capacidade de adaptação. Soubera desde o inicio que podia falhar, que toda a situação era um risco enorme, um plano extravagante feito por um povo que podia não descobrir mais nenhum lugar para onde ir; e estava preparado para o fracasso.

Mas não para o que lhe sucedera, na realidade.

O plano em si correra muito bem — as grandes quantias em dinheiro obtidas, a construção da nave começada quase sem nenhuma dificuldade, a incapacidade de todos (embora acreditasse que muitos haviam desconfiado e ainda desconfiavam) em o reconhecerem pelo que era — e as possibilidades de sucesso achavam-se então muito próximas.

E ele, o antheano, um ser superior de uma raça superior, estava perdendo o controle, tornando-se um degenerado, um bêbado, uma criatura perdida e estúpida, um renegado e, talvez, um traidor de si mesmo.

Por vezes censurava Betty Jo pela sua própria fraqueza perante aquele mundo.

Como se tornara humano, para racionalizar daquela maneira!... Censurava-a por ele próprio ter se tornado um nativo obcecado por culpas vagas e dúvidas ainda mais vagas. Ela ensinara-lhe a beber gim; e lhe mostrara uma faceta intensa, comodista, hedonista e irracional da humanidade, da qual não se apercebera durante os seus quinze anos de estudos por meio de televisão.

Mostrara para ele uma atitude modorrenta, bêbada, que os antheanos não haviam conhecido, com que nem haviam sonhado, na sua terrível eternidade e sabedoria délficas.

Sentia-se como um homem que tivesse estado rodeado por animais relativamente amigáveis, frívolos e bastante inteligentes, e houvesse descoberto que os seus conceitos e relações eram mais complexos que o seu treino poderia tê-lo feito suspeitar. Tal homem poderia descobrir que, num ou mais aspectos da ponderação dos prós e contras e do julgamento, acessíveis a uma inteligência elevada, os animais que o rodeavam, ao exibirem as suas pretensões individuais, ao comerem a sua própria imundície, poderiam ser mais felizes e mais espertos que ele.

Ou seria apenas o caso de que um homem rodeado por animais, durante uma temporada suficientemente longa, se tomasse mais animalesco do que devia? Mas a analogia era injusta, não era correta.

Ele partilhava com os humanos uma ancestralidade que estava mais próxima do relacionamento vulgar numa família de mamíferos e criaturas cobertas de pelo, em geral. Tanto ele como os seres humanos eram criaturas articuladas, bastante racionais, capazes de intuição e das emoções negligentemente designadas como amor, piedade e respeito.
E como descobrira, capazes de se embriagarem.

Os antheanos conheciam o álcool, pelo menos um pouco, embora os açúcares e as gorduras desempenhassem um papel muito menos importante na ecologia do seu mundo. Havia um pequeno fruto carnudo e doce da qual se extraía uma espécie de vinho leve; álcool puro podia, é claro, ser sintetizado com muita facilidade, e, embora fosse bastante raro, um antheano embriagava-se uma vez por outra. Mas a embriaguez crônica não existia. Nunca, na sua vida, ouvira falar de alguém em Anthea, que bebesse como ele bebia na Terra — todos os dias, naquela altura, e com regularidade.
Sua embriaguez não era exatamente igual à dos humanos; ou, pelo menos, pensava que não. Nunca desejava ficar inconsciente, ou feliz, de forma a provocar confusão, ou bancar deus; apenas queria obter alívio e não tinha a certeza do quê. Jamais sofria de ressacas, fosse qual fosse a quantidade que bebesse. Estava sóbrio a maior parte do tempo.

Depois de deixar Bryce aos cuidados de Brinnarde, que o levaria para casa, entrou na sala de estar, jamais utilizada, e ficou de pé, em silêncio, desfrutando a frescura e a tranquila obscuridade. Um dos gatos desceu indolentemente de um sofá, espreguiçou-se, aproximou-se dele e começou a esfregar-se contra a sua perna e a ronronar. Olhou-o com afeto: aprendera a adorar gatos. Tinham uma faceta que o fazia lembrar Anthea, embora não existisse lá qualquer animal que se parecesse com eles. Mas também não pareciam pertencer à este mundo.
Betty Jo saiu da cozinha, com um avental. Olhou para ele sem falar, com os olhos meigos, e então disse:

— Tommy?

— Sim?!

— Tommy, o Mr. Famsworth ligou-te de Nova Iorque. Duas vezes.

Ele encolheu os ombros.

— Ele liga quase todos os dias, não?

— Sim, liga, Tommy. — Sorriu suavemente. — De qualquer forma, disse que era importante e que devia telefonar-lhe.

Ele bem sabia que Famsworth lutava com problemas, mas estes teriam que esperar um pouco. Não se sentia com coragem para tratar deles, naquela altura. Olhou para o relógio, era quase cinco horas.

— Peça a Brinnarde para me preparar uma chamada para as oito — ordenou. — Se o Oliver ligar outra vez diz que estou ocupado e que lhe falo às oito.

— Tudo bem. Quer que me sente com você? Quer conversar?

Ele viu a sua expressão, o olhar cheio de esperança que sabia significar a sua dependência dele, tão grande como a sua em relação à companhia dela. Que companheiros estranhos se haviam tornado! Todavia, embora soubesse que Betty Jo estava tão só como ele próprio, e que partilhava a sua sensação de alienação, sentia-se incapaz de lhe garantir o direito de se sentar junto dele em silêncio. Sorriu tão amavelmente quando pôde.

— Desculpa Betty Jo. Tenho de estar sozinho um pouco.

Quão difícil aquele sorriso tão praticado tinha se tornado!

— Claro, Tommy. Tenho de voltar para a cozinha. — À porta, virou-se. — Me avise quando quiser jantar.

— Ótimo.

Dirigiu-se para a escada e decidiu utilizar a cadeirinha-elevador, a qual não se servira durante semanas. Começava a sentir-se cansado. Quando se sentou, um dos gatos subiu-lhe ao colo. Com um estremecimento, que não lhe era habitual, expulsou-o. O gato caiu ao chão sem ruído, sacudiu-se e afastou-se, impávido, não se dignando a olhar para trás. Pensou, ao observar o gato, se era a única espécie inteligente daquele mundo. E então, com um sorriso oblíquo, pensou que talvez fosse.

Uma vez, havia mais de um ano, mencionara a Famsworth que estava se interessando por música. Era apenas parte da verdade, visto que as melodias e o sistema tonal da música humana sempre lhe tinham sido um pouco desagradáveis. Contudo, interessara-se pela música do ponto de vista histórico, já que sentia um interesse desse tipo por quase todos os aspectos da arte e do folclore humanos — um interesse originado em anos de estudos através da televisão, e continuado ao longo de compridas noites de leitura, ali, na Terra.

Famsworth, após aquele reparo casual, presenteara-o com um sistema de alto-falantes octafónicos profissional — estando vários dos seus componentes baseados em patentes de W. E. Corporation — e com os necessários amplificadores, fontes de som e tudo o mais. Três indivíduos, com o nível de ‘mestre em ciências’ no campo da engenharia eletrônica, tinham montado os componentes no estúdio de Newton. Era um aborrecimento, mas não queria magoar os sentimentos de Famsworth. Haviam inserido todos os controles num painel de latão — Newton teria preferido algo menos científico que latão.

Famsworth também o presenteara com quinhentas gravações, todas feitas nas bolinhas de aço de que a W. E. Corporation detinha as patentes e graças às quais a empresa havia ganho vinte milhões de dólares, no mínimo. Apertava-se um botão e uma bola do tamanho de uma ervilha, caía no lugar certo do cartucho. A sua estrutura molecular era então percorrida por um analisador automático, minúsculo, de movimento vagaroso, e os desenhos eram convertidos nos sons das orquestras, bandas, guitarristas ou vozes.

Newton quase nunca punha música a tocar. Por insistência de Famsworth tentara ouvir algumas sinfonias e quartetos, mas, para ele, não significavam quase nada. Era estranho que esse significado lhe parecesse tão obscuro.

Algumas das outras artes, embora mal representadas e patrocinadas pela televisão de domingo (a mais chata e pretensiosa de todas), tinham conseguido tocá-lo bastante — a escultura e a pintura, em especial.

Talvez visse como os humanos, mas não pudesse ouvir como eles.

Quando chegou ao quarto, meditando sobre gatos e homens resolveu, impulsivamente, escutar música. Pôs uma sinfonia de Haydn que Famsworth lhe dissera que devia ouvir. Um momento depois o som surgia, combativo e nítido e, para si, sem quaisquer consequências lógicas nem estéticas. Era como um americano a ouvir música chinesa.

Preparou gim e bebeu-o tentando seguir os sons. Preparava-se para se instalar no sofá quando, de repente, bateram à porta. Assustado, largou o copo que se quebrou a seus pés.

Pela primeira vez na vida berrou: — Quem é?

Até que ponto se havia tomado humano?

A voz de Betty Jo, com um ar assustado, disse:

— É o Mr. Famsworth outra vez, Tommy. Ele teima em falar contigo. Diz que precisa te encontrar...

A voz de Newton era já mais baixa, mas ainda zangada.

— Diga que não! Não verei ninguém senão amanhã. Não vou falar com ninguém!
Houve um silêncio. Ele olhou para o copo estilhaçado, depois deu um pontapé nos cacos maiores, para debaixo do sofá. Então, Betty Jo respondeu:

— Está bem, Tommy. Eu digo. — Fez uma pausa. — Agora descansa, Tommy. Está ouvindo?

— Tudo bem — replicou. — Vou descansar.

Ouviu os passos dela a se afastarem da porta. Foi até à estante. Não havia mais nenhum copo. Ia começar a chamar por Betty Jo, mas, em vez disso, pegou na garrafa, quase cheia, tirou-lhe a tampa e bebeu no gargalo. Desligou o som — quem poderia esperar que ele compreendesse aquela música? — e depois pôs para tocar uma coletânea de música folclórica, velhas canções, música gullah(*). Pelo menos, havia algo nas palavras daquelas canções que conseguia entender.

Uma voz rica e fatigada brotou dos alto-falantes:

“Sempre que vou à casa de Miss Lulu, o cachorro velho me morde! / Sempre que vou a casa de Miss Lulu, o buldogue me morde...”

Sorriu pensativamente; as palavras pareciam tocar em algo do seu íntimo.

Instalou-se no sofá com a garrafa. Começou a pensar em Nathan Bryce e na conversa daquela tarde.

Desde o primeiro encontro desconfiou que Bryce suspeitava dele; só o fato de insistir na entrevista era uma espécie de desconfiança, embora não intencional. Tinha se assegurado, por meio de investigações dispendiosas, que Bryce não representava ninguém, a não ser ele próprio — que não trabalhava para o FBI, como fizeram pelo menos, dois operários da construção. Mas se Bryce havia suspeitado dele e dos seus objetivos — como Famsworth, com certeza, e várias outras pessoas — por que saiu de casa, da proteção das quatro paredes, para cultivar uma intimidade com aquele homem?

E por que deixou escapar palpites a cerca de si mesmo, falando da guerra e da Segunda Vinda, designando-se por Rumplestiltskin — aquele duendezinho malvado; o estranho, cujo objetivo final era roubar o filho da princesa? A única maneira de derrotar Rumplestiltskin era descobrir sua identidade, dizer o seu nome.

“As vezes sinto-me como uma criança sem mãe / as vezes sinto-me como uma criança sem mãe / Glória, Aleluia!”

E por que Rumplestiltskin teria dado à princesa uma chance de fugir ao combinado? Por que lhe teria concedido um adiamento de três dias para que descobrisse o seu nome? Fora apenas excesso de confiança — quem iria imaginar, ou adivinhar, um nome como aquele? — ou ele querería ser descoberto, apanhado, privado do objetivo de sua magia?

Thomas Jerome Newton, cuja magia e cujas decepções eram maiores que as de qualquer feiticeiro ou duende, em qualquer conto de fadas, por que queria, naquele momento, ser descoberto, apanhado?

“Este homem aparece a rondar-me a porta / Diz que não gosta de mim / Vem. fica de pé à minha porta / Mas diz que não gosta de mim.”

Por que eu desejaria ser descoberto? Pensava Newton com a garrafa na mão.
Olhou para a etiqueta da garrafa, sentindo-se muito tonto. De repente, a gravação acabou. Houve uma pausa, enquanto outra bola ocupava o seu lugar. Ele engoliu um trago longo. Então, dos alto-falantes, uma orquestra explodiu.

Levantou-se fatigadamente e pestanejou. Sentia-se muito fraco, parecia que nunca tinha se sentido tão fraco desde aquele dia, só e doente, num campo por cultivar, no mês de Novembro.
Encaminhou-se para o painel e fez parar a música. Depois ligou o televisor — quem sabe um faroeste...

A grande imagem da garça, na parede mais afastada, começou a desvanecer-se. À medida que sumia, era substituída pela cabeça de um homem bonito, com aquele olhar falsamente grave que é cultivado pelos políticos, curandeiros e evangelistas. Os lábios moviam-se sem ruído, enquanto os olhos estavam fixos. Newton aumentou o volume.

—... dos Estados Unidos como nação livre e independente, devemos preparar-nos para um grande esforço, como homens que somos, com o mundo livre a apoiar-nos, e encarar os desafios, as esperanças e os receios do planeta. Devemos lembrar-nos de que os Estados Unidos, ao contrário do que dizem aqueles que usam fardas, não é uma potência de segunda classe. Devemos nos lembrar da liberdade que conquistamos, devemos...



De súbito, Newton apercebeu-se de que quem falava era o Presidente dos Estados Unidos e que utilizava a linguagem bombástica dos desesperançados. Apertou um botão no controle remoto. Apareceu uma cena passada na cama. Algumas piadas sugestivas e velhas, ditas por um homem e uma mulher, ambos em pijamas. Outra vez o botão, com esperança de encontrar um faroeste. Gostava deles. Mas o que apareceu foi um filme de propaganda, pago pelo governo, a cerca das virtudes dos americanos. Viu imagens de igrejas brancas da Nova Inglaterra, de trabalhadores rurais — havia sempre um negro sorridente — e de bordos. Nos últimos tempos, filmes como aquele apareciam cada vez mais; e, como tantas revistas populares, cada vez mais chauvinistas, mais confinados do que nunca na fantástica mentira de que a América era uma nação temente a Deus, de cidades eficientes, de agricultores saudáveis, de médicos bondosos, de donas de casa empenhadas e de milionários filantrópicos.



— Meu Deus! Meu Deus! Mentirosos! Loucos!...

Voltou ao botão e surgiu-lhe uma cena passada num clube noturno, com música suave. Ficou observando o movimento dos corpos na pista de dança, homens e as mulheres vestidos como pavões, abraçando-se, ao som das melodias.
Acabou com a garrafa de gim e contemplou as mãos que a seguravam, detendo-se nas unhas artificiais, que luziam como moedas translúcidas, à luz bruxuleante do televisor. Assim se manteve vários minutos, como se reparasse nelas pela primeira vez.

A seguir levantou-se e caminhou, tremendo, até um armário. De uma prateleira tirou uma caixa.

No interior da porta do armário havia um espelho de corpo inteiro. Momentaneamente olhou para a sua estrutura alta, muito magra. Depois voltou para o sofá e pousou a caixa na mesa de café, de tampo de mármore, na sua frente. Dela tirou uma garrafinha de plástico. Na mesa havia um cinzeiro em forma de taça, vazio, de porcelana chinesa; presente de Famsworth. Deitou no cinzeiro o líquido da garrafa, pousou-a, e mergulhou as pontas de ambas as mãos no recipiente, como se fosse a tigela de uma manicure. Manteve-as aí, por um minuto, tirando-as depois e batendo as palmas, com força.

As unhas caíram no mármore da mesa.

Suas mãos tinham extremidades macias, pontas flexíveis mas um pouco inflamadas.

Do televisor vinha um som de jazz, insistente.
Foi até à porta da sala e trancou-a. Regressou até junto da caixa, que estava em cima da mesa, e tirou dela uma bola que se assemelhava a algodão, ensopando a bola no líquido. As mãos tremiam. Sabia que estava mais bêbado que nunca.

Aproximou-se do espelho e segurou a bola ensopada contra cada uma das orelhas, até os lóbulos sintéticos caírem. Desabotoando a camisa tirou os mamilos falsos e os falsos pelos do peito, da mesma maneira. Os pelos e os mamilos estavam agarrados a uma folha fina, porosa, e tudo aquilo saiu ao mesmo tempo. Repousou-os na mesa de café. Voltando ao espelho começou a falar na sua própria língua, primeiro baixo e depois alto, recitando um poema que escrevera na sua juventude. Os sons não lhe brotavam da língua com perfeição. Encontrava-se demasiado embriagado ou perdera a capacidade de pronunciar os sons sibilantes dos antheanos. Depois, respirando com dificuldade, sacou da caixa um instrumentozinho parecido com uma pinça e, parado em frente do espelho, retirou, com cuidado, a membrana fina, de plástico colorido, de cada um dos olhos.

Ainda lutando por recitar o poema, pestanejou diante de sua imagem; olhos cujas íris abram na vertical, como a dos gatos.

E começou a chorar. Não soluçava, mas as lágrimas corriam-lhe dos olhos — lágrimas exatamente iguais às dos humanos —, escorregando-lhe pelas faces estreitas. Chorava de desespero.
Falou depois em voz alta, para si mesmo, em inglês.

— Quem é você? De onde veio?

Era o seu corpo que contemplava no espelho; mas não conseguia reconhecê-lo como seu.
Era estranho e assustador.

Foi buscar outra garrafa. A música parara. Um anunciante dizia:

“... sala de baile do Seelbacch Hotel, Louisville, viva Worldcolor, filmes e reveladores para todos, a melhor fotografia...”

Newton não olhou para a tela; estava abrindo a garrafa. Uma voz feminina começou a falar.

“Para guardar as recordações das próximas férias, seus filhos, a festa de Ação de Graças e Natal, não há nada mais encantador que as imagens Worldcolor, cheias de vida...”

Thomas Jerome Newton, jazia bebendo, com a garrafa de gim aberta, os dedos, desprovidos de unhas, a tremer, os olhos semelhantes aos dos gatos, vidrados...




(*) Música própria de um grupo de negros que vivem nas costas da Carolina do Sul e da Geórgia e, em especial, nas ilhas oceânicas próximas. São designados por gullahs. (N. da T.)