sábado, 16 de abril de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 03)



Numa tarde primaveril, demasiado quente para a época, o professor Nathan Bryce ao subir a escada que o levaria ao seu apartamento, no quarto andar, deparou-se com estalinhos deixados no patamar do terceiro. Lembrando-se do grande barulho que haviam provocado na véspera, nos corredores, pegou-os com a intenção de jogar depois no lixo, quando chegasse a casa.
No seu tempo de moleque, os estalinhos eram invariavelmente vermelhos, um tom peculiar de ferrugem, o que sempre lhe parecera a cor ideal. Mas ao que parecia, os atuais eram feitos da cor amarela, tal como faziam geladeiras cor-de-rosa e copos de alumínio cor de gema de ovo, bem como outras incongruentes maravilhas.
Continuou a subir a escada, transpirando, pensando em sutilezas químicas que faziam parte até da fabricação dos copos amarelos de alumínio.
Pensou que os homens das cavernas, que bebiam com as mãos calosas em taça, tinham se virado muito bem sem toda a complexa sapiência da engenharia química — sem o conhecimento do comportamento molecular e dos processos comerciais — que ele, Nathan Bryce, era pago para saber e publicar documentos de pesquisa.
Quando chegou ao apartamento já se esquecera dos estalinhos.
Havia tantas coisas em que pensar!

Há seis semanas, em um dos lados da enorme e riscada mesa de carvalho, via-se uma pilha desarrumada de escritos estudantis, horríveis de se ver. Junto da mesa encontrava-se um aquecedor a lenha, antigo, pintado de cinza, um anacronismo naqueles dias em que imperava o aquecimento elétrico, e sobre o seu venerável trabalho em ferro forjado, amontoava-se uma ameaçadora quantidade de blocos de notas dos alunos do laboratório.
A pilha era tão alta que o topo do aquecedor se encontrava quase totalmente encoberto por ela.
Na extremidade da mesa, que não se achava atravancada, via-se a máquina de escrever, como outra deusa mundana — uma deusa rústica, trivial, demasiado exigente — ostentando ainda a página número dezessete de um documento acerca dos efeitos das radiações ionizantes sobre resinas poliestirenos, um documento não solicitado, desonroso e que, se calhar ficaria para sempre por terminar.


O olhar de Bryce percorreu as folhas de papel espalhadas como uma cidade desmoronada, bombardeada, constituída por casas de papelão, as soluções infindáveis, assustadoramente claras de equações de redução-oxidação, e de preparados industriais de ácidos sem graça alguma; e o também fastidioso, fastidiosíssimo, documento acerca das resinas poliestirenos. Contemplou aquelas coisas, de mãos nos bolsos do casaco, durante uns trinta segundos, com um desânimo sombrio. Depois, como se fizesse calor na sala, tirou o casaco e arremessou-o para cima de um sofá-cama de brocado dourado, meteu a mão por baixo da camisa para coçar a barriga, encaminhou-se para a cozinha e começou a preparar café.
A lava-louças estava atulhada de retortas, provetas e frasquinhos sujos, ao lado dos pratos do café da manhã, um deles ainda com gema de ovo.
Olhando para aquela confusão impensável sentiu vontade de gritar de desespero; mas não gritou.
Ficou apenas contemplando, que durou um minuto inteiro, e depois, com calma, disse bem alto:

— Bryce, tu é um tremendo bagunceiro!

Conseguiu encontrar uma proveta, mais ou menos limpa, passou água e encheu-a com café em pó e água quente, tirada da torneira, mexendo tudo com um termômetro do laboratório e bebeu, olhando por cima da borda a gravura grande e cara de Brueghel (A Queda de Icaro) que estava pendurada na parede, coroando o fogão branco. Uma coisa linda. Antigamente aquele quadro lhe provocara admiração, mas naquela altura, se habituara a ele. O prazer que lhe dava era apenas intelectual, apreciava a cor, as formas, tal como um diletante as apreciaria. Aquilo era mau sinal, uma sensação que tinha muito a ver com a desgraçada pilha de papéis na sala ao lado.
Ao engolir o resto do café, citou numa voz suave ritualista, sem qualquer expressão ou sentimento especial, as linhas do poema de Auden (*), acerca da pintura:

—...o delicado navegante que deve ter visto algo de espantoso, um rapaz a cair do céu, tinha um local aonde ir e continuou, calmamente, a navegar.


Pousou a proveta sem a enxaguar, em cima do fogão, depois enrolou as mangas da camisa, tirou a gravata, e começou a encher a lava-louça com água quente, vendo a espuma do detergente a borbulhar por causa da pressão da torneira, como uma coisa viva e multicelular, o olho de um enorme inseto albino. Então começou a meter a louça na espuma, na água quente que estava por debaixo. Procurou a esponja e iniciou a tarefa. Tinha de começar de qualquer jeito...
Quatro horas mais tarde já resolvera a distribuição de notas de final do ano, de licenciados, e meteu a mão no bolso à procura de um elástico para prendê-los. Foi assim que achou os estalinhos. Tirou do bolso, segurou-os na palma da mão e sorriu. Não estalava um havia trinta anos — desde que, em determinado momento da sua antiga e borbulhenta inocência, passara dos estalinhos, de A Child’s Garden of Verses (1) para a coleção gigante e oficial de Chem-Craft (2) que lhe fora oferecida pelo avô como uma estocada direta do destino.

De repente começou a desejar ali naquele apartamento vazio que gostaria de estourá-los um a um.
E lembrou-se então, de como uma vez, Deus sabe quantos anos atrás, tinha pensado no que aconteceria se se pusesse fogo numa caixa inteira de estalinhos — uma ideia deliciosa e radical. Mas nunca o tentara. Bom, não haveria momento melhor.
Levantou-se sorrindo com ar cansado e entrou na cozinha. Colocou o punhado de estalinhos em cima de uma folha de cobre, pôs esta num tripé, pingou em cima um pouco de álcool de uma lamparina, », arrancou uma lasca de madeira de uma prateleira, acendeu-a com o isqueiro e depois, cautelosamente, aproximou-a dos estalinhos. Ficou admirado e agradado com o resultado; em vez de uma série irregular de prrrrs, que esperava, e de fumaça, obteve uma ótima confusão de pums sonoros e satisfatórios.

Foi estranho, mas do resíduo negro não se partiu nenhuma fumaça. Curvou-se e cheirou a pequena massa preta que ficara. Não tinha o menor odor. Estranho.
Meu Deus, pensou, como as coisas acontecem de um momento para o outro! Qualquer outro químico desaparafusado já tinha descoberto um substituto para a pólvora.
Pensou, por momentos, no que poderia ser e encolheu os ombros. Talvez tropeçasse com aquilo noutro momento. Mas perdera o cheiro a pólvora — um cheiro agradável, pungente.
Olhou para o relógio. Sete e meia. Lá fora o lusco-fusco primaveril. Já passava da hora de jantar. Foi ao banheiro, lavou as mãos e o rosto, sacudindo a cabeça diante de seu reflexo desfigurado no espelho. Depois tirou o casaco do sofá-cama, vestiu-o e saiu.
Enquanto descia a escada perscrutava os degraus, meio distraído, em busca de outros estalinhos, mas não encontrou nada.

Depois de um hambúrguer com café resolveu ir ao cinema. Tivera um bom dia de trabalho — quatro horas no laboratório, três de aula, quatro a ler aqueles documentos idiotas.
Esperava topar com um filme de ficção científica — um que tivesse dinossauros ressuscitados a rondar por Manhattan, ou invasores insetívoros vindos de Marte para destruir a porcaria do mundo todo (que alívio!). Mas não havia nada desse gênero e, portanto, preparou-se para um musical, comprando pipocas e uma barra de chocolate, antes de entrar no escuro e procurar uma cadeira isolada nos fundos. Começou a comer pipocas, tentando expulsar da boca o gosto da mostarda barata do hambúrguer. Estava sendo exibido um programa de noticias e assistiu entorpecidamente, como sempre aquelas coisas lhe causavam. Rebeliões na África. Há quantos anos isto ocorria na África? Desde o princípio dos anos 60? Armas químicas tinham sido utilizadas contra uns infelizes. Bryce contorceu-se no seu assento, envergonhado da profissão que tinha. Anos atrás, como estudante licenciado e muitíssimo promissor, tinha trabalhado durante uns tempos, num projeto de uma bomba. Como o pobre e velho Oppenheimer, havia sentido sérias dúvidas. O noticiário passou a mostrar imagens de plataformas para lançamento de mísseis ao longo do rio Congo, e por fim a moda de Nova Iorque, mostrando vestidos soltos, com o peito descoberto para as mulheres, e calças com abas para os homens. Mas Bryce não conseguia afastar da cabeça os africanos; Recordava-se dos seios flácidos das mulheres, do inevitável lenço vermelho, que usavam na cabeça e que as fotos a cor revelavam. Na sua época os descendentes daquelas pessoas usavam fardas e iam para as universidades, bebiam martinis e fabricavam as suas próprias bombas de hidrogênio.

O musical de cores vulgares, berrantes, tentava apagar a lembrança do noticiário. Chamava-se The Shari Leslie Story e era aborrecido e barulhento.

Bryce tentou descontrair-se com a cor, mas descobriu que não era capaz e tinha de se contentar, à primeira vista, com as longas pernas das moças do filme. Entretinha, mas era o tipo de entretenimento que podia ser incômodo, bem como absurdo, para um viúvo de meia-idade.
Remexendo-se confrontado com uma sensualidade espalhafatosa, desviou a atenção para a fotografia e pela primeira vez, reparou que a qualidade técnica era espantosa. O contorno e o pormenor, embora expandidos num enorme telão, pareciam tão definidos como numa cópia de contato. Pestanejou e limpou os óculos ao lenço. Não havia dúvida, as imagens eram uma perfeição! Sabia um pouco de fotoquímica; aquela qualidade nem sequer parecia possível, em relação ao que conhecia dos processos de transferência de matrizes e de filmes a cores por emulsão tripla.
Deparou consigo mesmo a assobiar baixinho, de espanto, e assistiu ao resto do filme cheio de interesse. Quando de lá saiu, parou um pouco para ler a publicidade do filme, para ver o que diria a cerca do processo ligado à cor. Não foi nada difícil; um pomposo anúncio dizia:

“Nova Sensação Colorida Worldcolor”.

Contudo, nada mais havia, excetuando um pequeno R metido num círculo que queria dizer ‘marca registrada’ e, numa letra infinitesimal abaixo: registrado pela W. E. Corp.
Pensou em conjuntos de palavras que se encaixassem nas iniciais, mas com aquela extravagância aberrante, característica da sua mente, por vezes as únicas coisas que lhe ocorreram eram um absurdo. Encolheu os ombros e, com as mãos enfiadas nos bolsos, começou a descer a rua, à noite, na direção do coração de néon da cidadezinha universitária.
Inquieto e um pouco irritado, não desejando ir logo para casa e olhar de novo para aquela papelada, procurou uma daquelas cervejarias frequentadas por estudantes. Descobriu uma, um barzinho chamado Henry’s, com pretensões artísticas que ostentava nas canecas alemãs de cerveja. Já ali estivera antes, mas de manhã. Era um dos seus poucos vícios. Descobrira, oito anos atrás, quando sua esposa morreu (num hospital, com um tumor que pesava três quilos, no estômago), que havia certas coisas a dizer a favor das bebidas matutinas. Descobrira por mero acaso, que podia ser uma coisa ótima numa manhã lúgubre, uma manhã em que o tempo se mostra da cor de uma ostra, que estar bêbado transformava a melancolia num prazer. Mas era uma coisa para ser experimentada com a precisão de um químico; podia trazer aborrecimentos se feito de forma errada. Existiam penhascos anônimos de onde talvez se caísse, e nos dias cinzentos havia sempre auto piedade e desgosto a mordiscar, como ratos esfomeados, a um canto da embriaguez matutina. Mas era um homem alerta e sabia das coisas. Tal como com a morfina, tudo depende da medida de cada um.

Abriu a porta do Henry’s e foi acolhido pela agonia reprimida de uma jukebox que dominava o meio da sala, pulsando com sons de contrabaixos e luzes vermelhas, como um coração doente e frenético. Entrou um pouco vacilante, por entre as fileiras de gabinetes em plástico, em geral vazios e naquele momento abarrotados de estudantes. Alguns murmuravam com ar ansioso; muitos usavam barbas e roupas modernas — como anarquistas de vitrine, ou agentes de uma potência estrangeira dos velhos filmes dos anos 30. E por detrás das barbas? Poetas? Revolucionários? Um deles, aluno do seu curso de Química Orgânica, escrevia artigos para o jornal da faculdade acerca do amor livre e do cadáver apodrecido da ética cristã, que poluía as nascentes de vida. Bryce acenou com a cabeça e o rapaz brindou-o com um olhar embaraçado, por sobre a barba mal-humorada. A maior parte deles era constituída por jovens do Nebraska e de Ohio, assinando petições sobre o desarmamento, discutindo o socialismo. Sentiu-se pouco à vontade; parecia um velho bolchevista fatigado com um casaco de tweed, entre as novas classes.

Encontrou um espaço no bar e pediu um copo de cerveja a uma mulher com uma franja grisalha e óculos de aros negros. Nunca a tinha visto; sempre era servido por um taciturno velho, com dispepsia, chamado Arthur. Seria o marido? Sorriu-lhe vagamente ao pegar na cerveja. Bebeu um bom trago sentindo-se incomodado, com vontade de se ir embora. A juke box começara a tocar uma canção folk, com uma citara metálica. Perto dele no bar, uma garota muito branca falava com outra, de olhos tristes, acerca da ‘estrutura’ da poesia, um tipo de conversa que fazia Bryce estremecer. Que raio de conhecimento podiam ter aquelas idiotas? Depois se lembrou do jargão que utilizara, durante o ano em que se especializara em inglês, por volta dos seus vinte anos: ‘níveis de significado’, ‘o problema semântico’, ‘a nível simbólico’. Bom, havia montanhas de substitutos para conhecimento e intuição — falsas metáforas, por todo o lado.
Terminou a cerveja e então, sem saber o motivo, pediu outra, embora quisesse ir embora, fugir do barulho e daquela gente pretensiosa. Não estaria sendo também um tolo pomposo? Gente jovem parecia sempre apalermada, traída pelas aparências — como o resto do mundo. Era melhor que deixassem crescer a barba do que se juntarem a fraternidades ou tomarem-se polemistas.
Iriam se deparar mais tarde com aquele tipo de idiotismo moderado quando saíssem da universidade, já com a barba feita, à procura de emprego. Ou também estaria enganado acerca daquilo? Existia sempre a hipótese deles — pelo menos alguns deles — serem Ezras Pounds até à medula, de nunca rasparem a barba, de se tomarem fascistas, anarquistas, socialistas, brilhantes e guinchantes, que morressem em cidades europeias com nomes desconhecidos, autores de excelentes poemas, pintores de quadros cheios de sentido, homens infortunados mas cujo nome se tomaria célebre.
Acabou a cerveja e pediu outra.

Enquanto bebia relampejavam-lhe as imagens do anúncio cinematográfico e da palavra gigantesca, Worldcolor, e ocorreu-lhe que o W de W. E. Corp. podia ser de Worldcolor. Ou talvez de World. E o E? Eliminação? Exibicionismo? Erotismo? Sorriu perversamente, de modo prudente, à moça que estava ao seu lado, de casaco vermelho, que falava então sobre a ‘textura’ da linguagem. Não podia ter mais que dezoito anos. Ela contemplou-o com um olhar dúbio, uma expressão muito séria. E então sentiu que algo o magoava; ela era tão bela! Deixou esmorecer o sorriso, acabou a cerveja rapidamente e saiu. Quando passava, a caminho da porta, o estudante de Química Orgânica, barbudo, disse:

— Olá, professor Bryce.

Bryce acenou-lhe com a cabeça, resmungou qualquer coisa e afastou-se abrindo caminho.
Eram onze horas, mas não tinha vontade ainda de ir para casa. Por instantes pensou em visitar Gelber, o único amigo íntimo da faculdade, mas decidiu não o fazer. Gelber era um homem simpático; mas parecia não haver nada para dizer naquela altura. Não queria falar de si mesmo, do seu medo, da sua vida aterrorizante e estúpida.
Continuou a andar.

Era quase meia-noite quando parou numa loja de conveniência, aberta dia e noite, que se encontrava vazia, excetuando um empregado velho que estava ao balcão lustroso de plástico, onde se serviam refeições. Sentou-se e pediu café. Depois disso foi acostumando ao brilho falso das luzes fluorescentes, começou a olhar com ar indolente para as etiquetas que anunciavam frascos de aspirina, filmes fotográficos, lâminas de barbear... Estava de olhos semicerrados e a cabeça já lhe doía um pouco. A cerveja; a luz... Loção bronzeadora e pentes de bolso.
Algo atraiu seus olhos. Worldcolor: filme de 35 mm, impresso numa fila de caixas azuis e quadrangulares, depois dos pentes de bolso, sob um cartão onde se exibiam tesouras.
Aquilo o espantou, sem que soubesse por quê.
O empregado estava ali perto de pé, e Bryce disse:

— Deixe-me ver aquele filme, por favor.

O empregado semicerrou os olhos — seria a luz também? — e disse: — Qual filme?

— O colorido. O Worldcolor.

— Oh. Eu não...

— Me dê.

Ficou admirado com a impaciência da sua voz. Não tinha o hábito de interromper as pessoas.
O velho franziu vagamente a testa, arrastou os pés até ao balcão e tirou a caixa do filme. Pousou-a no tampo, em frente de Bryce, com uma firmeza exagerada, sem proferir uma palavra.
Bryce leu a etiqueta. Sob as letras maiúsculas via-se, em minúsculas:
“Filme colorido sem grão, perfeitamente equilibrado”. E por baixo: “Velocidade do filme ASA: 2000 a 3000, dependendo da revelação”.
Meu Deus, pensou. A velocidade não pode ser tão alta. E variável?
Olhou para o empregado.

— Quanto custa?

— Seis dólares. Dá para trinta e seis fotos. Para vinte fotos custa dois dólares e setenta e cinco.
Sentiu o peso à caixa, que era muito leve.

— Bem caro, né?

O empregado fez um movimento com a boca, que queria significar o aborrecimento de um velho.

— Não é, quando não se paga a revelação.

— Entendo. Eles revelam. Basta colocar num envelope de correio...

Interrompeu-se. Era uma conversa estúpida. Alguém inventara um filme novo. Que lhe interessava aquilo; não era fotógrafo!
Depois de uma pausa, o empregado esclareceu:

— Não. Ele se revela sozinho.

— Ele... o quê?...

— Revela-se sozinho. Escute, quer o filme ou não?

Em cada uma das extremidades da caixa estavam impressos a palavra: “Auto-revelante”.
Ficou pasmado. Por que não tinha visto nas publicações de química? Um novo processo...

— Quero — respondeu, distraído, a olhar para a etiqueta. E ao fundo, havia umas palavras em letra fininha: W. E. Corp.

— Sim. Vou comprar. — Procurou na carteira onde metia as notas e deu ao homem seis delas, todas amarrotadas. — Como é que se faz?

— Enfia na embalagem outra vez.

O homem aceitou o dinheiro. Parecia apaziguado, menos truculento.

— Outra vez?

— Na latinha aonde vem o filme. Põe na lata, quando acabar de tirar as fotografias. Depois aperta num botãozinho, no tampo da lata. Tem instruções ai dentro. Aperta um botão uma vez ou mais, depende da velocidade do filme. E pronto.

— Ah!

Levantou-se, sem acabar o café, metendo a caixa no bolso do casaco. Ao partir, perguntou ao empregado.

— Há quanto tempo esta coisa apareceu?

— O filme? Há cerca de duas, três semanas. Funciona bem. Vendemos bastante.

Foi direto para casa.

Como podia o quer que fosse, ser tão bom, tão fácil? Distraído, tirou a caixa do bolso, abriu-a com a unha do polegar. Dentro havia uma latinha de metal azul, com um tampo aparafusado, um botão vermelho saliente. Abriu-a. Embrulhado na folha das instruções encontrava-se um rolo de filme de 35 milímetros, de aspecto comum. Debaixo da tampa da lata, por baixo do botão, existia uma gradezinha. Tocou-lhe com a unha do polegar. Parecia feita de porcelana.

Em casa tirou a velha máquina Argus, do fundo de uma gaveta. Então, antes de carregar o filme, puxou cerca de dois centímetros de filme do cartucho, expondo-o, e depois o rasgou. Parecia áspero ao tato, sem a maciez de uma emulsão gelatinosa. Depois meteu o resto na máquina e tirou fotografias rápidas, ao acaso, das paredes, do radiador, dos papéis na mesa, disparando a uns 800 de velocidade, na luz fraca. Uma vez acabado revelou o filme na lata, carregando no botão oito vezes e abriu-a, cheirando a lata, enquanto o fazia. Um fraco gás azulado saiu, com um cheiro acre, que não reconheceu. Não havia líquido na lata. Revelação gasosa? Tirou o filme, sem perda de um segundo, puxando a película do rolo, e pondo-o contra a luz, e deparou com uma série de transparências perfeitas, numa cor e pormenor excelentes, iguais aos da vida real. Assobiou alto. Depois pegou no pedaço de filme virgem e foi para a cozinha com ele. Começou a dispor o material para uma análise rápida, arranjando filas de provetas, indo buscar o equipamento de titulação. Deu consigo mesmo a trabalhar febrilmente e nem parou para pensar no que o estava a afligindo-o com uma curiosidade tão frenética em relação ao filme. Algo naquilo o incomodava, mas ignorou-o... encontrava-se por demais atarefado...

Cinco horas depois, às seis da manhã, com um céu cinzento e cheio de ruídos dos pássaros lá fora, deixou-se cair, exausto numa cadeira da cozinha, segurando um pedaço do filme. Não tentara fazer tudo com ele; mas tentara o suficiente para saber que nenhuma das substâncias químicas de fotografia, nenhum dos sais de prata, se encontravam lá.
Sentou-se de olhos vermelhos e fixos durante uns bons minutos. Depois se levantou, caminhou com um ar muito cansado até ao quarto e desabou, meio esgotado, na cama por fazer.

Antes de adormecer ainda vestido, com a passarada a gritar da parte de fora da janela e o Sol a erguer-se, sussurrou para si mesmo com uma voz fatigada e áspera:

— Teve ser uma tecnologia completamente nova... alguém andou pesquisando muito a ciência existente nas ruínas dos Maias... ou em outro planeta...








(*) Wystan Hugh Auden, 1907-1973, poeta dos EUA, nascido em Inglaterra. (N. da T.)
(1) O Jardim Poético de Uma Criança (N. da T.) (2) Abreviatura da Profissão de Químico. (N. da T.)

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