domingo, 24 de abril de 2016
O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 04)
As pessoas desciam e subiam as ruas em multidões mutáveis, com passo apressado, vestidas com roupas primaveris. Por todo o lado parecia haver mulheres jovens em saltos altos (podia ouvi-los ainda que dentro do carro), muitas delas trajadas de forma resplandecente, sobrenaturalmente alegres, à luz intensa da manhã.
Apreciando o espetáculo oferecido pelas pessoas e pelas cores — embora os olhos, ainda demasiado sensíveis sofressem — disse ao motorista para descer devagar a Park Avenue.
Era um dia encantador, sem dúvida um dos primeiros dias deslumbrantes da sua segunda primavera na Terra. Recostou-se sorrindo, contra os estofados do carro, e o automóvel a uma velocidade diminuta e constante. Arthur, o motorista, era muito competente; fora escolhido pela sua suavidade, pela sua habilidade em manter uma velocidade uniforme, em evitar mudanças repentinas.
Viraram para a Quinta, no meio da cidade, parando em frente ao velho edifício de escritórios de Famsworth, que ostentava em um dos lados da porta, uma placa em latão onde se lia, em letras com um relevo discreto:
‘World Enterprises Corporation’.
Newton regulou os óculos escuros de forma a darem mais sombra, protegendo-o contra a luz da rua, e deslizou para fora da limusine. Parou no passeio, esticando-se, sentindo o sol no rosto — tépido para as outras pessoas, mas para ele agradavelmente quente.
Arthur meteu a cabeça para fora da janela e perguntou:
— Devo esperar, Sr. Newton?
Ele esticou-se de novo, desfrutando a luz solar, a atmosfera. Não tinha saído do apartamento durante mais de um mês.
— Não — respondeu. — Depois eu te chamo, Arthur. Mas duvido que vá precisar de você antes da tarde; pode ir ao cinema se quiser.
Entrou, caminhou pelo corredor principal, passando pela fileira de elevadores e dirigindo-se ao fundo, onde um contínuo o esperava, rigidamente aprumado, com uma farda impecável.
Newton sorriu; calculava a torrente de ordens que deviam ter sido dadas na véspera, depois de ter telefonado e dito que viria na manhã seguinte. Não aparecera nos escritórios durante três meses. Era raro abandonar o seu apartamento. O rapaz do elevador brindou-o com um ’Bom dia, Sr. Newton’, ensaiado e nervoso. Sorriu-lhe e entrou.
O elevador conduziu-o devagar e com grande suavidade, até o sétimo andar, que, antes disso, tinha abrigado o gabinete de advocacia de Famsworth. Este o esperava, quando saiu.
O advogado vestia-se como um potentado: terno de seda cinzenta, uma joia vermelha e brilhante a relampejar num dedo gorducho e muitíssimo manicurado.
— Está com um aspecto ótimo, Sr. Newton — disse ele agarrando-lhe a mão estendida com um extremo cuidado; por ser bom observador tinha reparado na reação de desagrado de Newton se lhe tocavam de qualquer maneira mais brusca.
— Obrigado, Oliver. Tenho me sentido bem de verdade.
Famsworth conduziu-o por um corredor, passou por escritórios, até um conjunto de salas com a placa, W. E. Corp. Ultrapassaram um aglomerado de secretárias, que se mantiveram num respeitoso silêncio, à sua aproximação, e penetraram no gabinete do anfitrião, que tinha na porta letrinhas de latão: O. V. Famsworth, Presidente.
O interior do gabinete encontrava-se mobiliado como dantes, com diferentes peças rococó, dominadas pela enorme mesa Caffieri, grotescamente ornamentada. A sala, como sempre, transbordava de música — uma peça para violino daquela vez; desagradável aos ouvidos de Newton, mas nada disse.
Um empregado trouxe-lhes chá, enquanto tagarelavam um pouco.
Newton aprendera a gostar de chá, embora tivesse que bebê-lo morno — e depois, começaram a falar de negócios; o processo nos tribunais, a disposição e remodelação das diretorias, das empresas holding, das concessões, alvarás e das retribuições por uso de marcas e patentes, do financiamento de novas fábricas, da venda de artigos, de mercados, peças e da flutuação dos juros dos títulos de dívida pública nos setenta e três artigos de consumo que produziam, desde antenas de televisão, transistores, filmes fotográficos e detectores de radiações — bem como das três centenas de patentes, mais ou menos, que tinham cedido, desde o processo de refinar petróleo até a um substituto inócuo da pólvora usado em brinquedos.
Newton estava consciente do espanto de Famsworth para com ele — mais até do que era costume —, com a sua percepção própria daquelas coisas, e disse para consigo que seria prudente meter uns erros de números e pormenores. Todavia, era divertido e excitante — ainda que sabendo o orgulho vão e banal que advém do prazer — utilizar a sua mente antheana no tratamento daqueles assuntos. Era como se uma daquelas pessoas — pensava sempre nelas como ‘estas pessoas’, por muito que tivesse passado a apreciá-las e a admirá-las — se descobrisse a lidar com um grupo de chimpanzés muito alerta e cheio de recursos. Gostava imenso delas, e, por causa da sua vaidade humana, era incapaz de resistir ao prazer fácil de deixar funcionar a sua superioridade mental obtendo, em troca, o seu aturdido espanto.
Todavia, divertido como era, tinha de lembrar-se de que aquela gente era mais perigosa que os chimpanzés — e haviam passado milhares de anos desde que um deles vira um antheano sem disfarce.
Continuaram a falar até outra empregada lhes trazer o almoço — sanduíches de frango às fatias e uma garrafa de vinho do Reno, para Famsworth; bolinhas de farinha de aveia e um copo de água, para Newton. A farinha de aveia, ele descobrira, era um dos alimentos mais digeríveis para as características peculiares do seu organismo e a comia com frequência.
Prosseguiram a conversa por um bom tempo, a cerca do problema de financiamento das várias empresas espalhadas pelo mundo inteiro. Newton acabara, felizmente, por começar a divertir-se com aquela faceta do jogo. Fora obrigado a aprender — havia muitas coisas a cerca daquela sociedade e daquele planeta que não se podiam assimilar ao assistir televisão — e descobrira que tinha um pendor natural para aquilo, com certeza um atavismo herdado dos seus remotos antepassados, nos velhos e prósperos tempos que haviam constituído a glória da primitiva cultura antheana. Isso fora na altura em que aquela Terra se encontrava na sua segunda Era Glaciar — um tempo de guerras, antes das fontes de poder antheanas terem exaurido toda a água do planeta.
Newton achava graça quando brincava com os números financeiros, embora esse poder o excitasse pouco, e embora tivesse entrado no jogo com as ‘cartas na manga’ que dez mil anos de eletrônica, química e ótica antheanas lhe tinham fornecido.
Mas, nunca, nem por um só momento, se esquecia do motivo por que viera para a Terra.
Andava sempre consigo, inevitável, como o incômodo indistinto que permanecia nos seus músculos sempre cansados, como a impassível estranheza, por muito familiar que se lhe tivesse tomado, daquele enorme e variado planeta.
Gostava de Famsworth.
Gostava de poucos humanos que conhecera. Não conseguia dar-se bem com nenhuma mulher, por temê-las, por razões que ele próprio não reconhecia. Às vezes sentia-se triste, por conta das razões de segurança que tornavam demasiado arriscado conhecer melhor essas pessoas.
Famsworth, hedonista como era, mostrava-se um homem astuto, um participante cheio de luxúria no jogo do dinheiro; um indivíduo que necessitava ser vigiado, uma vez ou outra; um tipo possivelmente perigoso, mas daqueles cuja mente possuía muitas facetas requintadas e sutis.
Não obtivera o seu enorme rendimento — um rendimento que Newton lhe havia triplicado — só com base na sua reputação.
Quando se tomou suficientemente claro para Famsworth o que queria que se fizesse, recostou-se na poltrona, descansando, e disse depois:
— Oliver, agora que o dinheiro está começando a... acumular, há uma coisa nova em que quero fazer. Já lhe falei antes de um projeto de pesquisa...
Famsworth não pareceu surpreendido. Mas, tinha esperado que algo mais importante fosse o motivo da sua visita.
— Sim, Sr. Newton...
Sorriu, com gentileza.
— Será um tipo diferente de empreendimento, e temo que seja caro. Calculo que vai ter um certo trabalho a alinhavá-lo, a parte financeira, de qualquer modo. — Olhou pela janela, para a fila discreta de lojas cinzentas da Quinta e para as árvores. — Não será lucrativo, e penso que o melhor seria criar uma fundação destinada à pesquisa.
— Uma fundação de pesquisa?
O advogado fez beicinho.
— Sim. — Voltou-se para Famsworth. — Sim, penso em constituir uma em Kentucky, com quase todo o capital que possamos juntar. Cerca de quarenta milhões de dólares, julgo, se conseguirmos que os bancos nos ajudem.
As sobrancelhas de Famsworth subiram.
— Quarenta milhões? O senhor não vale metade disso, Sr. Newton. Dentro de mais seis meses talvez...
— Sim, eu sei. Mas acho que vou vender os meus direitos da Worldcolor à Eastman Kodak. É claro que pode ficar com as suas ações se quiser. A Eastman vai utilizá-las de uma maneira inteligente, julgo. Estão preparados para pagar bem por eles — com a condição de não comercializar um filme colorido, competitivo, durante cinco anos.
Famsworth estava vermelho.
— Isso não corresponde a vender uma renda vitalícia sobre o Tesouro dos EUA?
— Suponho que sim. Mas preciso de capital; e você bem sabe que há o perigo de um processo anti-monopólio, inerente as patentes. E a Kodak tem melhor acesso aos mercados mundiais do que nós. Vamos evitar grandes problemas.
Famsworth abanou a cabeça, já quase conformado.
— Se eu tivesse direitos autorais sobre a Bíblia não ia vendê-los à qualquer um. Mas creio que sabe o que está fazendo.
Na Universidade Pendley em Iowa, Nathan Bryce foi até o escritório do diretor de departamento. Tratava-se do professor Canutti, designado como consultor-coordenador de departamento, que naquela época era o titulo da maioria dos diretores de departamento desde o tempo das grandes mudanças de ‘etiqueta’ que haviam transformado vendedores em agentes, porteiro em zelador.
A tendência levara um tempo para chegar às universidades. Mas chegara e não havia mais secretários, apenas recepcionistas e adjuntos, nem patrões, apenas coordenadores.
O professor Canutti, cheirava a fumo de cachimbo, acolheu-o com um sorriso falso, fez-lhe um aceno de cabeça, através da sala, na direção de uma poltrona de plástico, cor de alfazema, e disse:
— Prazer em vê-lo, Nate.
Bryce retraiu-se, quase visivelmente, ao ouvir o ‘Nate’ e, olhando para o relógio, como se estivesse com pressa, respondeu:
— Tem uma coisa que me chamou a atenção, professor Canutti.
Bryce não tinha a menor pressa, exceto em acabar com a entrevista; depois dos exames terem acabado não haveria nada a fazer durante uma semana.
Canutti sorriu com simpatia e, momentaneamente, Bryce amaldiçoou-se por ter procurado-o, antes de tudo, com aquele idiota que tinha a mania do golfe. Mas Canutti podia saber algo que lhe fosse útil; pelo menos como químico não era qualquer um.
Bryce sacou uma caixa do bolso e colocou-a na mesa do outro.
— Já viu este novo filme?
Canutti pegou-o com a mão macia, sem um só calo, e contemplou-o, confundido.
— Oh, Worldcolor! Sim, já o usei, Nate. — Largou-o, com unia espécie de determinação. — É um filme bom demais! Auto-revelante.
— Sabe como funciona?
— Não, Nate. Não posso dizer que saiba. Como qualquer outro filme, posso somente especular. Seria apenas um pouco mais... sofisticado.
Sorriu por causa do próprio gracejo.
— Não exatamente. — Bryce estendeu-se e pegou na caixa, pesando-a na mão, e observando a cara branda de Canutti. — Fiz uns testes e fiquei bastante espantado. Sabe que os melhores filmes coloridos passam por três emulsões separadas, cada uma delas fundamental. Bom, este não passou por nenhuma, absolutamente.
Canutti levantou as sobrancelhas.
‘É bom mesmo que se sinta surpreso, idiota’, pensou Bryce.
— Parece ser impossível. Onde reside a fotosensibilidade?
— Aparentemente na base. E parece que se deve a sais de bário, só Deus sabe como. Sais de bário cristalinos, dispersos ao acaso. E — respirou fundo — o revelador é gasoso; está numa bolsinha por debaixo da tampa da lata. Tentei descobrir o que lá se encontrava e só tenho a certeza de que é nitrato de potássio, um peróxido qualquer e uma porcaria que, Deus me ajude, atua como o cobalto. E é tudo ligeiramente radioativo, o que poderia explicar qualquer coisa, se bem que eu não perceba o quê.
Canutti, por uma questão de delicadeza, concedeu-lhe a longa pausa que a sua pequena conferência merecia. Depois, replicou:
— Parece extraordinário, Nate. Onde é que o fabricam?
— Uma fábrica, em Kentucky. Mas a sociedade comercial é em Nova Iorque, até onde consegui chegar. Não há ações na bolsa.
Canutti, ao escutar, adotou uma expressão séria; provavelmente, pensou Bryce, a que reservaria para ocasiões solenes, como ser admitido num novo country Club.
— Compreendo. Bom, é confuso, não é?
Confuso? Que diabo queria dizer? Claro que era. Era impossível!
— Sim, é por isso que lhe queria pedir uma coisa. — Hesitou por instantes, relutando em pedir um favor àquele sujeitinho pomposo. — Gostava de investigar isso, descobrir como diabo funciona. Pensei que poderia usar um dos grandes laboratórios de pesquisa lá de baixo, do porão, pelo menos durante o tempo entre os semestres. E talvez pudesse arranjar um aluno-assistente, se houvesse um por aí à mão.
Canutti recostara-se mais na sua poltrona, revestida a plástico, quando ele ia a meio da frase, como se Bryce o tivesse fisicamente empurrado para baixo contra as almofadas de espuma macias.
— Os laboratórios estão todos a ser usados, Nate — retorquiu. — Sabe que temos, neste momento, mais projetos industriais e militares do que aqueles que conseguimos dar conta. Por que não escreve à empresa que fabrica o filme e lhes faz perguntas?
Ele tentou manter uma voz despreocupada.
— Já escrevi. Não respondem. Ninguém sabe nada acerca deles. Nada na imprensa — nem sequer na American Photochemistry. — Parou um minuto. — Escute, só preciso de um laboratório, professor Canutti... abro mão do assistente.
— Walter. Walter Canutti. Mas os laboratórios estão cheios, Nate. O coordenador Johnson me daria um puxão de orelhas se eu...
— Escute... Walter... É pesquisa básica. O Johnson passa a vida a fazer discursos acerca da pesquisa básica, não é? A espinha dorsal da ciência. A única coisa que parece que servimos é descobrir processos mais baratos para fabricar inseticidas e a aperfeiçoar bombas de gás.
Canutti franziu a testa, com o corpo gorducho ainda afundado na espuma do estofo.
— Não temos o hábito de falar assim dos nossos projetos militares, Nate. A nossa pesquisa tática aplicada é...
— Muito bem. Muito bem. — Obrigou-se a baixar a voz, tentando fazer com que parecesse o tom normal. — Matar pessoas é básico, creio. Também faz parte da vida da nação. Mas este filme...
Canutti corou devido ao sarcasmo.
— Olhe Nate, o que você quer é perder tempo com um processo comercial. E ainda por cima, com um que funciona muito bem. Por que esquentar com isso? O filme é um pouco fora do comum? Melhor ainda.
— Meu Deus! — exclamou Bryce. — Este filme é mais do que fora do comum. Vê-se a olho nu. Você é um químico, melhor do que eu. Não consegue perceber as técnicas que a coisa implica? Deus meu! Sais de bário e um revelador gasoso!
Lembrou-se, de repente, do rolo de filme que ainda tinha na mão e largou-o como se fosse uma cobra, ou uma relíquia sagrada. — É como se fôssemos... como se fôssemos homens das cavernas, a catar pulgas debaixo dos braços e um de nós descobrisse... pacote de estalinhos para crianças... — e então, de súbito, aquilo o atingiu como um soco recebido no peito e, fazendo uma breve pausa no discurso, pensou: ‘Santíssimo nome de Deus... os estalinhos’ . Pense na tradição, na tradição técnica que entra na fabricação de uma tirinha de papel com uma bolsinha de pólvora, de forma a podermos ouvir o pum, pum, pum! Ou como se se desse a um antigo romano um relógio de pulso e ele soubesse o que era um relógio de sol...
Não acabou a comparação, pensando outra vez nos estalinhos, em como tinha feito aquele barulhão, em como não tinham cheirado a pólvora, nem fumaça.
Canutti sorriu, friamente:
— Bom, Nate, você é muito eloquente. Mas não me deixaria arrebatar por causa de uma coisa inventada por qualquer equipe de pesquisa revolucionária. — Tentou parecer cheio de humor, para disfarçar o desacordo. — Duvido de que tenhamos sido visitados por homens do futuro. Pelo menos, para nos venderem filme fotográfico.
Bryce levantou-se, fechando a caixa na mão, com força e falou baixinho.
— Equipe de pesquisa revolucionária, o cacete! A maneira como este filme não utiliza uma só das técnicas de química resultantes de mais de uma centena de anos de desenvolvimento no campo da fotografia, este processo pode ser extraterrestre. Ou então, há um gênio oculto em Kentucky, que nos vai vender um moto-contínuo, na semana que vem.
Virou-se com brusquidão, farto, e começou a andar para a porta.
Como uma mãe chamando o filho que se vai embora de malcriação, Canutti disse:
— Eu não falaria demasiado em extraterrestres, Nate. E claro que entendo o que você sugere...
— E claro que entende — disse Bryce saindo.
Foi direto para casa, no trem da tarde, e prestou atenção se via — ou melhor, se ouvia — crianças com estalinhos.
sábado, 16 de abril de 2016
O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 03)
Numa tarde primaveril, demasiado quente para a época, o professor Nathan Bryce ao subir a escada que o levaria ao seu apartamento, no quarto andar, deparou-se com estalinhos deixados no patamar do terceiro. Lembrando-se do grande barulho que haviam provocado na véspera, nos corredores, pegou-os com a intenção de jogar depois no lixo, quando chegasse a casa.
No seu tempo de moleque, os estalinhos eram invariavelmente vermelhos, um tom peculiar de ferrugem, o que sempre lhe parecera a cor ideal. Mas ao que parecia, os atuais eram feitos da cor amarela, tal como faziam geladeiras cor-de-rosa e copos de alumínio cor de gema de ovo, bem como outras incongruentes maravilhas.
Continuou a subir a escada, transpirando, pensando em sutilezas químicas que faziam parte até da fabricação dos copos amarelos de alumínio.
Pensou que os homens das cavernas, que bebiam com as mãos calosas em taça, tinham se virado muito bem sem toda a complexa sapiência da engenharia química — sem o conhecimento do comportamento molecular e dos processos comerciais — que ele, Nathan Bryce, era pago para saber e publicar documentos de pesquisa.
Quando chegou ao apartamento já se esquecera dos estalinhos.
Havia tantas coisas em que pensar!
Há seis semanas, em um dos lados da enorme e riscada mesa de carvalho, via-se uma pilha desarrumada de escritos estudantis, horríveis de se ver. Junto da mesa encontrava-se um aquecedor a lenha, antigo, pintado de cinza, um anacronismo naqueles dias em que imperava o aquecimento elétrico, e sobre o seu venerável trabalho em ferro forjado, amontoava-se uma ameaçadora quantidade de blocos de notas dos alunos do laboratório.
A pilha era tão alta que o topo do aquecedor se encontrava quase totalmente encoberto por ela.
Na extremidade da mesa, que não se achava atravancada, via-se a máquina de escrever, como outra deusa mundana — uma deusa rústica, trivial, demasiado exigente — ostentando ainda a página número dezessete de um documento acerca dos efeitos das radiações ionizantes sobre resinas poliestirenos, um documento não solicitado, desonroso e que, se calhar ficaria para sempre por terminar.
O olhar de Bryce percorreu as folhas de papel espalhadas como uma cidade desmoronada, bombardeada, constituída por casas de papelão, as soluções infindáveis, assustadoramente claras de equações de redução-oxidação, e de preparados industriais de ácidos sem graça alguma; e o também fastidioso, fastidiosíssimo, documento acerca das resinas poliestirenos. Contemplou aquelas coisas, de mãos nos bolsos do casaco, durante uns trinta segundos, com um desânimo sombrio. Depois, como se fizesse calor na sala, tirou o casaco e arremessou-o para cima de um sofá-cama de brocado dourado, meteu a mão por baixo da camisa para coçar a barriga, encaminhou-se para a cozinha e começou a preparar café.
A lava-louças estava atulhada de retortas, provetas e frasquinhos sujos, ao lado dos pratos do café da manhã, um deles ainda com gema de ovo.
Olhando para aquela confusão impensável sentiu vontade de gritar de desespero; mas não gritou.
Ficou apenas contemplando, que durou um minuto inteiro, e depois, com calma, disse bem alto:
— Bryce, tu é um tremendo bagunceiro!
Conseguiu encontrar uma proveta, mais ou menos limpa, passou água e encheu-a com café em pó e água quente, tirada da torneira, mexendo tudo com um termômetro do laboratório e bebeu, olhando por cima da borda a gravura grande e cara de Brueghel (A Queda de Icaro) que estava pendurada na parede, coroando o fogão branco. Uma coisa linda. Antigamente aquele quadro lhe provocara admiração, mas naquela altura, se habituara a ele. O prazer que lhe dava era apenas intelectual, apreciava a cor, as formas, tal como um diletante as apreciaria. Aquilo era mau sinal, uma sensação que tinha muito a ver com a desgraçada pilha de papéis na sala ao lado.
Ao engolir o resto do café, citou numa voz suave ritualista, sem qualquer expressão ou sentimento especial, as linhas do poema de Auden (*), acerca da pintura:
—...o delicado navegante que deve ter visto algo de espantoso, um rapaz a cair do céu, tinha um local aonde ir e continuou, calmamente, a navegar.
Pousou a proveta sem a enxaguar, em cima do fogão, depois enrolou as mangas da camisa, tirou a gravata, e começou a encher a lava-louça com água quente, vendo a espuma do detergente a borbulhar por causa da pressão da torneira, como uma coisa viva e multicelular, o olho de um enorme inseto albino. Então começou a meter a louça na espuma, na água quente que estava por debaixo. Procurou a esponja e iniciou a tarefa. Tinha de começar de qualquer jeito...
Quatro horas mais tarde já resolvera a distribuição de notas de final do ano, de licenciados, e meteu a mão no bolso à procura de um elástico para prendê-los. Foi assim que achou os estalinhos. Tirou do bolso, segurou-os na palma da mão e sorriu. Não estalava um havia trinta anos — desde que, em determinado momento da sua antiga e borbulhenta inocência, passara dos estalinhos, de A Child’s Garden of Verses (1) para a coleção gigante e oficial de Chem-Craft (2) que lhe fora oferecida pelo avô como uma estocada direta do destino.
De repente começou a desejar ali naquele apartamento vazio que gostaria de estourá-los um a um.
E lembrou-se então, de como uma vez, Deus sabe quantos anos atrás, tinha pensado no que aconteceria se se pusesse fogo numa caixa inteira de estalinhos — uma ideia deliciosa e radical. Mas nunca o tentara. Bom, não haveria momento melhor.
Levantou-se sorrindo com ar cansado e entrou na cozinha. Colocou o punhado de estalinhos em cima de uma folha de cobre, pôs esta num tripé, pingou em cima um pouco de álcool de uma lamparina, », arrancou uma lasca de madeira de uma prateleira, acendeu-a com o isqueiro e depois, cautelosamente, aproximou-a dos estalinhos. Ficou admirado e agradado com o resultado; em vez de uma série irregular de prrrrs, que esperava, e de fumaça, obteve uma ótima confusão de pums sonoros e satisfatórios.
Foi estranho, mas do resíduo negro não se partiu nenhuma fumaça. Curvou-se e cheirou a pequena massa preta que ficara. Não tinha o menor odor. Estranho.
Meu Deus, pensou, como as coisas acontecem de um momento para o outro! Qualquer outro químico desaparafusado já tinha descoberto um substituto para a pólvora.
Pensou, por momentos, no que poderia ser e encolheu os ombros. Talvez tropeçasse com aquilo noutro momento. Mas perdera o cheiro a pólvora — um cheiro agradável, pungente.
Olhou para o relógio. Sete e meia. Lá fora o lusco-fusco primaveril. Já passava da hora de jantar. Foi ao banheiro, lavou as mãos e o rosto, sacudindo a cabeça diante de seu reflexo desfigurado no espelho. Depois tirou o casaco do sofá-cama, vestiu-o e saiu.
Enquanto descia a escada perscrutava os degraus, meio distraído, em busca de outros estalinhos, mas não encontrou nada.
Depois de um hambúrguer com café resolveu ir ao cinema. Tivera um bom dia de trabalho — quatro horas no laboratório, três de aula, quatro a ler aqueles documentos idiotas.
Esperava topar com um filme de ficção científica — um que tivesse dinossauros ressuscitados a rondar por Manhattan, ou invasores insetívoros vindos de Marte para destruir a porcaria do mundo todo (que alívio!). Mas não havia nada desse gênero e, portanto, preparou-se para um musical, comprando pipocas e uma barra de chocolate, antes de entrar no escuro e procurar uma cadeira isolada nos fundos. Começou a comer pipocas, tentando expulsar da boca o gosto da mostarda barata do hambúrguer. Estava sendo exibido um programa de noticias e assistiu entorpecidamente, como sempre aquelas coisas lhe causavam. Rebeliões na África. Há quantos anos isto ocorria na África? Desde o princípio dos anos 60? Armas químicas tinham sido utilizadas contra uns infelizes. Bryce contorceu-se no seu assento, envergonhado da profissão que tinha. Anos atrás, como estudante licenciado e muitíssimo promissor, tinha trabalhado durante uns tempos, num projeto de uma bomba. Como o pobre e velho Oppenheimer, havia sentido sérias dúvidas. O noticiário passou a mostrar imagens de plataformas para lançamento de mísseis ao longo do rio Congo, e por fim a moda de Nova Iorque, mostrando vestidos soltos, com o peito descoberto para as mulheres, e calças com abas para os homens. Mas Bryce não conseguia afastar da cabeça os africanos; Recordava-se dos seios flácidos das mulheres, do inevitável lenço vermelho, que usavam na cabeça e que as fotos a cor revelavam. Na sua época os descendentes daquelas pessoas usavam fardas e iam para as universidades, bebiam martinis e fabricavam as suas próprias bombas de hidrogênio.
O musical de cores vulgares, berrantes, tentava apagar a lembrança do noticiário. Chamava-se The Shari Leslie Story e era aborrecido e barulhento.
Bryce tentou descontrair-se com a cor, mas descobriu que não era capaz e tinha de se contentar, à primeira vista, com as longas pernas das moças do filme. Entretinha, mas era o tipo de entretenimento que podia ser incômodo, bem como absurdo, para um viúvo de meia-idade.
Remexendo-se confrontado com uma sensualidade espalhafatosa, desviou a atenção para a fotografia e pela primeira vez, reparou que a qualidade técnica era espantosa. O contorno e o pormenor, embora expandidos num enorme telão, pareciam tão definidos como numa cópia de contato. Pestanejou e limpou os óculos ao lenço. Não havia dúvida, as imagens eram uma perfeição! Sabia um pouco de fotoquímica; aquela qualidade nem sequer parecia possível, em relação ao que conhecia dos processos de transferência de matrizes e de filmes a cores por emulsão tripla.
Deparou consigo mesmo a assobiar baixinho, de espanto, e assistiu ao resto do filme cheio de interesse. Quando de lá saiu, parou um pouco para ler a publicidade do filme, para ver o que diria a cerca do processo ligado à cor. Não foi nada difícil; um pomposo anúncio dizia:
“Nova Sensação Colorida Worldcolor”.
Contudo, nada mais havia, excetuando um pequeno R metido num círculo que queria dizer ‘marca registrada’ e, numa letra infinitesimal abaixo: registrado pela W. E. Corp.
Pensou em conjuntos de palavras que se encaixassem nas iniciais, mas com aquela extravagância aberrante, característica da sua mente, por vezes as únicas coisas que lhe ocorreram eram um absurdo. Encolheu os ombros e, com as mãos enfiadas nos bolsos, começou a descer a rua, à noite, na direção do coração de néon da cidadezinha universitária.
Inquieto e um pouco irritado, não desejando ir logo para casa e olhar de novo para aquela papelada, procurou uma daquelas cervejarias frequentadas por estudantes. Descobriu uma, um barzinho chamado Henry’s, com pretensões artísticas que ostentava nas canecas alemãs de cerveja. Já ali estivera antes, mas de manhã. Era um dos seus poucos vícios. Descobrira, oito anos atrás, quando sua esposa morreu (num hospital, com um tumor que pesava três quilos, no estômago), que havia certas coisas a dizer a favor das bebidas matutinas. Descobrira por mero acaso, que podia ser uma coisa ótima numa manhã lúgubre, uma manhã em que o tempo se mostra da cor de uma ostra, que estar bêbado transformava a melancolia num prazer. Mas era uma coisa para ser experimentada com a precisão de um químico; podia trazer aborrecimentos se feito de forma errada. Existiam penhascos anônimos de onde talvez se caísse, e nos dias cinzentos havia sempre auto piedade e desgosto a mordiscar, como ratos esfomeados, a um canto da embriaguez matutina. Mas era um homem alerta e sabia das coisas. Tal como com a morfina, tudo depende da medida de cada um.
Abriu a porta do Henry’s e foi acolhido pela agonia reprimida de uma jukebox que dominava o meio da sala, pulsando com sons de contrabaixos e luzes vermelhas, como um coração doente e frenético. Entrou um pouco vacilante, por entre as fileiras de gabinetes em plástico, em geral vazios e naquele momento abarrotados de estudantes. Alguns murmuravam com ar ansioso; muitos usavam barbas e roupas modernas — como anarquistas de vitrine, ou agentes de uma potência estrangeira dos velhos filmes dos anos 30. E por detrás das barbas? Poetas? Revolucionários? Um deles, aluno do seu curso de Química Orgânica, escrevia artigos para o jornal da faculdade acerca do amor livre e do cadáver apodrecido da ética cristã, que poluía as nascentes de vida. Bryce acenou com a cabeça e o rapaz brindou-o com um olhar embaraçado, por sobre a barba mal-humorada. A maior parte deles era constituída por jovens do Nebraska e de Ohio, assinando petições sobre o desarmamento, discutindo o socialismo. Sentiu-se pouco à vontade; parecia um velho bolchevista fatigado com um casaco de tweed, entre as novas classes.
Encontrou um espaço no bar e pediu um copo de cerveja a uma mulher com uma franja grisalha e óculos de aros negros. Nunca a tinha visto; sempre era servido por um taciturno velho, com dispepsia, chamado Arthur. Seria o marido? Sorriu-lhe vagamente ao pegar na cerveja. Bebeu um bom trago sentindo-se incomodado, com vontade de se ir embora. A juke box começara a tocar uma canção folk, com uma citara metálica. Perto dele no bar, uma garota muito branca falava com outra, de olhos tristes, acerca da ‘estrutura’ da poesia, um tipo de conversa que fazia Bryce estremecer. Que raio de conhecimento podiam ter aquelas idiotas? Depois se lembrou do jargão que utilizara, durante o ano em que se especializara em inglês, por volta dos seus vinte anos: ‘níveis de significado’, ‘o problema semântico’, ‘a nível simbólico’. Bom, havia montanhas de substitutos para conhecimento e intuição — falsas metáforas, por todo o lado.
Terminou a cerveja e então, sem saber o motivo, pediu outra, embora quisesse ir embora, fugir do barulho e daquela gente pretensiosa. Não estaria sendo também um tolo pomposo? Gente jovem parecia sempre apalermada, traída pelas aparências — como o resto do mundo. Era melhor que deixassem crescer a barba do que se juntarem a fraternidades ou tomarem-se polemistas.
Iriam se deparar mais tarde com aquele tipo de idiotismo moderado quando saíssem da universidade, já com a barba feita, à procura de emprego. Ou também estaria enganado acerca daquilo? Existia sempre a hipótese deles — pelo menos alguns deles — serem Ezras Pounds até à medula, de nunca rasparem a barba, de se tomarem fascistas, anarquistas, socialistas, brilhantes e guinchantes, que morressem em cidades europeias com nomes desconhecidos, autores de excelentes poemas, pintores de quadros cheios de sentido, homens infortunados mas cujo nome se tomaria célebre.
Acabou a cerveja e pediu outra.
Enquanto bebia relampejavam-lhe as imagens do anúncio cinematográfico e da palavra gigantesca, Worldcolor, e ocorreu-lhe que o W de W. E. Corp. podia ser de Worldcolor. Ou talvez de World. E o E? Eliminação? Exibicionismo? Erotismo? Sorriu perversamente, de modo prudente, à moça que estava ao seu lado, de casaco vermelho, que falava então sobre a ‘textura’ da linguagem. Não podia ter mais que dezoito anos. Ela contemplou-o com um olhar dúbio, uma expressão muito séria. E então sentiu que algo o magoava; ela era tão bela! Deixou esmorecer o sorriso, acabou a cerveja rapidamente e saiu. Quando passava, a caminho da porta, o estudante de Química Orgânica, barbudo, disse:
— Olá, professor Bryce.
Bryce acenou-lhe com a cabeça, resmungou qualquer coisa e afastou-se abrindo caminho.
Eram onze horas, mas não tinha vontade ainda de ir para casa. Por instantes pensou em visitar Gelber, o único amigo íntimo da faculdade, mas decidiu não o fazer. Gelber era um homem simpático; mas parecia não haver nada para dizer naquela altura. Não queria falar de si mesmo, do seu medo, da sua vida aterrorizante e estúpida.
Continuou a andar.
Era quase meia-noite quando parou numa loja de conveniência, aberta dia e noite, que se encontrava vazia, excetuando um empregado velho que estava ao balcão lustroso de plástico, onde se serviam refeições. Sentou-se e pediu café. Depois disso foi acostumando ao brilho falso das luzes fluorescentes, começou a olhar com ar indolente para as etiquetas que anunciavam frascos de aspirina, filmes fotográficos, lâminas de barbear... Estava de olhos semicerrados e a cabeça já lhe doía um pouco. A cerveja; a luz... Loção bronzeadora e pentes de bolso.
Algo atraiu seus olhos. Worldcolor: filme de 35 mm, impresso numa fila de caixas azuis e quadrangulares, depois dos pentes de bolso, sob um cartão onde se exibiam tesouras.
Aquilo o espantou, sem que soubesse por quê.
O empregado estava ali perto de pé, e Bryce disse:
— Deixe-me ver aquele filme, por favor.
O empregado semicerrou os olhos — seria a luz também? — e disse: — Qual filme?
— O colorido. O Worldcolor.
— Oh. Eu não...
— Me dê.
Ficou admirado com a impaciência da sua voz. Não tinha o hábito de interromper as pessoas.
O velho franziu vagamente a testa, arrastou os pés até ao balcão e tirou a caixa do filme. Pousou-a no tampo, em frente de Bryce, com uma firmeza exagerada, sem proferir uma palavra.
Bryce leu a etiqueta. Sob as letras maiúsculas via-se, em minúsculas:
“Filme colorido sem grão, perfeitamente equilibrado”. E por baixo: “Velocidade do filme ASA: 2000 a 3000, dependendo da revelação”.
Meu Deus, pensou. A velocidade não pode ser tão alta. E variável?
Olhou para o empregado.
— Quanto custa?
— Seis dólares. Dá para trinta e seis fotos. Para vinte fotos custa dois dólares e setenta e cinco.
Sentiu o peso à caixa, que era muito leve.
— Bem caro, né?
O empregado fez um movimento com a boca, que queria significar o aborrecimento de um velho.
— Não é, quando não se paga a revelação.
— Entendo. Eles revelam. Basta colocar num envelope de correio...
Interrompeu-se. Era uma conversa estúpida. Alguém inventara um filme novo. Que lhe interessava aquilo; não era fotógrafo!
Depois de uma pausa, o empregado esclareceu:
— Não. Ele se revela sozinho.
— Ele... o quê?...
— Revela-se sozinho. Escute, quer o filme ou não?
Em cada uma das extremidades da caixa estavam impressos a palavra: “Auto-revelante”.
Ficou pasmado. Por que não tinha visto nas publicações de química? Um novo processo...
— Quero — respondeu, distraído, a olhar para a etiqueta. E ao fundo, havia umas palavras em letra fininha: W. E. Corp.
— Sim. Vou comprar. — Procurou na carteira onde metia as notas e deu ao homem seis delas, todas amarrotadas. — Como é que se faz?
— Enfia na embalagem outra vez.
O homem aceitou o dinheiro. Parecia apaziguado, menos truculento.
— Outra vez?
— Na latinha aonde vem o filme. Põe na lata, quando acabar de tirar as fotografias. Depois aperta num botãozinho, no tampo da lata. Tem instruções ai dentro. Aperta um botão uma vez ou mais, depende da velocidade do filme. E pronto.
— Ah!
Levantou-se, sem acabar o café, metendo a caixa no bolso do casaco. Ao partir, perguntou ao empregado.
— Há quanto tempo esta coisa apareceu?
— O filme? Há cerca de duas, três semanas. Funciona bem. Vendemos bastante.
Foi direto para casa.
Como podia o quer que fosse, ser tão bom, tão fácil? Distraído, tirou a caixa do bolso, abriu-a com a unha do polegar. Dentro havia uma latinha de metal azul, com um tampo aparafusado, um botão vermelho saliente. Abriu-a. Embrulhado na folha das instruções encontrava-se um rolo de filme de 35 milímetros, de aspecto comum. Debaixo da tampa da lata, por baixo do botão, existia uma gradezinha. Tocou-lhe com a unha do polegar. Parecia feita de porcelana.
Em casa tirou a velha máquina Argus, do fundo de uma gaveta. Então, antes de carregar o filme, puxou cerca de dois centímetros de filme do cartucho, expondo-o, e depois o rasgou. Parecia áspero ao tato, sem a maciez de uma emulsão gelatinosa. Depois meteu o resto na máquina e tirou fotografias rápidas, ao acaso, das paredes, do radiador, dos papéis na mesa, disparando a uns 800 de velocidade, na luz fraca. Uma vez acabado revelou o filme na lata, carregando no botão oito vezes e abriu-a, cheirando a lata, enquanto o fazia. Um fraco gás azulado saiu, com um cheiro acre, que não reconheceu. Não havia líquido na lata. Revelação gasosa? Tirou o filme, sem perda de um segundo, puxando a película do rolo, e pondo-o contra a luz, e deparou com uma série de transparências perfeitas, numa cor e pormenor excelentes, iguais aos da vida real. Assobiou alto. Depois pegou no pedaço de filme virgem e foi para a cozinha com ele. Começou a dispor o material para uma análise rápida, arranjando filas de provetas, indo buscar o equipamento de titulação. Deu consigo mesmo a trabalhar febrilmente e nem parou para pensar no que o estava a afligindo-o com uma curiosidade tão frenética em relação ao filme. Algo naquilo o incomodava, mas ignorou-o... encontrava-se por demais atarefado...
Cinco horas depois, às seis da manhã, com um céu cinzento e cheio de ruídos dos pássaros lá fora, deixou-se cair, exausto numa cadeira da cozinha, segurando um pedaço do filme. Não tentara fazer tudo com ele; mas tentara o suficiente para saber que nenhuma das substâncias químicas de fotografia, nenhum dos sais de prata, se encontravam lá.
Sentou-se de olhos vermelhos e fixos durante uns bons minutos. Depois se levantou, caminhou com um ar muito cansado até ao quarto e desabou, meio esgotado, na cama por fazer.
Antes de adormecer ainda vestido, com a passarada a gritar da parte de fora da janela e o Sol a erguer-se, sussurrou para si mesmo com uma voz fatigada e áspera:
— Teve ser uma tecnologia completamente nova... alguém andou pesquisando muito a ciência existente nas ruínas dos Maias... ou em outro planeta...
(*) Wystan Hugh Auden, 1907-1973, poeta dos EUA, nascido em Inglaterra. (N. da T.)
(1) O Jardim Poético de Uma Criança (N. da T.) (2) Abreviatura da Profissão de Químico. (N. da T.)
sábado, 9 de abril de 2016
O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 02)
II
A peça musical era o Quinteto para clarinete em dó maior, de Mozart. Mesmo antes do allegretto final, Famsworth pressionou o botão dos tons baixos em cada um dos pré-amplificadores e aumentou o volume de leve. Depois se sentou pesadamente na poltrona. Gostava do allegretto com os tons baixos fortalecidos; emprestavam ao clarinete uma ressonância que só por si, parecia ter um significado qualquer.
Olhou pela janela com cortinados que dava para a Quinta Avenida; juntou as pontas dos dedos gordos e atentou para o desenvolvimento da música.
Quando esta terminou e o aparelho desligou sozinho, lançou os olhos na direção da antessala do escritório e viu que seu secretário estava ali de pé, pacientemente à espera.
Viu as horas no relógio de porcelana à mesa e franziu a testa. Depois olhou para ele e perguntou:
— O que é?
— Um tal senhor Newton quer vê-lo.
— Newton? — Não conhecia nenhum Newton que fosse rico. — O que ele quer?
— Não disse, senhor. — Depois ergueu ligeiramente uma sobrancelha. — É um tanto estranho, senhor. E parece muito... importante.
Famsworth pensou por uns segundos e disse então:
— Mande-o entrar.
O secretário tinha razão; o homem era esquisito. Alto, magro, e uma estrutura óssea fina e delicada. Tinha uma pele macia e cara de garoto — mas os olhos eram muito singulares, na medida em que se mostravam frágeis, supersensíveis, mas lhe conferiam um aspecto idoso e prudente e fatigado. O indivíduo envergava um terno cinzento escuro e caro.
Dirigiu-se para uma poltrona e sentou-se, com imenso cuidado, acomodando-se como se transportasse um grande peso.
Olhou depois para Famsworth e sorriu.
— Oliver Famsworth?
— Gostaria de uma bebida, senhor Newton?
— Um copo de água, por favor.
Famsworth encolheu mentalmente os ombros e deu uma ordem ao secretário. Depois que ele saiu, olhou para seu visitante e inclinou-se para a frente, naquela atitude universal que significa: “Vamos direto ao assunto.”
Apesar disso Newton continuou muito aprumado na poltrona, com as suas longas finas mãos cruzadas sobre o colo e disse:
— Julgo que sabe lidar bem com patentes...
Havia um vestígio de sotaque na sua voz e proferia as palavras com demasiada precisão, demasiada formalidade.Famsworth não conseguiu identificar o sotaque.
— Sim — respondeu e, depois, um pouco bruscamente: — Tenho muitas horas de experiência.
Newton pareceu não reparar. Seu tom era cortês, caloroso.
— De fato, julgo que é o melhor indivíduo para tratar de patentes que existe nos Estados Unidos.
— Sim. Sou eficiente.
— Ótimo.
Baixou a mão junto à cadeira e puxou da pasta.
— O que deseja, então? — Famsworth olhou outra vez para o relógio.
— Gostaria de fazer um negócio com você.
O homem alto estava tirando da pasta um envelope.
— Não é demasiado tarde?
Newton tinha aberto o envelope e naquele momento retirava dele um maço fino de notas de dinheiro, preso por um elástico.
— Importa-se de vir pegar? Para mim é difícil andar, por causa das minhas pernas.
Aborrecido Famsworth arrancou-se da poltrona e aproximou-se do homem alto, pegou o maço, regressou à base, e sentou-se.Eram notas de mil dólares.
— São dez — disse Newton.
— Está sendo um tanto melodramático, não? — Meteu o maço no bolso do casaco. — Para que é isto?
— Por esta noite — respondeu Newton. — Cerca de três horas da sua dedicada atenção.
— Mas por que esta noite, por amor de Deus?
O outro encolheu os ombros com espontaneidade.
— Oh, por várias razões. A privacidade é uma delas.
— Posso dedicar-lhe a minha atenção por menos de dez mil dólares.
— Sim. Mas também desejo despertar seu interesse com a... relevância da nossa conversa.
— Bom. — Famsworth recostou-se na poltrona. — Vamos conversar então.
O homem magro pareceu descontrair-se, mas não se recostou.
— Primeiro — indagou — quanto dinheiro o senhor faz em um ano, Sr. Famsworth?
— Não tenho um ordenado.
— Muito bem. Quanto ganhou no ano passado?
— Perfeitamente. Pagou para isso. Cerca de cento e quarenta mil.
— Compreendo. É então rico, no conceito geral?
— Sim.
— Mas gostaria de ser ainda mais?
Aquilo estava ficando ridículo. Era como um programa de televisão de segunda classe. Mas já pagara; e era melhor prosseguir. Tirou um cigarro, de uma cigarreira e disse: — E claro que gostaria de ser mais rico.
Newton inclinou-se só ligeiramente pra frente, daquela vez.
— Muitíssimo mais, Sr. Famsworth? — perguntou sorrindo, começando a apreciar extraordinariamente a situação.
— Sim — replicou, e a seguir: — Um cigarro?
Estendeu a cigarreira ao visitante. Ignorando a oferta, o homem de cabelo cobre disse:
— Posso fazer do senhor um indivíduo muito rico, Sr. Famsworth, se dedicar-se inteiramente nos próximos cinco anos.
Famsworth manteve-se impávido, acendeu o cigarro enquanto a sua mente trabalhava rapidamente, revirando todos os lados daquela entrevista, intrigado com a situação, com a ligeira possibilidade da oferta daquele homem ser razoável. Mas o homem possuía dinheiro. Seria prudente manter a brincadeira por um pouco mais. Seu secretário surgiu trazendo uma bandeja de prata com copos e gelo.
Newton pegou no seu copo com água com cuidado, e segurou-o com uma das mãos, enquanto com a outra tirava uma caixa de aspirinas do bolso, abriu-a com o polegar, e deixou cair um dos comprimidos na água. Este se dissolveu, branco e efervescente. Ergueu o copo e contemplou-o por um momento, e depois começou a beber a água aos golinhos, extremamente devagar.
Famsworth era advogado; tinha os sentidos alerta para os pormenores. Viu imediatamente que havia algo fora do comum na caixa das aspirinas. Tratava-se de um objeto comum, uma caixa para guardar aspirinas das que a Bayer vendia, mas existia algo de errado. E também havia algo de errado na maneira como Newton beberricava a água, devagarinho, com cautela, para não entornar uma gota — como se fosse uma coisa preciosa. E a água turvava-se por causa de uma aspirina; parecia esquisito.
Tinha de experimentar, mais tarde, também com uma aspirina, e ver o que sucedia, quando o homem se retirasse.
Antes do secretário sair, Newton pediu-lhe que entregasse a pasta a Famsworth. Depois tomou um último e carinhoso gole e pousou o copo, ainda quase cheio na mesa a seu lado.
— Tem certas coisas nesta pasta que eu gostaria que lesse.
Famsworth abriu a pasta e encontrou um maço espesso de papéis. O papel, notou logo, tinha um toque esquisito. Embora muitíssimo fino, era duro, se bem que flexível. A folha de cima estava cheia de fórmulas químicas, impressas, com grande nitidez, em tinta azulada. Desfolhou as restantes: diagramas de circuitos, tabelas e desenhos esquemáticos do que parecia ser o equipamento de uma fábrica. Ferramentas e moldes. A primeira vista, algumas fórmulas tinham um aspecto familiar. Ergueu os olhos:
— Eletrônica?
— Sim. Em parte. Está habituado a esse tipo de equipamento?
Famsworth não deu resposta. Se o outro conhecia alguma coisa acerca de si mesmo, saberia que tinha travado meia dúzia de batalhas, mais ou menos, como líder de um grupo de quase quarenta advogados, pela entidade jurídica de uma das maiores associações do mundo no ramo da fabricação de componentes eletrônicos. Começou a ler os papéis...
Newton continuava sentado na poltrona, ereto, observando-o, com o cabelo branco a brilhar à luz do lustre. Sorria. Momentos depois pegou no copo e começou a sorver a água que, durante toda a sua longa vida, fora a coisa mais preciosa que existira na sua terra. Ao beber lentamente e ao observar a leitura de Famsworth, a tensão que tinha sentido, a ansiedade escondida com tanta cautela que aquele gabinete tão estranho, naquele tão estranho mundo, lhe provocara, o receio que aquele humano gordo com suas bochechas enormes, a cabeça de pele esticada e os olhinhos de porco, lhe fizera experimentar começaram a abandoná-lo.
Passaram mais de duas horas antes que Famsworth levantasse a cabeça dos papéis. Durante esse tempo ele bebera três uísques. Os olhos estavam rosados aos cantos. Pestanejou para Newton, mal o vendo, a princípio, e focando-o depois, com os olhinhos esbugalhados.
— Bom?
O homem respirou fundo, baixou a cabeça como se tentasse clarear as ideias. Quando falou a voz era fraca, hesitante, extremamente cautelosa.
— Não compreendo tudo, apenas parte. Não percebo se trata de ótica... ou fotografia. — Olhou para os papéis como se quisesse assegurar-se de que ainda estavam lá. Sou advogado, Sr. Newton. Sou advogado. — E, de repente, a voz ganhou vida, tremendo e forte, o corpo avantajado e os olhinhos atentos, alertas. — Mas conheço eletrônica. E conheço patentes. Acho que compreendo o seu... amplificador e acho que compreendo a sua televisão, e... — fez uma pausa momentânea, pestanejando. — Meu Deus, acho que podem ser fabricados da maneira como diz aqui. — Deixou sair o ar devagarinho. — Parece convincente, Sr. Newton. Acho que vai funcionar.
Newton ainda sorria.
— Vai funcionar. Todos eles.
Famsworth tirou um cigarro e acendeu-o, acalmando-se.
— Tenho que verifica-los. Os metais, os circuitos... — E depois, interrompendo-se subitamente: — Bom Deus, homem, sabe o que significa isso tudo? Tem nove... nove patentes básicas aqui?
Levantou um dos papéis com a mão gorducha. — Só a transmissão de vídeo e o... sabe o que isto significa?
A expressão de Newton não se alterou.
— Sim. Sei o que significa — replicou.
Famsworth inalou devagar o fumo do cigarro.
— Se tiver razão Sr. Newton — anunciou com a voz mais tranquila, se tiver razão, pode ter no bolso a RCA, a Eastman Kodak. Meu Deus, a DuPont. Sabe o que tem aqui?
Newton olhou-o.
— Sei o que tenho aí.
Levou seis horas para chegarem de carro à casa de campo de Famsworth. Newton tentou manter a conversa, durante certo tempo, concentrando-se ao canto do banco de trás da limusine, mas as acelerações do automóvel eram penosas para seu corpo já sobrecarregado pela gravidade, que percebeu que levaria anos para habituar-se àquilo, e foi forçado a dizer ao advogado que estava muito cansado e precisava repousar.
Depois fechou os olhos, permitiu que o encosto acolchoado do assento lhe suportasse o peso, tanto quanto possível, e aguentou o incômodo o melhor que conseguiu.
A atmosfera no interior do carro era demasiado quente também, comparada a temperatura dos dias mais quentes no seu local de origem.
Finalmente, quando saíram dos limites da cidade, a maneira de guiar do motorista tomou-se uniforme e os penosos arranques e as freadas começaram a abrandar.
Olhou várias vezes para Famsworth. O advogado não dormia. Estava sentado com os cotovelos apoiados nos joelhos, a folhear a papelada que Newton lhe entregara, os olhinhos a brilharem com intensidade.
Sua casa era enorme e isolada, numa grande região florestal.
O edifício e as árvores pareciam húmidos, brilhando vagamente à luz acinzentada da manhã, que se assemelhava muito ao meio-dia de Anthea.
Refrescavam lhe os olhos demasiadamente sensíveis.
Apreciava os bosques, o tranquilo significado vital e a humidade lustrosa — a sensação de água e de fecundidade com que aquela terra o inundava, mesmo subjacente aos sons contínuos dos insetos, aos seus gorjeios e trinados. Uma infindável fonte de delícias comparado com o seu próprio mundo, com a secura e o vazio, a ausência de sons nos grandes desertos vazios entre as cidades, onde o único ruído era o sibilar do vento fino e omnipresente, que dava voz à agonia do seu próprio povo moribundo...
Um criado com olhos sonolentos esperava-os à porta.
Famsworth mandou o homem embora, encomendando-lhe café, e depois lhe gritou que devia preparar um quarto para o hóspede e que não atendesse telefonemas durante três dias.
Depois conduziu o antheano à biblioteca.
A sala era grande e decorada ainda de maneira mais dispendiosa do que o gabinete de Nova Iorque.
Famsworth lia como era óbvio, as melhores revistas para homens ricos.
No meio da sala havia uma estátua de uma mulher nua segurando uma lira. Duas das paredes estavam cobertas de estantes e na terceira existia um amplo quadro de uma figura religiosa, que Newton reconheceu como Jesus, pregado a uma cruz de madeira. O rosto da personagem espantou-o por um instante por ser delgado e de olhos perscrutastes.
Poderia bem ser o rosto de um antheano.
Depois olhou para Famsworth, que estava então mais composto, recostava-se na sua poltrona, com as mãozinhas sobre a barriga, contemplando seu hóspede. Os dois pares de olhos encontraram-se, por um embaraçoso momento, e o advogado desviou os seus.
Depois voltou a olhar para ele e disse calmamente:
— Bom, Sr. Newton, quais são os seus planos?
Newton sorriu.
— Muito simples. Quero ganhar tanto dinheiro quanto possível. O mais depressa possível.
No rosto do advogado não se via qualquer expressão, mas a voz era singular: — A sua simplicidade é elegante, Sr. Newton. Quanto tem em mente?
Newton olhou distraidamente para os caros objetos artísticos.
— Quanto poderíamos ganhar em cinco anos?
Famsworth fitou-o, por momentos e levantou-se. Arrastou os pés, com ar cansado, até à estante e começou a rodar uns botõezinhos até que alto-falantes escondidos na sala começaram a transmitir música de violino. Newton não reconheceu a melodia; mas era repousante e elaborada. Então, ajustando os botões, Famsworth respondeu:
— Depende de duas coisas.
— Quais?
— Primeiro, até que ponto quer fazer jogo limpo.
— Completamente limpo — replicou. — Tudo dentro da legalidade.
— Compreendo — Famsworth não conseguia ajustar o controle dos agudos, de maneira que o satisfizesse.
— Bom, em segundo lugar: qual vai ser o meu quinhão?
— Dez por cento dos lucros líquidos. Cinco por cento das ações de todas as empresas incorporadas.
Abruptamente, Famsworth afastou os dedos dos controles dos amplificadores. Voltou com lentidão para a sua poltrona. Depois esboçou um sorriso.
— Muito bem, Sr. Newton. Acho que posso arranjar-lhe um lucro líquido de... três centenas de milhões de dólares, em cinco anos.
Newton pensou um pouco. E acabou por dizer:
— Não é o bastante.
Famsworth olhou para ele com as sobrancelhas erguidas antes de indagar:
— Não é o bastante para quê, Sr. Newton?
Os olhos deste endureceram.
— Para um... projeto de pesquisa. Muito caro. Suponha — explicou o homem alto — que eu possa lhe dar um processo de refino de petróleo, cerca de quinze por cento mais eficiente do que qualquer um hoje utilizado. Isso faria seu cálculo chegar a cinco centenas de milhões?
— O seu... processo, poderia estar a funcionar no espaço de um ano?
— Dentro de um ano estaríamos batendo a Standard Oil Company, à qual, creio, poderíamos comprar.
Famsworth estava outra vez petrificado. Acabou por dizer:
— Vamos começar a tratar dos papéis amanhã.
— Ótimo — Newton ergueu-se, com dificuldade da poltrona. — Podemos então tratar dos arranjos mais pormenorizadamente. Na realidade, só há duas considerações importantes: que o dinheiro seja obtido com honestidade e que não me obrigue a ter muitos contatos com outras pessoas.
O quarto era no andar de cima e por momentos, julgou não ser capaz de subir as escadas. Mas subiu, um degrau de cada vez, com Famsworth calado a seu lado. Depois de lhe mostrar o quarto, o advogado comentou:
— É um homem incomum, Sr. Newton. Importa-se se eu lhe perguntar onde nasceu?
A pergunta apanhou-o completamente de surpresa, mas manteve a compostura.
— Não me importo. Sou de Kentucky.
As sobrancelhas do advogado subiram ligeiramente.
— Compreendo — replicou.
Depois se virou e encaminhou-se pesadamente para o vestíbulo.
O quarto tinha um teto alto e uma mobília ornamentada.
Descobriu um televisor inserido na parede, de tal forma que podia ver-se da cama. Sorriu fatigado — teria que ver sua recepção comparada com a de Anthea. Seria divertido rever certos programas. Sempre gostara dos faroestes embora fossem os programas de perguntas e respostas e os ‘educativos’ de domingo, que tinham fornecido ao seu pessoal em Anthea, a maior parte das informações que ele decorara. Não via um programa de televisão havia... quanto tempo durara a viagem?... Quatro meses.
E permanecera dois meses na Terra depois disso — providenciando dinheiro, estudando os micróbios das doenças, a comida e a água, aperfeiçoando seu sotaque, lendo jornais e preparando-se para a arriscada entrevista com Famsworth.
Observou pela janela a luz mais brilhante da manhã, no pálido céu azul. Em algum ponto no firmamento, talvez mesmo para onde olhava agora, ficava Anthea. Um lugar frio, mas do qual sentia saudades; onde se encontravam pessoas a quem amava, pessoas a quem não veria durante um tempo muito longo... Mas voltaria um dia a vê-las.
Puxou as cortinas e devagar acomodou o corpo cansado e dolorido na cama. Parecia que toda a excitação se escoara; sentia-se plácido e calmo. Adormeceu em poucos minutos.
Depois do meio-dia a luz do Sol despertou-o, e embora o seu resplendor lhe ferisse os olhos — pois as cortinas eram translúcidas —, sentiu-se repousado e bem-disposto. Devia ser, talvez, da cama macia, comparada com as dos hotéis obscuros onde se hospedara antes, talvez do alívio dado ao sucesso da noite anterior. Ficou na cama a pensar por uns minutos.
No banheiro havia uma máquina de barbear elétrica, além de sabonete, uma luva de banho e toalhas.
Sorriu.
Os antheanos não tinham barba.
Abriu a torneira e observou fascinado, como sempre, ao ver a água a correr. Depois lavou o rosto, sem usar do sabonete, pois irritava sua pele, mas utilizando um creme tirado de um frasco que trouxera na pasta. A seguir tomou os comprimidos do costume, mudou de roupa e desceu para começar a ganhar meio bilhão de dólares...
Nessa noite, após seis horas de conversa e planos, permaneceu muito tempo na varanda do quarto, desfrutando o ar fresco e olhando o céu negro.
As estrelas e os planetas pareciam incomuns na pesada atmosfera, e gostava de observar suas posições invulgares. Mas pouco sabia de astronomia, excetuando a Ursa Maior e meia dúzia de constelações menos importantes.
Por fim voltou para dentro do quarto.
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