domingo, 17 de janeiro de 2016

Don't Look Now - Daphne du Maurier (Parte 2)



O hotel junto ao Grande Canal tinha um ar acolhedor.

O funcionário sorriu quando lhe entregou a chave. O quarto era familiar, igualzinho em casa, com as coisas de Laura dispostas ordenadamente sobre a penteadeira, mas com uma leve atmosfera festiva de estranheza, de emoção, que apenas um quarto de férias é capaz. Era nosso naquele momento, mas não mais do que isso. Enquanto estávamos nele nós lhe trazíamos vida. Quando partirmos, ele não existirá mais, desaparecerá no anonimato.

John girou ambas as torneiras no banheiro, a água jorrando para o banho, o vapor subindo. Agora, pensou, finalmente é o momento para fazer amor, e voltou para o quarto, e ela compreendeu e abriu os braços e sorriu.

Abençoado seja depois de todas essas semanas se contendo.



— É o seguinte — ela disse mais tarde ao espelho, prendendo os brincos. — Não estou com muita fome. Vamos comer no restaurante do hotel?

— Deus, não! — Ele exclamou. — Com aqueles casais sombrios nas outras mesas? Estou faminto e feliz. E quero ficar bêbado!

— Nada de luzes brilhantes e música, não é?

— Não, não... Quero alguma cave pequena, escura e sinistra, cheia de amantes com as esposas de outros.

— Hum. Sabemos o que isso significa. Você vai se concentrar em alguma adorável italiana de dezesseis anos e sorrir para ela durante o jantar, enquanto eu estou fico sóbria, e com algum sujeito feio me encarando.

Saíram rindo na noite quente e suave, havia magia ao redor, por todos os lugares.

— Vamos caminhar — disse ele — vamos andar e abrir o apetite.





Inevitavelmente foram parar no Molo, com suas gôndolas dançando sobre a água, as luzes misturando-se com a escuridão. Havia outros casais passeando pela mesma causa, sem rumo, para um lado e para outro, sem propósito, e marinheiros em grupos barulhentos, e as meninas de olhos escuros sussurrando em saltos altos.

— O problema — disse Laura — é que andar em Veneza torna-se compulsivo uma vez que comece.
Só até a ponte seguinte, você diz, ai então até a próxima. Tenho certeza de que não há restaurantes por aqui, estamos quase nos jardins públicos. Vamos voltar. Eu sei que há um restaurante em algum lugar perto da igreja de San Zaccaria, tem uma rua estreita que vai dar nele.

— Se seguirmos pelo Arsenal, cruzando essa ponte no final, tomando a esquerda, sairemos do outro lado de San Zaccaria. Já fizemos isso outro dia.

— Sim, mas era dia. Podemos nos perder, o caminho não é muito bem iluminado.

— Não comece. Tenho instinto para essas coisas.

Eles viraram na Fondamenta dell'Arsenale e atravessaram a pequena ponte até o Arsenal propriamente, e assim por diante, passando a igreja de San Martino. Havia dois canais à frente, um seguindo a direita, e outro a esquerda, com caminhos estreitos ao lado de cada um. John hesitou. Por qual deles tinham caminhado no dia anterior?

— Vê — protestou Laura — perdidos, como eu disse.

— Bobagem — respondeu ele com firmeza. — Esquerda, me lembro da pequena ponte.




 O beco era estreito, as casas de ambos os lados do canal pareciam fechar-se sobre ele, e durante o dia, com o reflexo do sol sobre a água e as janelas das casas abertas, as roupas de cama penduradas aos balcões, um canto de canário em uma gaiola, trazia uma impressão de calor e de abrigo. Agora no escuro, as janelas das casas fechadas, a umidade, era uma cena completamente diferente, negligenciada, pobre, de barcos ancorados ao longo de degraus escorregadios e entradas escuras que pareciam caixões.

— Juro que não me lembro desta ponte — disse Laura fazendo uma pausa e segurando-se no corrimão. — Não gosto da aparência do beco.

— Há uma lâmpada na metade do caminho. Sei exatamente onde estamos... Não estamos muito longe do bairro grego.

Atravessaram a ponte e estavam prestes a mergulhar no beco quando ouviram o grito. Veio certamente de uma das casas do lado oposto, mas qual delas era impossível dizer. Com as janelas fechadas, cada uma delas parecia inabitada.
Viraram-se na direção do som.

— O que foi isso? — Laura sussurrou.

— Alguns bêbados ou outra coisa qualquer — disse John brevemente. –Vamos continuar.

Parecera mais com alguém que está sendo estrangulado, o grito reprimido pela asfixia.

— Devíamos chamar a polícia — disse Laura.

— Oh, pelo amor de Deus – ele deixou escapar. Onde ela pensa que está? Piccadilly?

— Bem, pra mim chega, é sinistro — ela respondeu e começou a afastar-se.

John hesitou quando viu uma pequena figura que de repente se moveu numa entrada abaixo das casas opostas, e, em seguida, pulou em um barco estreito.

Era uma criança, uma menina com não mais do que cinco ou seis anos, vestindo um casaco curto sobre sua saia e um capuz vermelho cobrindo a cabeça.



 
Havia quatro barcos ancorados e ela começou a saltar de um para o outro com uma agilidade surpreendente, com a intenção, ao que parecia de fuga. Uma vez seu pé escorregou e ele prendeu a respiração, pois ela estava prestes a perder o equilíbrio; em seguida ela se recuperou e pulou para o barco mais longe. Inclinando-se, puxou a corda, que teve o efeito de puxar o barco do canal, quase tocando o lado oposto de outra entrada, a cerca de dez metros de onde John estava. Em seguida a criança pulou novamente sobre os degraus e desapareceu no interior da casa, deixando o barco balançando atrás dela. Todo o episódio não durou mais de quatro minutos.

Ouviu um tamborilar rápido de pés. Era Laura tinha retornado. Ela não tinha visto nada e ele se sentia grato por isso. A visão de uma criança, uma menina, o medo de que a cena que acabara de testemunhar fosse de algum modo uma continuação para o grito alarmante, poderia ter tido um efeito desastroso sobre seus nervos.

— O que foi? — Ela chamou. — Não vou continuar sem você. Aquela ruela miserável segue em duas direções.

— Desculpe, estou chegando.

Ele a pegou pelo braço e caminharam a passos largos pelo beco.

— Não ouviu mais gritos? — Ela perguntou.

— Não, não, nada. Eu disse, era algum bêbado.





O beco levou a um terreno abandonado atrás de uma igreja, não uma igreja que ele conhecesse, mas liderou o caminho em frente, ao longo de outra rua e mais outra ponte.

— Espere um instante — disse ele. — Acho que à direita, vai levar-nos para o bairro grego, a igreja de San Georgio é mais ou menos ali.

Ela não respondeu. Estava começando a perder a fé. O lugar era como um labirinto. Eles poderiam ficar dando voltas e voltas para sempre, e encontrariam-se de novo perto da ponte onde eles tinham ouvido o grito.

Obstinadamente continuaram até, surpreendentemente e com alívio, ver pessoas andando na rua iluminada à frente. Havia uma torre de igreja, e o ambiente tornou-se familiar.

— Não disse a você? É San Zaccaria, nós encontramos! O seu restaurante não pode estar muito longe.




De qualquer modo não havia outros restaurantes, só o brilho confortador das luzes,  o movimento das pessoas caminhando ao longo do canal naquela atmosfera de turismo.
O letreiro “Ristorante” em luzes azuis, brilhava como um farol num beco do lado esquerdo.

— É este o seu lugar? — Ele perguntou.

— Deus sabe — disse ela. — E quem se importa? Vamos lá de qualquer maneira.

E mergulharam na explosão súbita de ar aquecido e zumbido de vozes, o cheiro de massas, vinho, garçons, clientes, empurrões, o riso. Para dois? Por aqui, por favor, disse o garçon em inglês. Ora, pensou, sua nacionalidade britânica era sempre tão óbvia?

— Dois Camparis grandes com refrigerante — ordenou John. — Enquanto vamos estudar o cardápio.

Não se apressou. Entregou o cardápio para Laura e olhou em volta. Principalmente italianos, o que significava comida boa. Logo em seguida ele as viu no lado oposto da sala. As irmãs gêmeas.

Estavam sentando-se naquele segundo, retirando seus casacos, o garçom pairando ao lado da mesa.
John foi acometido com o pensamento irracional que não era coincidência.

As irmãs os haviam visto na rua e os tinham seguido. Por que tinham escolhido este lugar em particular, de toda Veneza, a menos que... A menos que Laura em Torcello tivesse sugerido outro encontro, ou a irmã tinha sugerido? Um pequeno restaurante perto da igreja de San Zaccaria, vamos lá às vezes para o jantar. Foi Laura que antes da caminhada, tinha mencionado San Zaccaria.

Ela ainda estava indecisa olhando o cardápio, não tinha visto as irmãs, mas a qualquer momento teria escolhido o que queria comer, e então iria levantar a cabeça e olhar toda a sala. Se as bebidas chegassem logo ao menos daria a Laura algo para ocupar-se.

— Sabe, eu estava pensando — ele disse rapidamente — amanhã poderiamos pegar o carro e ir até Pádua, almoçar por lá, ver a catedral e tocar o túmulo de St Antony, e olhar os afrescos de Giotto.
Poderíamos voltar atravessando várias vilas ao longo de Brenta.

Não adiantou. Ela deu um pequeno suspiro de surpresa. E era genuíno. Ele podia jurar que era genuíno.

— Olha, que extraordinário!

— O que?

— Lá estão elas! Minhas maravilhosas velhinhas gêmeas. Estão olhando para cá!

Ela acenou com a mão, radiante, encantada. A irmã com que ela tinha falado em Torcello curvou-se e sorriu. Falsa, velha desgraçada. Eu sei nos seguiram!

— Oh, querido, preciso falar com elas — disse impulsivamente — apenas para dizer-lhes o quão feliz passei o dia, graças a elas.

— Pelo amor de Deus! Olha, as bebidas chegaram e nós ainda não pedimos.Você pode esperar até mais tarde, até acabar de comer.

— Será rápido! Eu quero scampi, só. Eu disse que não estava com fome.

Levantou-se e, passando pelo garçom com as bebidas, atravessou a sala.

Viu-a curvar-se à mesa e já que havia uma cadeira vaga na mesa, sentou-se conversando. A irmã pareceu surpresa, enquanto a cega estava impassível.

Tudo bem, pensou John selvagemente, vou ficar bêbado!




  Começou a beber seu campari com soda e pediu outro, enquanto apontou algo completamente ininteligível no cardápio como sua escolha, e scampi.

— E uma garrafa de Soave – acrescentou — com gelo.

A noite estava destruída de qualquer maneira. O que era para ter sido uma íntima e feliz celebração seria agora sobrecarregado com visões espíritas, mortos a compartilhar a mesa com eles, tão estúpidos quanto na vida terrena. O gosto amargo do campari mudou seu humor de repente para autopiedade, enquanto observava o grupo. Laura aparentemente escutando enquanto a irmã falava e a cega em silêncio.

 
Seus olhos cegos se viraram na direção dele.

Falsos, pensou, ela não é cega. Fraudes, e poderiam ser do sexo masculino, como haviam brincado de imaginar histórias em Torcello, e estão atrás de Laura.

Começou seu segundo campari com soda. Duas bebidas tomadas com o estômago vazio, resultou em um efeito imediato. Sua visão ficou turva. E Laura ainda sentada na outra mesa, enquanto a irmã falava e falava. O garçom apareceu com o scampi.

— A signora não vem? — Perguntou, e John balançou a cabeça sombriamente, apontando um dedo para o canto oposto da sala.

— Diga a signora — respondeu com cuidado – que o scampi vai ficar frio.

Ele olhou para o prato colocado diante dele e enfiou delicadamente um garfo. O molho pálido revelou duas enormes fatias do que parecia ser cozido de porco, enfeitado com alho. Levou uma porção a boca e mastigou, sim, era carne de porco, húmido, rico, o molho picante e curiosamente doce. Soltou o garfo, empurrando o prato para longe e tornou-se ciente de Laura sentando-se ao lado dele. Ela não disse nada, o que foi bom, porque estava nauseado demais para responder. Não era apenas a bebida, mas a reação ao dia, um pesadelo!

Ela começou a comer seu scampi, ainda muda. Não pareceu notar que ele não estava comendo. O garçom pairando perto de seu cotovelo, ansioso, parecia ciente de que a escolha de John fora de alguma forma um erro, e, discretamente, removeu o prato.

— Traga-me uma salada verde — murmurou John, e mesmo assim Laura não registrou surpresa, ou, como ela poderia ter feito em circunstâncias mais normais, o acusado de ter bebido em excesso.

Finalmente quando ela terminou o scampi, tomando um gole de vinho, enquanto John mordiscava sua salada em pequenos bocados como um coelho doente, ela começou a falar:

— Querido, sei que você não acredita, e é bastante assustador de certa forma, mas depois que elas deixaram o restaurante em Torcello, foram para a catedral, como fizemos, embora nós não as víssemos na multidão, mas um cego tem outra visão. Ela disse que Christine estava tentando lhe dizer algo sobre nós, que estamos correndo perigo se ficamos em Veneza. Christine queria que fôssemos embora o mais rápido possível.

Então é isso, pensou. Elas acham que podem mandar nas nossas vidas! Quando comemos, onde comemos, quando vamos para a cama? Temos de entrar em contato com as irmãs gêmeas. Elas vão nos orientar!

— Por que não diz alguma coisa, querido?

— Porque você está certa, não acredito nisso. Francamente,... suas velhotas são um casal de doidas e nada mais. São obviamente desequilibradas, e eu sinto muito se isso te machuca, mas o fato é que elas encontraram uma otária em você.

— Você está sendo injusto. Elas são genuínas, sei disso. Foram completamente sinceras no que me disseram.

— Tudo bem. Elas são sinceras. Mas isso não as torna equilibradas. Honestamente, querida, você conheceu aquela velha por dez minutos em um banheiro, ela lhe diz que vê Christine sentada ao nosso lado... E, em seguida, quer nos arrancar de Veneza. Bem, sinto muito, mas podem ir pro inferno!



A raiva o tinha feito sóbrio. Se não fosse por Laura, iria levantar-se, cruzar a sala e disser às velhas tolas pra onde deviam ir.

— Eu sabia que você reagiria assim — disse ela infeliz. — Eu disse para elas. Elas disseram para não se preocupar. Amanhã, quando sairmos de Veneza, tudo ficará bem.

— Oh, pelo amor de Deus — disse John servindo-se de um copo de vinho.

— Afinal — continuou — já vimos o melhor de Veneza. Não me importo de ir para outro lugar. Sei que parece bobagem, mas sinto isso dentro de mim querido, Christine está infeliz e está tentando nos dizer para ir embora.

— Certo — disse John com calma, encerrando o assunto. – Vamos então! Fechamos a conta do hotel imediatamente. Terminou de comer?

— Oh, querido — suspirou Laura — não fique assim. Olhe, por que não vem comigo, converse com elas, elas podem explicar sobre a visão para você. Talvez então você começasse a levá-las a sério.

Especialmente porque Christine está mais preocupada com você. E o extraordinário é que a irmã cega disse que você é psíquico, mas não sabe disso. Você está de alguma forma ligado ao desconhecido, eu não.

— Bem, agora chega! Eu vidente? Pois minha intuição psíquica me diz para sair deste restaurante agora, e podemos decidir o que fazer quando voltarmos ao hotel.

Ele sinalizou pedindo a conta para o garçom e permaneceram sem falar um com o outro, Laura infeliz, distraindo-se com sua bolsa, enquanto John olhava furtivamente a mesa das gêmeas. Uma vez paga a refeição, ele empurrou a cadeira para trás.

— Está pronta?

— Só vou dizer adeus a elas primeiro.

— Como queira — respondeu ele e caminhou para fora do restaurante, sem olhar para trás.

A umidade suave da noite, tão convidativa ao passeio, se transformara em chuva. Com isso os turistas desapareceram. Uma ou duas pessoas passaram apressadas debaixo de guarda-chuvas. Isto é o que os habitantes daqui vivem de verdade, pensou. Esta é a verdadeira vida. Ruas vazias a noite, o silêncio molhado de um canal de águas estagnadas frente a casas fechadas.

O resto é uma fachada brilhante, um show.

Laura se juntou a ele e se afastaram juntos em silêncio, por detrás do palácio ducal saindo na Piazza San Marco. A chuva era pesada agora e buscaram abrigo com os poucos retardatários restantes sob as colunatas. As mesas estavam nuas e cadeiras tinham sido viradas de cabeça para baixo.

Os especialistas estão certos, pensou, Veneza está afundando. A cidade inteira está indo para o fundo lentamente. Um dia os turistas vão viajar para cá de barco para olhar para baixo, verão submersos os pilares e as colunas de mármore e muito, muito abaixo deles, lodo e lama por breves momentos, um submundo perdido de pedra.

Os saltos de seus sapatos fizeram um som seco ao tocar o pavimento e a chuva espirrava das bocas d’água acima.

Um triste fim para uma noite que tinha começado com esperança, com inocência.

Quando chegaram ao hotel, Laura foi direto para o elevador e John para a recepção pegar a chave com o porteiro da noite. O homem entregou-lhe também um telegrama, que John olhou brevemente.

Laura já estava no elevador.

Então ele abriu o envelope e leu a mensagem. Era do diretor da escola preparatória.

“Johnnie sob observação no hospital da cidade, suspeita de apendicite.
Não há motivo para alarme, mas o médico aconselhou avisar vocês.
Charles Hill.”

Leu a mensagem duas vezes, e em seguida caminhou lentamente entrando ao elevador, onde Laura estava esperando. Entregou-lhe o telegrama.

— Isto chegou enquanto estávamos fora. Não é boa notícia.

Apertou o botão. Ela lia o telegrama. O elevador parou no segundo andar e saíram.

— Bem, isso explica tudo, não? — Ela disse. — Aqui está a prova! Temos que deixar Veneza. É Johnnie quem está em perigo, não nós! Foi o que Christine estava tentando dizer!

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