domingo, 24 de abril de 2016
O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 04)
As pessoas desciam e subiam as ruas em multidões mutáveis, com passo apressado, vestidas com roupas primaveris. Por todo o lado parecia haver mulheres jovens em saltos altos (podia ouvi-los ainda que dentro do carro), muitas delas trajadas de forma resplandecente, sobrenaturalmente alegres, à luz intensa da manhã.
Apreciando o espetáculo oferecido pelas pessoas e pelas cores — embora os olhos, ainda demasiado sensíveis sofressem — disse ao motorista para descer devagar a Park Avenue.
Era um dia encantador, sem dúvida um dos primeiros dias deslumbrantes da sua segunda primavera na Terra. Recostou-se sorrindo, contra os estofados do carro, e o automóvel a uma velocidade diminuta e constante. Arthur, o motorista, era muito competente; fora escolhido pela sua suavidade, pela sua habilidade em manter uma velocidade uniforme, em evitar mudanças repentinas.
Viraram para a Quinta, no meio da cidade, parando em frente ao velho edifício de escritórios de Famsworth, que ostentava em um dos lados da porta, uma placa em latão onde se lia, em letras com um relevo discreto:
‘World Enterprises Corporation’.
Newton regulou os óculos escuros de forma a darem mais sombra, protegendo-o contra a luz da rua, e deslizou para fora da limusine. Parou no passeio, esticando-se, sentindo o sol no rosto — tépido para as outras pessoas, mas para ele agradavelmente quente.
Arthur meteu a cabeça para fora da janela e perguntou:
— Devo esperar, Sr. Newton?
Ele esticou-se de novo, desfrutando a luz solar, a atmosfera. Não tinha saído do apartamento durante mais de um mês.
— Não — respondeu. — Depois eu te chamo, Arthur. Mas duvido que vá precisar de você antes da tarde; pode ir ao cinema se quiser.
Entrou, caminhou pelo corredor principal, passando pela fileira de elevadores e dirigindo-se ao fundo, onde um contínuo o esperava, rigidamente aprumado, com uma farda impecável.
Newton sorriu; calculava a torrente de ordens que deviam ter sido dadas na véspera, depois de ter telefonado e dito que viria na manhã seguinte. Não aparecera nos escritórios durante três meses. Era raro abandonar o seu apartamento. O rapaz do elevador brindou-o com um ’Bom dia, Sr. Newton’, ensaiado e nervoso. Sorriu-lhe e entrou.
O elevador conduziu-o devagar e com grande suavidade, até o sétimo andar, que, antes disso, tinha abrigado o gabinete de advocacia de Famsworth. Este o esperava, quando saiu.
O advogado vestia-se como um potentado: terno de seda cinzenta, uma joia vermelha e brilhante a relampejar num dedo gorducho e muitíssimo manicurado.
— Está com um aspecto ótimo, Sr. Newton — disse ele agarrando-lhe a mão estendida com um extremo cuidado; por ser bom observador tinha reparado na reação de desagrado de Newton se lhe tocavam de qualquer maneira mais brusca.
— Obrigado, Oliver. Tenho me sentido bem de verdade.
Famsworth conduziu-o por um corredor, passou por escritórios, até um conjunto de salas com a placa, W. E. Corp. Ultrapassaram um aglomerado de secretárias, que se mantiveram num respeitoso silêncio, à sua aproximação, e penetraram no gabinete do anfitrião, que tinha na porta letrinhas de latão: O. V. Famsworth, Presidente.
O interior do gabinete encontrava-se mobiliado como dantes, com diferentes peças rococó, dominadas pela enorme mesa Caffieri, grotescamente ornamentada. A sala, como sempre, transbordava de música — uma peça para violino daquela vez; desagradável aos ouvidos de Newton, mas nada disse.
Um empregado trouxe-lhes chá, enquanto tagarelavam um pouco.
Newton aprendera a gostar de chá, embora tivesse que bebê-lo morno — e depois, começaram a falar de negócios; o processo nos tribunais, a disposição e remodelação das diretorias, das empresas holding, das concessões, alvarás e das retribuições por uso de marcas e patentes, do financiamento de novas fábricas, da venda de artigos, de mercados, peças e da flutuação dos juros dos títulos de dívida pública nos setenta e três artigos de consumo que produziam, desde antenas de televisão, transistores, filmes fotográficos e detectores de radiações — bem como das três centenas de patentes, mais ou menos, que tinham cedido, desde o processo de refinar petróleo até a um substituto inócuo da pólvora usado em brinquedos.
Newton estava consciente do espanto de Famsworth para com ele — mais até do que era costume —, com a sua percepção própria daquelas coisas, e disse para consigo que seria prudente meter uns erros de números e pormenores. Todavia, era divertido e excitante — ainda que sabendo o orgulho vão e banal que advém do prazer — utilizar a sua mente antheana no tratamento daqueles assuntos. Era como se uma daquelas pessoas — pensava sempre nelas como ‘estas pessoas’, por muito que tivesse passado a apreciá-las e a admirá-las — se descobrisse a lidar com um grupo de chimpanzés muito alerta e cheio de recursos. Gostava imenso delas, e, por causa da sua vaidade humana, era incapaz de resistir ao prazer fácil de deixar funcionar a sua superioridade mental obtendo, em troca, o seu aturdido espanto.
Todavia, divertido como era, tinha de lembrar-se de que aquela gente era mais perigosa que os chimpanzés — e haviam passado milhares de anos desde que um deles vira um antheano sem disfarce.
Continuaram a falar até outra empregada lhes trazer o almoço — sanduíches de frango às fatias e uma garrafa de vinho do Reno, para Famsworth; bolinhas de farinha de aveia e um copo de água, para Newton. A farinha de aveia, ele descobrira, era um dos alimentos mais digeríveis para as características peculiares do seu organismo e a comia com frequência.
Prosseguiram a conversa por um bom tempo, a cerca do problema de financiamento das várias empresas espalhadas pelo mundo inteiro. Newton acabara, felizmente, por começar a divertir-se com aquela faceta do jogo. Fora obrigado a aprender — havia muitas coisas a cerca daquela sociedade e daquele planeta que não se podiam assimilar ao assistir televisão — e descobrira que tinha um pendor natural para aquilo, com certeza um atavismo herdado dos seus remotos antepassados, nos velhos e prósperos tempos que haviam constituído a glória da primitiva cultura antheana. Isso fora na altura em que aquela Terra se encontrava na sua segunda Era Glaciar — um tempo de guerras, antes das fontes de poder antheanas terem exaurido toda a água do planeta.
Newton achava graça quando brincava com os números financeiros, embora esse poder o excitasse pouco, e embora tivesse entrado no jogo com as ‘cartas na manga’ que dez mil anos de eletrônica, química e ótica antheanas lhe tinham fornecido.
Mas, nunca, nem por um só momento, se esquecia do motivo por que viera para a Terra.
Andava sempre consigo, inevitável, como o incômodo indistinto que permanecia nos seus músculos sempre cansados, como a impassível estranheza, por muito familiar que se lhe tivesse tomado, daquele enorme e variado planeta.
Gostava de Famsworth.
Gostava de poucos humanos que conhecera. Não conseguia dar-se bem com nenhuma mulher, por temê-las, por razões que ele próprio não reconhecia. Às vezes sentia-se triste, por conta das razões de segurança que tornavam demasiado arriscado conhecer melhor essas pessoas.
Famsworth, hedonista como era, mostrava-se um homem astuto, um participante cheio de luxúria no jogo do dinheiro; um indivíduo que necessitava ser vigiado, uma vez ou outra; um tipo possivelmente perigoso, mas daqueles cuja mente possuía muitas facetas requintadas e sutis.
Não obtivera o seu enorme rendimento — um rendimento que Newton lhe havia triplicado — só com base na sua reputação.
Quando se tomou suficientemente claro para Famsworth o que queria que se fizesse, recostou-se na poltrona, descansando, e disse depois:
— Oliver, agora que o dinheiro está começando a... acumular, há uma coisa nova em que quero fazer. Já lhe falei antes de um projeto de pesquisa...
Famsworth não pareceu surpreendido. Mas, tinha esperado que algo mais importante fosse o motivo da sua visita.
— Sim, Sr. Newton...
Sorriu, com gentileza.
— Será um tipo diferente de empreendimento, e temo que seja caro. Calculo que vai ter um certo trabalho a alinhavá-lo, a parte financeira, de qualquer modo. — Olhou pela janela, para a fila discreta de lojas cinzentas da Quinta e para as árvores. — Não será lucrativo, e penso que o melhor seria criar uma fundação destinada à pesquisa.
— Uma fundação de pesquisa?
O advogado fez beicinho.
— Sim. — Voltou-se para Famsworth. — Sim, penso em constituir uma em Kentucky, com quase todo o capital que possamos juntar. Cerca de quarenta milhões de dólares, julgo, se conseguirmos que os bancos nos ajudem.
As sobrancelhas de Famsworth subiram.
— Quarenta milhões? O senhor não vale metade disso, Sr. Newton. Dentro de mais seis meses talvez...
— Sim, eu sei. Mas acho que vou vender os meus direitos da Worldcolor à Eastman Kodak. É claro que pode ficar com as suas ações se quiser. A Eastman vai utilizá-las de uma maneira inteligente, julgo. Estão preparados para pagar bem por eles — com a condição de não comercializar um filme colorido, competitivo, durante cinco anos.
Famsworth estava vermelho.
— Isso não corresponde a vender uma renda vitalícia sobre o Tesouro dos EUA?
— Suponho que sim. Mas preciso de capital; e você bem sabe que há o perigo de um processo anti-monopólio, inerente as patentes. E a Kodak tem melhor acesso aos mercados mundiais do que nós. Vamos evitar grandes problemas.
Famsworth abanou a cabeça, já quase conformado.
— Se eu tivesse direitos autorais sobre a Bíblia não ia vendê-los à qualquer um. Mas creio que sabe o que está fazendo.
Na Universidade Pendley em Iowa, Nathan Bryce foi até o escritório do diretor de departamento. Tratava-se do professor Canutti, designado como consultor-coordenador de departamento, que naquela época era o titulo da maioria dos diretores de departamento desde o tempo das grandes mudanças de ‘etiqueta’ que haviam transformado vendedores em agentes, porteiro em zelador.
A tendência levara um tempo para chegar às universidades. Mas chegara e não havia mais secretários, apenas recepcionistas e adjuntos, nem patrões, apenas coordenadores.
O professor Canutti, cheirava a fumo de cachimbo, acolheu-o com um sorriso falso, fez-lhe um aceno de cabeça, através da sala, na direção de uma poltrona de plástico, cor de alfazema, e disse:
— Prazer em vê-lo, Nate.
Bryce retraiu-se, quase visivelmente, ao ouvir o ‘Nate’ e, olhando para o relógio, como se estivesse com pressa, respondeu:
— Tem uma coisa que me chamou a atenção, professor Canutti.
Bryce não tinha a menor pressa, exceto em acabar com a entrevista; depois dos exames terem acabado não haveria nada a fazer durante uma semana.
Canutti sorriu com simpatia e, momentaneamente, Bryce amaldiçoou-se por ter procurado-o, antes de tudo, com aquele idiota que tinha a mania do golfe. Mas Canutti podia saber algo que lhe fosse útil; pelo menos como químico não era qualquer um.
Bryce sacou uma caixa do bolso e colocou-a na mesa do outro.
— Já viu este novo filme?
Canutti pegou-o com a mão macia, sem um só calo, e contemplou-o, confundido.
— Oh, Worldcolor! Sim, já o usei, Nate. — Largou-o, com unia espécie de determinação. — É um filme bom demais! Auto-revelante.
— Sabe como funciona?
— Não, Nate. Não posso dizer que saiba. Como qualquer outro filme, posso somente especular. Seria apenas um pouco mais... sofisticado.
Sorriu por causa do próprio gracejo.
— Não exatamente. — Bryce estendeu-se e pegou na caixa, pesando-a na mão, e observando a cara branda de Canutti. — Fiz uns testes e fiquei bastante espantado. Sabe que os melhores filmes coloridos passam por três emulsões separadas, cada uma delas fundamental. Bom, este não passou por nenhuma, absolutamente.
Canutti levantou as sobrancelhas.
‘É bom mesmo que se sinta surpreso, idiota’, pensou Bryce.
— Parece ser impossível. Onde reside a fotosensibilidade?
— Aparentemente na base. E parece que se deve a sais de bário, só Deus sabe como. Sais de bário cristalinos, dispersos ao acaso. E — respirou fundo — o revelador é gasoso; está numa bolsinha por debaixo da tampa da lata. Tentei descobrir o que lá se encontrava e só tenho a certeza de que é nitrato de potássio, um peróxido qualquer e uma porcaria que, Deus me ajude, atua como o cobalto. E é tudo ligeiramente radioativo, o que poderia explicar qualquer coisa, se bem que eu não perceba o quê.
Canutti, por uma questão de delicadeza, concedeu-lhe a longa pausa que a sua pequena conferência merecia. Depois, replicou:
— Parece extraordinário, Nate. Onde é que o fabricam?
— Uma fábrica, em Kentucky. Mas a sociedade comercial é em Nova Iorque, até onde consegui chegar. Não há ações na bolsa.
Canutti, ao escutar, adotou uma expressão séria; provavelmente, pensou Bryce, a que reservaria para ocasiões solenes, como ser admitido num novo country Club.
— Compreendo. Bom, é confuso, não é?
Confuso? Que diabo queria dizer? Claro que era. Era impossível!
— Sim, é por isso que lhe queria pedir uma coisa. — Hesitou por instantes, relutando em pedir um favor àquele sujeitinho pomposo. — Gostava de investigar isso, descobrir como diabo funciona. Pensei que poderia usar um dos grandes laboratórios de pesquisa lá de baixo, do porão, pelo menos durante o tempo entre os semestres. E talvez pudesse arranjar um aluno-assistente, se houvesse um por aí à mão.
Canutti recostara-se mais na sua poltrona, revestida a plástico, quando ele ia a meio da frase, como se Bryce o tivesse fisicamente empurrado para baixo contra as almofadas de espuma macias.
— Os laboratórios estão todos a ser usados, Nate — retorquiu. — Sabe que temos, neste momento, mais projetos industriais e militares do que aqueles que conseguimos dar conta. Por que não escreve à empresa que fabrica o filme e lhes faz perguntas?
Ele tentou manter uma voz despreocupada.
— Já escrevi. Não respondem. Ninguém sabe nada acerca deles. Nada na imprensa — nem sequer na American Photochemistry. — Parou um minuto. — Escute, só preciso de um laboratório, professor Canutti... abro mão do assistente.
— Walter. Walter Canutti. Mas os laboratórios estão cheios, Nate. O coordenador Johnson me daria um puxão de orelhas se eu...
— Escute... Walter... É pesquisa básica. O Johnson passa a vida a fazer discursos acerca da pesquisa básica, não é? A espinha dorsal da ciência. A única coisa que parece que servimos é descobrir processos mais baratos para fabricar inseticidas e a aperfeiçoar bombas de gás.
Canutti franziu a testa, com o corpo gorducho ainda afundado na espuma do estofo.
— Não temos o hábito de falar assim dos nossos projetos militares, Nate. A nossa pesquisa tática aplicada é...
— Muito bem. Muito bem. — Obrigou-se a baixar a voz, tentando fazer com que parecesse o tom normal. — Matar pessoas é básico, creio. Também faz parte da vida da nação. Mas este filme...
Canutti corou devido ao sarcasmo.
— Olhe Nate, o que você quer é perder tempo com um processo comercial. E ainda por cima, com um que funciona muito bem. Por que esquentar com isso? O filme é um pouco fora do comum? Melhor ainda.
— Meu Deus! — exclamou Bryce. — Este filme é mais do que fora do comum. Vê-se a olho nu. Você é um químico, melhor do que eu. Não consegue perceber as técnicas que a coisa implica? Deus meu! Sais de bário e um revelador gasoso!
Lembrou-se, de repente, do rolo de filme que ainda tinha na mão e largou-o como se fosse uma cobra, ou uma relíquia sagrada. — É como se fôssemos... como se fôssemos homens das cavernas, a catar pulgas debaixo dos braços e um de nós descobrisse... pacote de estalinhos para crianças... — e então, de súbito, aquilo o atingiu como um soco recebido no peito e, fazendo uma breve pausa no discurso, pensou: ‘Santíssimo nome de Deus... os estalinhos’ . Pense na tradição, na tradição técnica que entra na fabricação de uma tirinha de papel com uma bolsinha de pólvora, de forma a podermos ouvir o pum, pum, pum! Ou como se se desse a um antigo romano um relógio de pulso e ele soubesse o que era um relógio de sol...
Não acabou a comparação, pensando outra vez nos estalinhos, em como tinha feito aquele barulhão, em como não tinham cheirado a pólvora, nem fumaça.
Canutti sorriu, friamente:
— Bom, Nate, você é muito eloquente. Mas não me deixaria arrebatar por causa de uma coisa inventada por qualquer equipe de pesquisa revolucionária. — Tentou parecer cheio de humor, para disfarçar o desacordo. — Duvido de que tenhamos sido visitados por homens do futuro. Pelo menos, para nos venderem filme fotográfico.
Bryce levantou-se, fechando a caixa na mão, com força e falou baixinho.
— Equipe de pesquisa revolucionária, o cacete! A maneira como este filme não utiliza uma só das técnicas de química resultantes de mais de uma centena de anos de desenvolvimento no campo da fotografia, este processo pode ser extraterrestre. Ou então, há um gênio oculto em Kentucky, que nos vai vender um moto-contínuo, na semana que vem.
Virou-se com brusquidão, farto, e começou a andar para a porta.
Como uma mãe chamando o filho que se vai embora de malcriação, Canutti disse:
— Eu não falaria demasiado em extraterrestres, Nate. E claro que entendo o que você sugere...
— E claro que entende — disse Bryce saindo.
Foi direto para casa, no trem da tarde, e prestou atenção se via — ou melhor, se ouvia — crianças com estalinhos.
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