domingo, 3 de agosto de 2014

O número secreto


O Dr. Simon Tomlin estudou o homem sentado do outro lado de sua mesa.

Balançando para frente e para trás em sua cadeira, com os ombros curvos, seus olhos correndo pela sala, o lábio superior se contorcendo a cada segundo, o homem parecia um esquilo.

Era difícil de acreditar que, antes de seu colapso, este homem tinha sido um dos matemáticos teóricos mais importantes do mundo.



"Como você está hoje, Professor Ersheim?" perguntou Dr. Tomlin.

"Bem, bem, obrigado, muito bem", respondeu o homem sem olhar para ele.

"Você dormiu bem?"

"Oh, sim, eu tenho dormido muito bem, como um bebê", respondeu Ersheim, balançando a cabeça
vigorosamente em sincronia com o seu balanço. Ainda sem contato visual.



 
"É bom ouvir isso."

Ersheim de repente parou de se balançar e olhou diretamente para Tomlin, olhos esbugalhados.

"Pare com esta coisa de sou-um-cara-legal, Doutor", disse ele bruscamente. "Eu sei que você acha que sou louco, você não acha que eu sei que você pensa que eu sou louco Isso é o que todos pensavam sobre Laszlo Bleem, também, É o que eles querem que você pense." Ele olhou para Tomlin, sem se mexer, sem piscar.

"De quem você está falando, Professor? Quem quer que todos pensem que você é louco?"

"Os números, Doutor, os números. Eles dizem que os números não mentem, só que eles  mentem o tempo todo, eles sempre mentiram Mas não para mim. Oh, não, eu vejo através de suas mentiras, sei o que estão escondendo", disse Ersheim.

Começou a balançar novamente.

"E o que seria isso, professor?"

"Bleem, isso sim. Bleem!" gritou Ersheim, batendo os punhos contra a mesa. Em seguida se inclinou para Tomlin e sussurrou: "O segredo do número inteiro entre três e quatro."

"Nós já falamos sobre isso, professor - não há número inteiro entre três e quatro."

"Diga isso ao Laszlo Bleem, doutor" disse Ersheim. "Mas você não pode - ele está morto", acrescentou, rindo. Então sussurrou: "Ele morreu por tentar".

"Laszlo Bleem morreu em um acidente de carro, Professor."

"Oh, cresça! O homem publicou um artigo detalhando a descoberta de um até agora desconhecido número inteiro em algum lugar entre um e vinte, afirmando que estava trabalhando em uma prova de sua existência e sua localização exata, e uma semana depois ...PUFF, Bleem morre em um acidente de carro e sua casa é queimada, destruindo todas as suas notas. No dia seguinte o erro no sistema de computador da sua universidade apaga todas as suas anotações eletrônicas. Bleem chegou muito perto, entenda, e  foi eliminado. Assim como eu vou ser, se você não me ouvir."

Neste ponto, Tomlin decidiu que era hora de jogar o seu trunfo.

"Tudo bem Professor, vamos dizer que seja como você diz, exista secretamente um número inteiro entre três e quatro. Inteiros positivos são a contagem de números, certo?"

"É isso aí, Doutor", assentiu Ersheim, e depois como que para confirmar esse fato, ele começou a contar, movendo a cabeça de um lado para o outro: "um, dois, três, bleem, quatro ..."

"Isso é o suficiente, professor" interrompeu Tomlin. "Agora, se bleem é um número de contagem, o que significa que você pode ter bleem de alguma coisa."

"É claro", disse Ersheim. "Eu não sabia que você era um matemático, doutor." Ele olhou para Tomlin com o que, provavelmente, era para ser um sorriso, mas parecia mais uma carranca.

"Basta me acompanhar, professor", disse Tomlin enfiando a mão no bolso e tirando de lá um saquinho plástico.

"O que é isso, doutor?" perguntou Ersheim.

"Jujubas" disse Tomlin sorrindo. Rasgou o pacote e esvaziou seu conteúdo, cerca de duas dezenas de jujubas multicoloridas, sobre a mesa.

 
"Agora Professor Ersheim, eu gostaria que, por favor, separe bleem dessas jujubas" disse Tomlin, com um sorriso de auto-satisfação no rosto.

"Tudo bem" disse Ersheim, e estendeu a mão e empurrou três jujubas para o seu lado da mesa. Ele olhou para elas com desconfiança, em seguida, olhou para a pilha principal, depois de volta para os três diante dele, e rapidamente pegou outra e colocou-a ao lado delas. Estudou os quatro por um momento, então deslizou a quarta de volta em direção a Tomlin, mas quando estava na metade do caminho para a pilha principal, a pegou de volta e acrescentou às três, visivelmente agitado. Ele então pegou cada uma das quatro jujubas e segurau-a junto de seus olhos, olhando com desconfiança profunda. Quando havia inspecionado todas as jujubas, recostou-se na cadeira, com uma expressão de resignação frustrada no rosto.

"Eu não posso fazer isso, doutor", disse ele.

"Então bleem não é um inteiro, afinal de contas" disse Tomlin triunfante.

"Não!" gritou Ersheim e varreu sua mão sobre a mesa de trabalho, atirando as jujubas pela sala.

"Bleem existe! Algo me impede de separar bleem de jujuba! Eu posso ter três ou quatro, mas não bleem!"

 
"Calma, professor. Eu estava aqui, e vi o que você estava fazendo, e não havia nada o interrompendo, nada impedindo-o de separar bleem de jujubas, exceto pelo fato de bleem não existir."

"Mas existe" disse Ersheim timidamente. Ele acrescentou, com crescente convicção: "Existe. E posso prová-lo!"

"Como você pode provar isso, professor, se você insiste que há uma força onipresente, invisível mantendo o segredo?"

"Lembre-se, doutor" disse Ersheim em tom conspiratório, "que eu sou um matemático, e um muito bom. Toda a matemática tem sido adulterada a fim de esconder a existência de bleem, mas não perfeitamente, ahhh não. Há um ramo obscuro da teoria dos números que eu ajudei a inventar, cerca de vinte anos atrás, e eu acho que posso aplicar alguns dos seus teoremas para provar que, para a matemática ser coerente, deve haver um número inteiro entre três e quatro. Esse foi o tema da minha palestra, durante a qual eu fui rudemente interrompido por vários dos meus colegas e perdi a calma."

Perdeu a cabeça, de fato, pensou Tomlin. Levou duas semanas para reparar todos os estragos na sala de aula.

"Seus colegas não pareceram impressionados com a sua prova, professor", disse Tomlin.

"Isso é porque eu não trabalhei em todos os elementos da prova ainda" disse Ersheim. "E mesmo se tivesse, nenhum desses idiotas sabe sobre a minha pesquisa" acrescentou ele com raiva. "Mas eu estou perto, doutor, eu posso sentir isso. Apenas deixe-me sair daqui, deixe-me voltar para a minha pesquisa, e eu vou ter a prova em apenas alguns meses. Ou, pelo menos me permita ter acesso a uma caneta e uma folha de papel para que eu possa trabalhar aqui."

Ersheim estava claramente agitado, por isso Tomlin decidiu não agravar ainda mais.

"Tudo bem, professor" disse Tomlin "Vou pensar sobre o que me disse. Eu só tenho mais uma pergunta para você."

"Qual?"

"Que razão alguém poderia ter para manter em segredo a existência de um número?"

"Eu não tenho certeza" disse Ersheim, balançando a cabeça. "Talvez bleem tenha alguma propriedade mística - não me olhe assim, doutor, pode não acreditar em mim, mas a numerologia sempre teve um público fanático". Depois de um momento de pausa, o rosto de Ersheim iluminou-se com entusiasmo. "Ou talvez o conhecimento de bleem nos permita atingir um nível muito mais elevado de sofisticação matemática. Ele pode nos permitir chegar a uma teoria matematicamente viável da viagem no tempo, ou uma comunicação mais rápida do que a luz, ou quem sabe o quê."

"Entendo" disse Tomlin, "e você realmente acha que a descoberta de bleem pode tornar essas coisas possíveis?"

"Eu não sei, mas quem pode dizer que não vai?" disse Ersheim com um encolher de ombros
.
"Compreendo" disse Tomlin. "Bem, Professor, eu estou muito feliz por termos tido esta conversa. Você me deu muito o que pensar. Vejo você em um alguns dias."

Apertaram as mãos e Ersheim saiu da sala.

Tomlin ficou lá por um tempo, olhando para as jujubas espalhadas ao chão.

Como é triste, pensou Tomlin, que um homem que dedicou toda a sua vida ao estudo dos números, agora possa pensar que esses mesmos números estão vindo atrás dele. Fazia sentido, é claro, que a paranóia se manifestasse em relação a algo com que Ersheim já estava obcecado.

Tomlin não estava totalmente satisfeito com a sessão daquela tarde. Esperava que o exemplo da jujuba forçaria Ersheim a enxergar o absurdo de sua posição, mas tudo o que fez foi agravá-lo. Ainda assim, uma reação tão forte indicava que talvez Tomlin tivesse encontrado um ponto sensível na ilusão de Ersheim.

Satisfeito do pouco progresso feito, Tomlin guardou suas coisas e foi para casa. Antes de deixar o hospital, instruiu os atendentes que assistiam Ersheim, que seu paciente não deveria, em circunstância alguma, ter permitido o acesso a materiais de escrita.

Tomlin teve problemas para dormir naquela noite.

Toda vez que fechava os olhos, era confrontado por visões de um exército de números gigantes tombando sobre ele, guiados por uma forma sombria que era bleem.

Frustrado, puxou um bloco de notas que mantinha ao lado da cama e anotou os números de um a dez. Pareciam tão inofensivos, pensou, apenas rabiscos numa folha de papel, e ainda assim os números eram a base da ciência, e assim, tornavam a civilização moderna possível.

Olhou para eles de novo, com mais respeito, e leu mentalmente um por um.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez.

Estavam todos lá; não havia necessidade nem espaço para bleem.

Com a mente finalmente tranquilizada, voltou a dormir.

Foi acordado na manhã seguinte pelo toque de seu telefone. Era Gene, um dos assistentes do hospital. Ersheim tinha desaparecido.

Tomlin correu para o hospital.
Na chegada foi recebido por Gene, que explicou a ele o que tinha acontecido, negando a responsabilidade sempre que podia.

Ersheim estava ok às dez da noite anterior, quando Gene fez a última verificação, mas quando fez a ronda da manhã às seis, Ersheim não estava em seu quarto.
A porta de Ersheim estava trancada pelo lado de fora, e o vigia noturno nada relatara de incomum.

Ersheim tinha desaparecido no ar.

"Eu acho que você deve ver seu quarto" acrescentou Gene ao fim.

Tomlin seguiu Gene para o quarto de Ersheim.
Quando o viu, seus piores medos foram confirmados.

As paredes estavam cobertas de equações, fileiras e mais fileiras de símbolos matemáticos, a maioria dos quais Tomlin não reconheceu, escrito por uma mão trêmula, em tinta púrpura avermelhada.

 
Ersheim tinha trabalhado ao luar, sem parar, durante toda a noite.

Olhando ao redor do quarto, Tomlin notou em um dos cantos uma pequena piscina do que devia ter servido a tinta para Ersheim. Caminhou até ela e encontrou um copo de plástico derrubado. Mergulhou o dedo na tinta e provou. Suco de uva.
Flutuando na poça de suco, um canudo.

Empilhados em outro canto da sala estavam todas as roupas de Ersheim.
Não havia nenhum sinal dele.

"Parece que ele nos deixou um aperitivo" disse Gene por trás de Tomlin.
Tomlin se virou à tempo de ver Gene em pé ao lado da mesa.
Gene se aproximava de um dos três pequenos objetos escuros sobre a mesa.

"Não toque aqueles!" gritou Tomlin.

"São apenas jujubas, Doutor" respondeu Gene atirando uma delas no ar.

Tomlin assistiu com horror a jujuba descrever uma parábola no ar, terminando na boca de Gene.

"Quer uma?" perguntou Gene apontando para as restantes.

Tomlin olhou para a mesa de cabeceira. Havia três delas sobre a mesa.





O número secreto por Igor Teper (20/11/2000)

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