domingo, 19 de abril de 2015

INTERSTELLAR - Greg Keyes (Parte 2)


Donald tinha boas intenções, mas Cooper ainda estava sentindo a pontada do seu comentário quando as crianças subiram na velha caminhonete, limpando a camada noturna de poeira dos assentos.
A velha caminhonete mostrava quase tanto ferrugem quanto a pintura azul original, e amassados e riscos suficientes para provar que havia sido usada qual um burro de carga.

Quando abriu a porta do lado do motorista, tomou outro gole de café, olhando para a nuvem negra subindo ao longe, tentando avaliar, estimar o quão longe estava. Que campos estavam por lá? Que direção estava se movendo?

– Tempestade de poeira? – Perguntou em voz alta.

Donald balançou a cabeça. – Nelson incendiou toda a sua plantação. 

– A praga? – Perguntou Cooper.

– Dizem que é a última colheita de quiabo da história. – Donald respondeu.

Cooper observou a fumaça negra, perguntando se era certo, sabendo no fundo de suas tripas que provavelmente era. Para que servia quiabo, de qualquer maneira? Viscoso, a não quando frito. Usado para engrossar sopa. Um luxo, não um produto básico. Uma perda insignificante.

– Deveria ter plantado milho como o resto de nós – disse ao entrar no caminhão. Nelson sempre tivera mais coragem do que juízo.

– Seja agradável com Miss Hanley – aconselhou Donald. – Ela é solteira.

– O que é que isso quer dizer? – Cooper disse ríspido, sabendo muito bem onde o velho queria chegar.


Claro, ele tinha perdido essas coisas de escola, pois vivia ocupado. Era pai viúvo. Seria tão ruim assim pedir a Donald para lhe dar uma folga? Não era como se Cooper não passasse tempo suficiente com as crianças. Tempo de qualidade ai menos. Mas isso não significava saltar a cada vez que a escola exigia-o. Tinha mais coisas para fazer.

– Repovoar o planeta. Faça a sua parte, meu rapaz. 

Ele parecia ficar mais intrometido a cada dia. Cooper não tinha certeza de onde a conversa iria, mas pensou o que o velho homem tinha ultrapassado o limite, e agora estava em meio aos seus interesses particulares.

– Comece cuidando de sua vida – Cooper disparou de volta. Mas ele sabia que o velho homem era bem intencionado.


***

Momentos depois estavam rodando pela estrada de terra. Cooper agarrava o volante com uma mão e o café com a outra. Murph imprensada entre ele e Tom.

– Ok – disse a ela quando a primeira marcha começou a escapar. Pisou na embreagem. – Me dê uma segunda.


Murph lutou com a segunda marcha enquanto Cooper tomou outro gole de café e deixou o pedal solto.

– Agora a terceira – disse depois de alguns segundos, enquanto o caminhão ganhava velocidade.

Ele empurrou de novo o pedal, e Murph atacou a alavanca. Ouviu o grito da transmissão em sinal de protesto, quando ela não conseguiu engatar a marcha.

– Engate, idiota – Tom reclamou.

– Cale-se, Tom! – Cooper repreendeu seu filho.

Sua reprimenda foi marcada por um grande estrondo, seguido de um rolar abrupto.

– O que você fez, Murph? – Tom perguntou.

– Ela não fez nada – disse Cooper. – Perdemos um pneu, é tudo.

– Lei de Murphy – disse Tom, demasiado alegre. E fez um ‘ups’ para ela.

– Cale-se, Tom – disse Murph e lançou-lhe um olhar fulminante.

Cooper encostou o carro, empurrou a porta, saiu, olhou para o pneu, e viu que estava chato.
Virou-se para Tom. – Pegue o estepe.

– Esse é o estepe. – Tom respondeu abrindo a porta para juntar-se ao pai.

– Tudo bem – disse Cooper. – Pegue o kit remendo.

– Como é que eu vou consertá-lo aqui fora? – Tom protestou.

– Dê um jeito! Eu nem sempre vou estar aqui para ajudá-lo.


Então deu a volta pela parte de trás e para o outro lado do veículo. Encontrou Murph ainda um pouco brava.

– Por que você e mamãe me nomearam de algo ruim?  – Ela perguntou.

– Nós não fizemos.

– Lei de Murphy?

Cooper estudou a expressão séria de sua filha. Lembrou-se do homem e da mulher, ambos jovens ainda, que tinham escolhido seu nome.


– Lei de Murphy não significa que uma coisa ruim vai acontecer – explicou ele gentilmente, realmente querendo que ela entendesse. – Significa que o que pode acontecer... acontecerá. E não vimos mal nisso. 

Murph franziu a testa, e no início pensou que ela estava prestes a protestar, mas então percebeu que ela realmente não estava prestando atenção nele. Seus olhos estavam muito longe, como se ela tivesse de repente sintonizado em uma frequência que ele não podia captar.

– O quê foi?

Então ele ouviu também, Um longo rugido baixo, subindo de tom devido ao efeito Doppler.
Alguma coisa estava vindo na direção deles, não, voando na direção deles, e ele tinha certeza de que reconhecia aquele barulho. Tinha ouvido-o por muito tempo, e foi um pouco difícil acreditar nos seus ouvidos.

Agarrou Murph e empurrou-a de volta para seu assento no caminhão, assim que o objeto passou sobre as cabeças, com a forma de um míssil estreito, asas afiladas e longas projetando-se em ângulos retos.

– Vamos!– Gritou. Saltou para o caminhão, buscando o computador portátil e a antena conectada a ele. Passou-o para Murph, então gritou para Tom, que tinha o macaco a mão e estava olhando para o pneu furado.

– Entre!

– E o pneu? – Perguntou o rapaz.

Mas não havia tempo para se preocupar com isso agora.

 ***


O drone, é claro, não se incomodava em seguir estradas, por este motivo, nem eles.
Tão rápido quanto o caminhão podia andar, estavam rasgando um milharal, achatando os talos sob três pneus e um aro cambaleante.


Cooper tentou não pensar sobre o quanto da plantação ele estava destruindo, mas pelo menos era o seu próprio campo. Ele não teria um grupo de linchamento irritado aparecendo na sua casa em poucas horas. E sabia que tal coisa era justificável já que o milho era precioso, sim, mas você não vê um drone daqueles todos os dias. Ou mês. Ou... ano.

Cooper tentava ver através do milharal, sobre ele, mas entre os altos talos e o capô do caminhão havia apenas uma estreita janela de visibilidade.

Do outro lado da cabine, amassado contra a porta do lado do passageiro, Murph ligava o laptop. Tom estava no meio desta vez, e Cooper mudava ele mesmo as marchas.

– Não! – Tom gritou, apontando para a direita. Cooper abaixou a cabeça e olhou para cima.

E lá estava ele, a poucos metros acima do milho.

O que diabos está fazendo, pensou. O que está procurando? Cooper girou o volante, derrapando em direção da coisa que parecia um pequeno avião sem uma cabine.

Em seguida, ele reconheceu a silhueta.

– Drones de vigilância da força aérea indiana – disse Cooper. – Os painéis solares poderiam abastecer uma fazenda inteira.

Olhou para Tom – Assuma o volante!

Depois de uma exibição rápida de contorcionismo mútuo, Tom estava no banco do motorista e Cooper estava no meio com o laptop. Entregou para Murph a antena.

– Mantenha-a apontada diretamente para ele.

Em seguida foi trabalhar no computador. Depois de um momento a tela começou a encher-se com as linhas de fluxo, quase líquido do script Devanagari. Mas o sucesso deu lugar ao desapontamento. O sinal caíra.

– Mais rápido, Tom – disse ele. – Estou perdendo-o. 

Tom tomou o comando com empenho, pisou o pedal do velho caminhão e ziguezagueando através do milho com desenvoltura. O sinal retornou, e Cooper continuou trabalhando na criptografia. O caminhão saiu em terreno aberto.

– Pai? – disse Tom.

– Quase consegui – disse a seu filho, os olhos fixos na tela. – Não pare agora!

O drone desapareceu de vista, no horizonte. Eles deviam estar perto do vale seguinte.

– Pai... – disse Tom, sua voz soando um pouco mais urgente.

Cooper olhou para cima, bem a tempo de ver que eles estavam velozmente em direção à borda do reservatório. Seus olhos se arregalaram, e seu coração caiu aos seus sapatos.

– Tom! – Conseguiu gritar.

O menino pisou no freio. Rochas batendo no fundo do caminhão.
Derraparam até parar em uma nuvem de poeira, perigosamente perto da queda.
Respirando pesadamente, Cooper olhou por um momento, pensando em como era bom que não tinha os quatro pneus, porque teriam ido mais rápido...
Olhou para Tom. Seu filho apenas deu de ombros.

– Você me disse para não parar.

Coração ainda atropelado, Cooper esticou-se sobre a filha e abriu a porta do passageiro. Murph pulou para fora do caminhão e ele seguiu-a, laptop na mão. Então olhou para Murph para se certificar de que ela estava bem. Ela ainda estava com a antena apontada além da borda.


– Nós o perdemos – lamentou ela.

Apesar de sua decepção, o sorriso de Cooper a fez sentir-se melhor.

– Não, não perdemos – disse quando o drone veio voando de volta por cima deles. Ele continuou pilotando-o com o touch-pad do laptop, fazendo-o voar em um arco amplo.

As crianças assistiram a máquina, uma maravilha de outra era, mergulhar e ajeitar suas asas ao seu comando. Tom parecia levemente animado.

– Quer ver um giro? – Perguntou a Murph.


Ele não teve que perguntar duas vezes. Guiou os dedos para o outro lado do pad, seu rosto se iluminou com espanto e alegria. Foi maravilhoso de ver, e ele queria prolongar o momento para sempre. Mas eles tinham o que fazer.

– Vamos pousá-lo ao lado do reservatório.

Encontrando um local plano e largo, Cooper trouxe o avião para o chão. Em seguida, eles se dirigiram lenta e vacilante, por todo o terreno acidentado, pedras e cascalho raspando contra a roda que ostentava agora fragmentos esfarrapados do pneu arruinado.

O drone era quase tão longo quanto o caminhão, mas fino e tubular.


Que beleza, pensou Cooper esfregando a palma da mão sobre a superfície lisa e escura, imaginando as mãos inteligentes que haviam construído-o, sentindo quase como uma criança novamente.
Não há muito tempo, a humanidade tinha feito coisas maravilhosas, coisas bonitas.

– Há quanto tempo você acha que ele está lá em cima? – Perguntou Tom.

– O controle da missão em Deli caiu na mesma época que o nosso, há dez anos – respondeu Cooper.

– Dez anos? – Tom disse incrédulo. – Por que ele desceu tão baixo? 

– O sol finalmente cozinhou seu cérebro – Cooper especulou. – Ou desceu à procura de alguma coisa. 

– O quê? – Murph queria saber.

– Algum tipo de sinal– respondeu. Balançou a cabeça. – Quem sabe?

Cooper explorou a superfície da máquina até que encontrou o painel de acesso. Uma brisa leve misturava o perfume de milho queimado com os odores da decadência do lago. Como tudo o mais, o reservatório tinha conhecido melhores dias.
Ele arrombou o painel e olhou para dentro da caixa que abrigava o cérebro-robô.

– O que você vai fazer com isso? – Perguntou Murph.

– Darei alguma função social. Como mover uma colheitadeira.

Ele e Tom seriam capazes de carregá-lo no caminhão.

– Nós não poderíamos simplesmente deixá-lo ir?  – Ela perguntou. – Não está machucando ninguém. 

Cooper olhou com carinho para a filha. Ela tinha um bom coração, sensibilidade e generosidade. Uma parte dele doía só de pensar em tomar esta coisa que tinha percorrido livremente os céus por mais de uma década, talvez o último de sua espécie, uma das últimas máquinas voadoras, escravizando-a a um campo de milho. Mas ao contrário de Murph, ele sabia que tais sentimentos tinham que vir depois da necessidade.

– Essa coisa tem de se adaptar – explicou. – Assim como todos nós.

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