sexta-feira, 25 de março de 2016

O Homem que caiu na Terra - Walter Tevis (Parte 01)



1985: A queda de Ícaro


I

Depois de andar três quilômetros chegou a uma cidade.
No limiar desta havia uma placa.

Haneyville: População 1.400.

Aquilo era uma coisa vantajosa; seu tamanho era bom.
Ainda era princípio da manhã, escolhera aquela hora do dia para a caminhada por ser mais fresco e ainda não havia ninguém nas ruas. Passou por alguns quarteirões à luz indecisa, com a estranheza a confundi-lo, de certo modo tenso e assustado.
Tentava não pensar no que ia fazer. Já tinha pensado o suficiente.

No pequeno bairro comercial, descobriu aquilo que desejava; uma lojinha chamada ‘A Caixa de Joias’. Viu um banco de madeira. Dirigiu-se para lá e deitou-se, com o corpo dolorido do esforço da longa caminhada.




Só alguns minutos depois viu um ser humano.

Era uma mulher, uma mulher de ar fatigado, enfiada num vestido azul grosseiro, arrastando os pés na sua direção.
Desviou os olhos, rapidamente, aturdido. A mulher não parecia estar ‘correta’. Esperara que tivesse mais ou menos a sua estatura, mas era cerca de uma cabeça mais baixa do que ele. A pele mostrava-se mais rosada e mais escurecida do que pensara. E o aspecto, a sensação era estranha, embora soubesse que nunca seria o mesmo que vê-los pela televisão.

Daí a pouco já havia mais gente na rua, e todos eram semelhantes à mulher que vira primeiro.
Ouviu o comentário de um homem, ao passar:

“...como disse, já não fabricam carros como aquele”, e embora a declaração fosse aleatória, menos nítida do que esperava, conseguiu entender com facilidade.

Várias pessoas o olharam, algumas com um ar desconfiado, mas isso não o preocupou. Não esperara que o molestassem, e, depois de observar os outros, confiava que suas roupas resistissem a uma inspeção.

Quando a joalheria abriu aguardou dez minutos e entrou.

 

Havia um homem ao balcão, baixo, gorduchinho, com uma camisa branca e de gravata, a limpar o pó das prateleiras. Parou e olhou para ele momentaneamente, com um ligeiro vestígio de desconfiança, e disse:

— Sim?

Sentiu-se demasiado alto e desajeitado. E muito amedrontado. Abriu a boca para falar, mas não foi capaz de proferir uma palavra. Tentou sorrir e pareceu-lhe que tinha a cara paralisada.
Sentia-se bem no seu íntimo, mas começava a entrar em pânico e, por um instante, achou que iria desmaiar. O homem olhava para ele ainda.

— Sim? — Perguntou de novo.

Graças a um grande esforço de vontade, conseguiu dizer:

— Eu... eu estava pensando se estaria interessado neste... anel?

Quantas vezes tinha planejado aquela pergunta inofensiva, quantas vezes tinha repetido para si mesmo, incontavelmente, e apesar disso, naquele momento soava como um amontoado ridículo de sílabas destituído de sentido.

— Que anel? — Indagou.

Conseguiu esboçar um sorriso e tirou o anel de ouro do dedo da mão esquerda e colocou-o no balcão, receoso de tocar na mão do homem.

— Eu... meu carro quebrou. Lá na estrada, a alguns quilômetros daqui. Não tenho dinheiro, pensei que talvez pudesse vender o anel. É bastante valioso.

O homem revirava o anel nas mãos, olhando-o com ar suspeito. Acabou por dizer:

— Onde arranjou isto?

A maneira como falou fez com que a respiração lhe ficasse sufocada na garganta. Teria feito alguma coisa errada? A cor do ouro? Qualquer pormenor? Tentou sorrir outra vez.

— Minha mulher me presenteou há alguns anos.

A cara do homem ainda estava assombrada.

— Como vou saber se não foi roubado?

— Oh! — O alívio foi esquisito. — Meu nome está aí, no anel. — Puxou da carteira que estava no bolso do peito. — Posso identificar-me.


 
Tirou o passaporte e pousou-o no balcão. O homem olhou para o anel e leu alto.

— Para T. J. de Marie Newton, Aniversário, 1982. 18 K. — Largou o anel, pegou no passaporte e desfolhou-o.

— Inglaterra?

— Sim, sou intérprete nas Nações Unidas. É a minha primeira viagem. Estou conhecendo o país.

— Hum! — Fez o homem observando outra vez o passaporte. — Percebi que tinha um sotaque qualquer.

Quando descobriu o retrato, leu o nome abaixo.



— Thomas Jerome Newton — e depois, olhando novamente para ele. — Sem problema. É mesmo você, sem dúvida.

Ele sorriu, mais uma vez, e daquela vez o sorriso foi mais descontraído, mais genuíno, embora ainda sentisse a cabeça a flutuar — havia sempre o tremendo peso do seu próprio corpo, o peso provocado pela gravidade plúmbea daquele local. Mas conseguiu dizer, com ar descontraído:

— Nesse caso está interessado em comprar o anel...?




Recebeu sessenta dólares e percebeu que tinha sido enganado. Mas o que possuía valia mais para si do que o anel, mais do que as centenas de anéis iguaizinhos que trazia consigo. Naquele momento começava a adquirir confiança e dinheiro.
Com um pouco deste, comprou bacon, seis ovos, pão, algumas batatas, meia dúzia de vegetais — dez quilos de comida, tudo o que conseguia carregar.
A sua presença despertou certa curiosidade nas ruas, mas ninguém fazia perguntas e ele não se pronunciou por iniciativa própria.

Não teria feito qualquer diferença; jamais voltaria àquela cidade de Kentucky.

Quando deixou o local sentiu-se bastante bem, apesar de todo o peso, das dores nas articulações e nas costas, por ter dado o primeiro passo, ter começado, por possuir seu primeiro dinheiro americano. Mas quando se encontrava já distante da cidade, caminhando por um campo estéril, em direção às colinas onde ficava seu acampamento, tudo aquilo o atingiu com um choque esmagador — a estranheza, o perigo, a dor e o incômodo do seu corpo — e caiu ao chão e ali ficou.

O corpo e o espírito a gritarem contra a violência de que estavam a ser vítimas por parte daquele lugar, que era o mais alienígena de todos os lugares.
Estava doente; doente por causa da viagem longa e perigosa que fizera, doente por causa de todos aqueles remédios — os comprimidos, as inoculações, os gases inalados, doente de preocupação, em crise e terrivelmente doente devido ao fardo de seu próprio peso.

Soube durante anos que isso aconteceria quando chegasse ali, quando, por fim aterrasse e começasse a pôr em prática aquele plano complicado, preparado durante muito tempo.
Aquele lugar, por mais que o tivesse estudado, por mais que tivesse ensaiado seu papel, era tão extraordinariamente alienígena—a sensação naquele momento era de muito cansaço.

Ele não era um homem.

Contudo era muito semelhante a um homem.

Tinha um metro e oitenta e dois de altura, e certos homens eram até mais altos do que aquilo; a pele era tão branca como o de um albino, e possuía olhos coloridos.

Sua envergadura era de uma leveza pouco provável, tinha feições delicadas, dedos longos e finos, e uma pele quase translúcida.

Algo no seu rosto fazia lembrar um duende, olhos grandes, inteligentes e límpidos, e o cabelo crescera sobre as orelhas. Passava a impressão de ser ainda jovem.

Havia também outras diferenças: as unhas, por exemplo, eram artificiais já que a natureza não o provera desse detalhe. Cada um dos dois pés tinham quatro dedos e não possuía apêndice nem dente do siso.

Era para ele impossível sofrer de soluços, visto que seu diafragma, bem como o resto do aparelho respiratório, era muito bem desenvolvido.
Pesava pouco; cerca de quarenta quilos.

Apesar de tudo tinha pestanas, sobrancelhas, polegares opositores, visão binocular e mais mil características fisiológicas de um ser humano.
Nunca teria verrugas; mas úlceras estomacais, sarampo e cáries dentárias eram possíveis que o afetassem.

Era humano, mas não propriamente um homem.

Assim como os homens, era susceptível ao amor, ao medo, à dor física intensa e à auto piedade.

Meia hora depois já se sentia bem melhor. O estômago ainda e contraía e achava que não poderia erguer a cabeça, mas tinha a sensação de que a primeira crise passara e começou a olhar para o mundo que o rodeava, com um ar mais objetivo.

Sentou-se e observou o campo onde se encontrava.





Tratava-se de uma pastagem suja, plana, com áreas minúsculas de mato castanho, maciços de losna e manchas vítreas de neve, que havia tornado a congelar. A atmosfera estava bastante límpida e o céu nublado, de forma que a luz era difusa e suave, não lhe agredindo os olhos como a luz resplandecente do Sol o fizera dois dias antes.

Havia um sítio em ruínas com celeiro, do outro lado do maciço de árvores escuras e selvagens que orlavam um charco.
 

 
Avistou a água através do arvoredo e isso tirou sua respiração, por ser tão abundante.
Já a tinha visto água assim antes, nos seus dois dias na Terra; mas ainda não se habituara. Era outra daquelas coisas que esperava, mas que ainda o chocava. É claro que sabia da existência dos grandes oceanos, dos lagos e rios, sempre o soubera, desde rapaz; mas a visão de tal abundância num só charco deixava-o sem respiração.

Começou também a distinguir uma espécie de beleza no aspecto estranho do campo. Era bastante diferente do que lhe haviam ensinado a esperar — assim como, já o descobrira, muitas das coisas desse mundo —, todavia sentia prazer com cores e texturas alienígenas, novas perspectivas e cheiros.

Também os sons; porque tinha ouvidos muito apurados e escutava ruídos estranhíssimos e agradáveis; os diversos atritos e estalidos dos insetos que haviam sobrevivido ao frio do início de Novembro, e, até, se encostasse a cabeça ao chão, os murmúrios levíssimos e sutis da própria terra.

De repente houve uma vibração no ar, uma arremetida de asas negras, depois um chamado rouco e lamentoso, e uma dúzia de corvos atravessou voando o campo.

O antheano observou-os até estarem fora do alcance da vista, e sorriu.
Era afinal de contas, um mundo lindo...





Seu acampamento ficava num lugar não cultivado, escolhido com cautela dentro da região carbonífera abandonada do leste de Kentucky. Num raio de vários quilômetros não havia nada a não ser solo estéril, pequenas manchas de losna e alguns afloramentos de rocha fuliginosa.
Sua tenda estava montada perto de um desses afloramentos. O material da tenda era cinzento e feito de um tecido que parecia ser sarja de algodão.

Encontrava-se quase exausto ao chegar ali e precisou repousar vários minutos antes de abrir o saco e tirar a comida. O fez com todo o cuidado, calçando luvas finas, antes de tocar nas embalagens, e colocando-as depois numa mesinha dobrável. Retirou debaixo da mesa um conjunto de instrumentos e colocou-o junto das coisas que trouxera de Haneyville.

Por um tempo olhou para os ovos, as batatas, aipos, rabanetes, feijões, salsichas e cenouras. Sorriu. A comida parecia inocente. Então pegou num dos instrumentozinhos metálicos, meteu uma das extremidades numa batata e começou a fazer a análise qualitativa...

Três horas mais tarde comeu a cenoura crua e deu uma dentada no aipo, que lhe fez arder a língua.
 A comida era boa, extremamente alienígena, mas boa.
Depois fez uma fogueira e cozeu o ovo e a batata.
Tinha encontrado na salsicha alguns aminoácidos sobre os quais não estava bem certo. Mas não havia perigo, a não ser quanto às bactérias onipresentes no resto da comida.
Era tal como esperara. Achou a batata deliciosa.

Estava muito cansado, mas antes de deitar-se no seu saco-cama, saiu para dar uma olhadela no local onde destruirá o motor e os instrumentos da sua nave individual, em seu primeiro dia na Terra.



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