domingo, 15 de maio de 2016
O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 05)
Cinco minutos depois de deixar o aeroporto percebeu que cometera um erro grave. Não devia ter tentado descer tanto ao sul, no verão, por mais necessário que fosse.
Deveria ter mandado Famsworth, ou outra pessoa qualquer, para comprar propriedades e tratar das disposições legais.
A temperatura passava dos trinta graus Celsius e, como era fisicamente incapaz de transpirar, visto que seu organismo estava preparado para um calor que rondasse os cinco graus, estava maldisposto, quase até à inconsciência, no banco de trás da limusine que o transportava na direção do subúrbio de Louisville, oprimindo seu corpo, ainda sensível à gravidade, contra as duras almofadas.
Em mais de dois anos na Terra, e devido aos dez de condicionamento físico por que passara antes de abandonar Anthea, era capaz de suportar a dor e de se manter — graças à força de vontade — consciente. Conseguiu sair do veículo, entrar no átrio do hotel, daí passar para o elevador, aliviado por este ser lento e se deslocar com suavidade, e chegar ao seu quarto no terceiro andar, onde tombou na cama.
Um pouco mais tarde, fez um esforço para ir até ao aparelho de ar condicionado e o mudar para ‘muito frio’. Depois tornou a cair na cama. Era um bom condicionador de ar; baseava-se num grupo de patentes cujos direitos concedera à empresa que o fabricava. Dentro de pouco tempo o quarto ficou com o grau de conforto de que necessitava, mas deixou o aparelho ligado, grato por a sua contribuição, naquele ramo da ciência, ter feito com que aquelas horríveis caixinhas trabalhassem sem ruído.
Era meio-dia, ligou para o serviço de quarto e conseguiu que lhe enviassem uma garrafa de Chablis e um pouco de queijo.
Só recentemente começara a beber vinho, satisfeito por lhe provocar o mesmo efeito que aos homens da Terra. O vinho era bom, se bem que o queijo se parecesse um pouco com borracha. Ligou o televisor, que também funcionava graças às patentes da W. E. Corp., e instalou-se numa poltrona, resolvido a divertir- se, se não pudesse fazer mais nada naquela tarde tão quente.
Já tinha passado mais de um ano desde que vira televisão sem limite de tempo, e parecia-lhe muito estranho, ali, naquele hotel, de uma modernidade vulgar — tão parecida com os apartamentos nos quais viviam os detetives privados que se via na tevê, com a cadeira de repouso, a estante jamais usada, os quadros abstratos e o bar individual com tampo de plástico, ali, em Louisville, Kentucky.
A observar os pequenos humanos, homens e mulheres, a moverem-se na tevê, tal como os vira durante tantos anos no seu lar, em Anthea. Pensou, então, naquela época passada, enquanto bebia o vinho fresco, mordiscava o queijo — estranhos alimentos —, enquanto a música de fundo de uma história de amor invadia a sala e as vozes fracamente escutadas, que vinham do pequeno alto-falante, lhe agrediam o ouvido sensível, de outro mundo, como os sons guturais e confusos, alienígenas que eram, na sua essência, tão diferentes do ronronar da sua própria língua, embora esta, épocas atrás, se tivesse desenvolvido a partir de outra.
Permitiu-se recordar, pela primeira vez em meses, da conversa macia dos velhos amigos antheanos, nos alimentos suaves e estaladiços que comera durante toda a sua vida em casa com a mulher e filhos.
Talvez fosse o frio da sala, acalmando-o da dolorosa viagem, talvez o álcool, ainda novidade para a sua circulação, que o faziam tombar num estado de espírito tão semelhante à nostalgia humana, sentimental, egocêntrico e amargo. De súbito desejou escutar o som da sua língua, ver as cores claras do solo antheano, cheirar o odor acre do deserto, ouvir os sons da música de Anthea, c contemplar as paredes finas, tipo gaze, dos seus edifícios; a poeira das suas cidades. E desejou a esposa, com a sombria sexualidade corporal própria da sua raça. E, de repente, olhando de novo a sala, com as discretas paredes cinzentas e a mobília banal, sentiu-se nauseado, cansado daquele local barato e alienígena, daquela barulhenta, gutural, desenraizada e sensual cultura, daquele agregado de macacos espertos, ávidos, autocentrados, vulgares, indiferentes, enquanto a sua frívola civilização desabava, desabava, como a Ponte de Londres, como todas as pontes.
Começou a sentir o que já sentira tantas vezes antes: uma lassidão pesada, um enfado do mundo, uma profunda fadiga em relação àquele planeta transbordante de afazeres, destruidor, e a todos os seus ruídos arrepiantes. Sentiu-se como se pudesse abandonar aquilo tudo, sentiu que era uma loucura, uma loucura impossível, ter iniciado a sua missão, mais de vinte anos atrás. Olhou à sua volta, aborrecidamente. O que estava fazendo ali naquele mundo, o terceiro a contar do Sol, a cem milhões de quilômetros de casa?
Levantou-se, desligou o televisor, e recostou-se na poltrona, até quase se deitar, ainda a beber o vinho, sentindo, então, o efeito do álcool, mas sem se importar com isso.
Assistira televisão americana, inglesa e russa durante quinze anos. Seus colegas tinham arranjado uma enorme filmoteca de emissões televisivas gravadas, mais ou menos de quarenta anos atrás, em que a América tinha começado a ter emissões contínuas, já haviam decifrado a maior parte das sutilezas da língua, baseando-se nas transmissões radiofônicas em FM. Estudara todos os dias, aprendendo a língua, os costumes, a história e a geografia, tudo o que havia à disposição, até ter decorado, por meio de uma forma exaustiva, o significado de palavras obscuras como ‘amarelo’, ‘Waterloo’ e ‘República Democrática’ — não tendo a última expressão qualquer contrapartida em nenhuma região de Anthea. E, enquanto trabalhava e estudava e fazia exercícios físicos infindáveis, enquanto agonizava com uma antecipação de anos, eles tinham deliberado, decidido, que a viagem devia sequer ser tentada.
Havia tão pouca energia, além das baterias solares no deserto!
Ia exigir tanto combustível para enviar apenas um antheano através do abismo vazio do espaço, talvez para a morte, talvez para ser recebido num mundo já morto, num mundo que já podia estar — como grande parte de Anthea — coberto de cascalho atômico e resíduos queimados de uma fúria simiesca. Mas tinham-lhe dito, por fim, que a viagem devia ser tentada, numa das velhíssimas naves que ainda permaneciam debaixo do solo. Foi informado, um dia antes da jornada, que os planos estavam delineados, que a nave estaria pronta quando os planetas se encontrassem na posição ideal para a travessia. Não conseguia dominar o tremor ao contar aquilo à mulher...
Aguardou no quarto do hotel, sem se mexer da poltrona, até as cinco horas. Depois levantou, ligou para o escritório da empresa de compra e venda de propriedades e disse que o podiam esperar até às cinco e meia. Abandonou o quarto, deixando a garrafa em cima do bar, meio vazia.
Esperava que a temperatura externa tivesse refrescado bastante, mas enganou-se.
Escolhera aquele hotel por ficar a três quarteirões de distância do escritório que ia visitar, onde iria iniciar-se a enorme transação que já planejara. Conseguiu caminhar até lá; mas o ar quente, obstinado, pesado, como uma almofada, o fez ficar tonto, confuso e fraco. Por breves momentos pensou que teria de regressar ao hotel e pedir aos indivíduos que viessem encontra-lo, mas continuou.
E depois, quando deparou com o edifício, descobriu uma coisa que o assustou: o escritório que pretendia visitar situava- se no décimo nono andar. Não esperara que houvessem edifícios altos em Kentucky, não tinha previsto.
Subir a escada estava fora de questão. E não sabia nada acerca dos elevadores. Se subisse demasiado rápido, ou balançasse muito, poderia ser desastroso para seu corpo já castigado pela gravidade. Mas os elevadores pareciam novos e bem fabricados e, pelo menos, o prédio possuía ar condicionado. Entrou num deles, onde só se encontrava o ascensorista, um homem idoso, de ar tranquilo, com uma farda manchada de tabaco.
Receberam mais uma passageira, uma mulher bonita, roliça, que veio correndo ofegante, no último momento. Então o ascensorista fechou a porta de metal e Newton disse: — Décimo nono, por favor.
A mulher disse: — Décimo segundo — e o velho, indolentemente, de certo modo desdenhosamente, apoiou a mão na alavanca de controle manual.
Newton percebeu logo, apavorado, que não se tratava de um elevador moderno, mas antigo, restaurado. Mas essa percepção surgiu com um momento de atraso porque, antes que pudesse protestar, sentiu o estômago revirar, os músculos enrijecerem de dor, enquanto o elevador se sacudia, hesitava, balançava de novo e, depois, disparava para cima, duplicando, por instantes, o seu peso já triplicado.
Então, tudo pareceu acontecer de repente.
Viu a mulher a olhar para ele e percebeu que seu nariz sangrava, manchando a parte da frente da camisa. Ao mesmo tempo ouviu — ou sentiu, no corpo — um estalar, e as pernas cederam e caiu, grotescamente contorcido, enquanto perdia a consciência, o espírito mergulhava numa escuridão tão profunda como o vazio que o separava do seu lar...
Já estivera duas vezes sem sentidos antes, uma durante o treino no centrifugador no seu planeta, e outra durante a aceleração da decolagem de sua nave. De ambas tinha se recuperado rapidamente, despertando cheio de confusão e dor. Também daquela vez acordou para o sofrimento de um corpo maltratado e para a temerosa confusão de não saber onde estava.
Encontrava-se deitado de costas em qualquer coisa macia e mole e havia luzes fortes batendo-lhe nos olhos. Semicerrou-os e depois se retraiu.
No outro lado da sala, uma mulher estava de pé, junto a uma mesa, segurando um telefone na mão.
A mulher do elevador.
Ela hesitou, vendo-o acordado, e não parecia saber o que fazer ao telefone, segurando-o molemente na mão. Sorriu-lhe, com um ar vago.
— O senhor sente-se bem?
A voz era semelhante à de alguém... fraca e suave.
— Creio que sim. Não sei...
As pernas estavam estendidas. Receava tentar mexê-las. O sangue da camisa já estava frio. Não podia ter estado muito tempo inconsciente. — Creio que machuquei as pernas...
Ela olhou-o, com um ar sério, sacudindo a cabeça.
— Uma delas ficou dobrada para cima como um daqueles arames antigos com que se prendiam as mercadorias.
Newton continuava a observá-la, sem saber o que dizer, tentando pensar no que deveria fazer. Não podia ir para um hospital; haveria um exame, radiografias...
— Faz cinco minutos que estou tentando arranjar-lhe um médico. — A voz era rouca e ela tinha um ar assustado. — Já liguei para três, mas não encontro nenhum disponível.
Ele pestanejou, numa tentativa de pensar com clareza.
— Não. Não! Não chame...
— Não chamar um médico? Mas tem que ser examinado.
Parecia cheia de dúvidas, preocupada.
— Não.
Experimentou dizer mais qualquer coisa, mas, subitamente, foi invadido pela náusea e, mal sabendo o que fazia, deu consigo a vomitar para um dos lados do sofá, as pernas doíam a cada espasmo. Mas as luzes eram demasiado fortes, queimavam os olhos, mesmo através das pálpebras fechadas — as pálpebras finas, translúcidas. Levantou um braço, para tapar.
De certo modo seus vômitos pareceram acalmá-la. Talvez fosse a humanidade reconhecível no ato. A voz dela era mais calma.
— Posso ajudar? Há alguma coisa que possa fazer para te ajudar? Posso arranjar-lhe uma bebida...
— Não. Não quero...
Subitamente, a voz da mulher pareceu mais normal, como se estivesse estado à beira de histeria e acabasse de se libertar da situação. Virou-se para evitar as luzes.
— Pode... pode deixar-me sozinho, apenas? Ficarei melhor... se puder descansar.
Ela riu baixinho.
— Não sei como. Muita gente por perto. O ascensorista deu-me a chave do escritório.
Tinha de fazer qualquer coisa em relação às dores, ou não permaneceria consciente por muito tempo.
— Escute Tenho uma chave do hotel no bolso, do Brown Hotel. Fica a três quarteirões daqui, ao descer a rua. Você...
— Eu sei onde é o Brown Hotel.
— Oh. Isso é ótimo. Pode pegar na chave e ir buscar uma pasta preta, no armário do quarto? E trazer para mim? Tenho... remédios, lá dentro. Por favor. Posso pagar...
— Não estou preocupada com isso. — Ele virou-se e abriu os olhos para vê-la por momentos. A cara larga estava carrancuda, as sobrancelhas franzidas como quem medita profundamente. Depois desatou a rir. — Não sei se me deixariam entrar no Brown Hotel... nem em um dos quartos, como se fosse meu.
— Por que não? — Sentia-se como se fosse outra vez desmaiar, não tardava. — Por que é que não pode?
— O senhor não entende muito, não? Tem a aparência de nunca se ter se preocupado com isso. Eu só tenho este vestido e, mesmo assim, é velho. Podem não aprová-lo.
Ele sentiu-se outra vez sem forças, o corpo como se flutuasse. Pestanejando, forçou-se a aguentar, tentando não ligar para a fraqueza e a dor.
— Na minha carteira. Tire algumas notas de vinte dólares. Dê o dinheiro aos ascensoristas. — A sala girava, as luzes enfraqueciam, pareciam deslocar-se numa sombria procissão, perante os seus olhos.
— Por favor...
— Pai do Céu! — exclamou ela. — Eu podia fugir com o dinheiro.
— Não faça isso! — pediu ele. — Por favor, ajude-me. Sou rico. Posso...
— O senhor aguenta aí. Eu trago os remédios, nem que tenha que comprar o hotel. Tem só que ter calma.
Ouviu-a fechar a porta enquanto desmaiava...
Pareceu-lhe ter passado apenas um segundo até ela regressar à sala, e abrir a pasta em cima da mesa.
A seguir, depois de tomar os analgésicos e os comprimidos que iam ajudar a perna a sarar, o ascensorista apareceu com um homem que disse ser o superintendente do prédio. Newton teve que assegurar a eles de que não pretendia processar ninguém, que, realmente, se sentia ótimo e que tudo correria bem. Não, não precisava de uma ambulância. Sim, assinaria um documento para livrar o edifício de responsabilidades. Agora, poderiam lhe arranjar um táxi?
Quase desmaiou de novo, várias vezes, durante aquela frenética discussão, e quando acabou, desmaiou mesmo.
Acordou num táxi, com a mulher ao lado. Ela sacudia-o com cuidado.
— Para onde quer ir? Onde é a sua casa?
— Eu... não sei.
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