segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
Don't Look Now - Daphne du Maurier (Parte 5)
Atravessou a Piazza San Marco agora repleta de turistas nos cafés, três orquestras indo a todo vapor em rivalidade harmoniosa, enquanto o policial manteve um discreto dois passos para a esquerda e nunca disse uma palavra.
Chegaram à delegacia e subiram a escada para a mesma sala onde ele tinha estado antes. Viu imediatamente que não era o oficial que conhecera antes, mas um outro que estava sentado atrás da mesa, um indivíduo de rosto pálido com uma expressão azeda, enquanto as duas irmãs estavam sentadas em cadeiras, com alguns subalternos por trás delas. A escolta de John imediatamente dirigiu-se ao oficial falando em italiano, enquanto o próprio John, depois de um momento de hesitação, avançou para as irmãs.
— Houve um erro terrível. Eu não sei como me desculpar com vocês. É tudo culpa minha, inteiramente.
A irmã mais ativa, nervosa, não se conteve.
— Nós não entendemos — disse com forte sotaque escocês. — Nós demos boa noite para sua esposa ontem à noite no jantar, e não a vimos desde então. A polícia veio a nossa pensão e nos disse que sua esposa estava desaparecida e que o senhor tinha apresentado uma queixa contra nós. Minha irmã é frágil e ficou consideravelmente perturbada.
— Um erro! Um erro terrível!
Ele se virou para o policial que estava se dirigindo a ele. Seu inglês era muito inferior ao do oficial anterior. Tinha a declaração de John sobre a mesa a frente dele, e bateu-a com um lápis.
— A declaração é uma mentira? Você não fala verdade?
— Eu acreditava que fosse verdade naquele momento. Eu poderia ter jurado em um tribunal que vi minha esposa com estas duas senhoras em um vaporetto no Grande Canal, esta tarde. Agora percebo que eu estava enganado.
— Nós não estivemos perto do Grande Canal durante todo o dia — protestou a irmã. — Nem mesmo a pé. Fizemos algumas compras no Merceria esta manhã e ficamos dentro de casa durante toda a tarde. Minha irmã estava um pouco indisposta. Eu disse ao polícial uma dúzia de vezes, e as pessoas na pensão corroboraram a nossa história. Ele se recusou a ouvir.
— E a signora? O que aconteceu com a signora? — Perguntou o policial furioso.
— A signora, minha esposa está segura na Inglaterra — explicou pacientemente. — Eu falei com ela
ao telefone logo após as sete. Está hospedada com amigos.
— Então, quem você viu no vaporetto de casaco vermelho?
— Meus olhos me enganaram. Achei ter visto minha esposa e essas senhoras, mas não, não foi assim. Minha esposa estava no avião e estas senhoras na pensão.
Era como falar chinês.
O policial ergueu os olhos aos céus e bateu na mesa. — Então, todo esse trabalho por nada! Hotéis e pensões procurando uma inglese signora perdida, enquanto nós temos muitas outras coisas a fazer.
Você errou! Você talvez teve demasiado vino no mezzo giorno e viu centenas de signore em casacos vermelhos em cem vaporettos! E a signorine? Quer fazer queixa contra essa pessoa?
Ele estava se dirigindo a irmã mais ativa.
— Oh, não, não mesmo! Foi tudo um engano. Nosso único desejo é retornar imediatamente para a pensão.
O policial resmungou e em seguida apontou para John.
— Você é homem de muita sorte. Estas signorine poderiam abrir queixa contra você, assunto muito sério!
— Tenho certeza que sim...
— Por favor, não pense nisso — exclamou a irmã horrorizada. — Nós não queremos saber de uma coisa dessas.
Era a sua vez dela pedir desculpas ao policial. — Espero que não precisemos tomar mais do seu precioso tempo.
Ele acenou com a mão despedindo-se e falou em italiano para o subalterno.
— Este homem acompanhará vocês até a pensão. Buona sera, signorina — e ignorando John,
sentou-se novamente em sua mesa.
— Eu vou com vocês — disse John. — Quero explicar exatamente o que aconteceu.
Desceram as escadas, a irmã cega uma vez fora, voltou seus olhos cegos para John.
— Você nos viu, e sua esposa também. Mas não hoje. Você nos viu no futuro...
Sua voz era mais suave do que a de sua irmã, mais lenta e com dificuldade.
— Não entendo — respondeu John perplexo.
Ele se virou para a outra irmã e esta balançou a cabeça para ele, franzindo a testa, e pôs o dedo nos lábios.
— Venha querida. Você sabe que está muito cansada, e eu quero te levar para casa.
Então, virou-se para John dizendo: — Ela é psíquica. Sua esposa lhe disse, eu acredito, mas eu não quero que ela entre em transe aqui na rua.
Deus me livre, pensou John, e a pequena procissão começou a mover-se lentamente ao longo da rua, do lado de fora da sede da polícia, seguindo o canal à esquerda.
O progresso era lento por causa da irmã cega, e havia duas pontes para transpor. John estava completamente perdido após a primeira curva, mas não poderia ter se importado menos. A escolta policial estava com eles, e mesmo assim as irmãs sabiam para onde estavam indo.
— Tenho que me explicar — disse John suavemente. — Minha esposa nunca me perdoaria se eu não o fizesse.
Enquanto caminhava foi desenrolando toda a história inexplicável, mais uma vez, começando com o telegrama recebido na noite anterior e da conversa com a Sra Hill, a decisão de voltar para a Inglaterra no dia seguinte, Laura por via aérea, e o próprio John de carro e trem. Já não parecia tão dramático quanto seu depoimento à polícia, possivelmente por conta de sua convicção de algo estranho estar ocorrendo, a descrição dos dois vaporettos se cruzando no meio do Grande Canal tinha perdido a qualidade sinistra, sugerindo rapto por parte das irmãs, de uma Laura cativa e desnorteada.
Agora que nenhuma das mulheres significava qualquer ameaça para ele, falou com mais naturalidade, mas com grande sinceridade, sentindo pela primeira vez que de alguma forma, nutriam simpatia por ele e iriam entender.
— Vocês entendem — explicou num esforço final — eu realmente acreditava que tinha visto vocês com Laura, e eu pensei que Laura...
Hesitou porque esta tinha sido sugestão do policial e não dele.
—... Eu pensei que talvez Laura tivesse tido alguma perda súbita de memória, tinha encontrado-as no aeroporto, e vocês a trouxeram de volta a Veneza.
Atravessaram uma grande praça e estavam se aproximando de uma casa com um sinal de pensão acima da porta. Sua escolta parou na entrada.
— É aqui? — Perguntou John.
— Sim — disse a irmã. — Eu sei que não é nada especial, mas é limpa e confortável, e foi recomendada por amigos.
Virou-se para a escolta. — Grazie, grazie.
O homem acenou com a cabeça brevemente e desejou-lhes boa noite e desapareceu em direção ao caminho antes percorrido por eles.
— Você vai entrar? Estou certa de que podemos encontrar um pouco de café, ou talvez você prefira chá?
— Não. Preciso voltar ao hotel. Partirei amanhã cedo. Só queria ter certeza de que vocês entenderam o que aconteceu, e que me perdoarão.
— Não há nada a perdoar. É um dos muitos exemplos de segunda visão que minha irmã e eu experimentamos uma ou outra vez, e eu gostaria de registrá-lo para nossos arquivos, se você nos permitir.
— Bem, quanto a isso, é claro que sim, mas acho difícil de entender. Isso nunca aconteceu comigo antes.
— Não conscientemente, talvez, mas muitas coisas acontecem para nós, das quais não temos conhecimento. Minha irmã sentiu que você tinha habilidade psíquica. Ela disse a sua esposa. Ela também disse a sua esposa, ontem à noite no restaurante, que vocês estavam em perigo, que você deveria deixar Veneza. Bem, você não acredita agora que o telegrama era prova disso? Seu filho estava doente, possivelmente perigosamente doente, e por isso era necessário você voltar para casa imediatamente. Graças aos céus sua esposa voltou para estar ao lado dele.
— Sim, é verdade, mas por que eu a vi no vaporetto com você e sua irmã, quando ela estava a caminho da Inglaterra?
— Transferência de pensamento, talvez. Sua esposa pode ter pensando em nós. Nós demos o nosso endereço, se desejasse entrar em contato conosco. Estaremos aqui mais dez dias. E ela sabia que iríamos passar qualquer mensagem que minha irmã pudesse ter sobre seu pequeno no mundo espiritual.
— Sim — disse John desajeitadamente. Teve uma imagem súbita bastante desagradável das duas irmãs. — Olhe, este é o nosso endereço em Londres. Eu sei que Laura terá o prazer de falar com vocês novamente.
Ele rabiscou seu endereço e telefone em uma folha rasgada do diário de bolso e entregou a ela. Ele podia imaginar o resultado. Laura numa noite com as "velhinhas queridas" passando por Londres em seu caminho para a Escócia, e o mínimo que poderia fazer era oferecer-lhes hospitalidade.
Em seguida fariam uma sessão na sala de estar.
— Boa noite e desculpas mais uma vez, por tudo o que aconteceu esta noite.
Apertou a mão da primeira irmã, em seguida, virou-se para a cega.
— Espero que não esteja muito esgotada.
Os olhos cegos eram desconcertantes. Ela segurou sua mão rapidamente, não iria deixá-lo ir.
— A criança — disse ela falando com uma voz em staccato — a criança... Eu posso ver a criança...
— Em seguida, para seu espanto, um cordão de espuma apareceu no canto de sua boca e sua cabeça pendeu, e ela meio que desabou nos braços de sua irmã.
— Temos de levá-la para dentro — disse a irmã apressadamente. — Está tudo bem, ela não está doente, é o começo do transe.
Ele ajudou levando a irmã, rígida, para dentro de um quarto e colocou-a na cama próxima, com a irmã a apoiá-la.
— Não se preocupe — disse a irmã. — Eu acho que é melhor você ir.
— Estou terrivelmente arrependido... — John começou a dizer, mas a irmã já tinha virado as costas e com a outra signorina, estava debruçada sobre sua irmão gêmea, de onde sons peculiares, asfixia talvez, partiam. Como um último gesto de cortesia, perguntou se havia alguma coisa que poderia fazer, não recebeu qualquer resposta.
Virou-se e começou a caminhar em frente à praça.
Olhou para trás uma vez, e viu que elas tinham fechado a porta da pensão.
Que final de noite! E tudo culpa dele. Pobres velhinhas, primeiro arrastadas para a sede da polícia e submetidas a um interrogatório, e depois um ataque desses. O mais provável era epilepsia.
Fora isso, onde diabos estava? A praça com a inevitável igrejinha em uma extremidade estava deserta. Não conseguia se lembrar de que maneira tinham vindo da sede da polícia até ali.
Espere um minuto! A igreja tinha uma aparência familiar.
Aproximou-se procurando pelo seu nome que era, por vezes, escrito em avisos na entrada. San Giovanni in Bragora. Ele e Laura tinham adentrado ali uma manhã a observar uma pintura de Conegliano. Certamente era perto da Riva degli Schiavoni e da lagoa San Marco, com todas as luzes brilhantes da civilização e os turistas passeando.
Mergulhou por um beco, mas na metade hesitou. Não parecia certo, embora familiar por alguma razão desconhecida. Então percebeu que não era o beco que tinham tomado antes quando visitaram a igreja, mas o que tinham caminhado na noite anterior, só que no sentido oposto. Sim, era isso,
Seria mais rápido atravessar a pequena ponte sobre o canal estreito, e iria encontrar o Arsenal à sua esquerda e a rua que leva até a Riva degli Schiavoni à sua direita. Mais simples do que refazer seus passos e se perder mais uma vez no labirinto de ruelas.
Ele tinha quase chegado ao final do beco, com a ponte à vista, quando viu a criança.
A mesma menina de capa que tinha saltado entre os barcos amarrados na noite anterior e desaparecera nos degraus de uma das casas. Desta vez ela estava fugindo na direção da igreja do outro lado. Corria como se sua vida dependesse disso, e em um momento ele viu o porquê.
Um homem estava em sua perseguição.
A criança veio correndo através da ponte, e John com medo de assustá-la ainda mais, apoiou-se escondendo sob a entrada de uma entrada que dava para um pequeno pátio.
Lembrou-se do grito de bêbado na noite anterior, que tinha vindo de uma das casas perto de onde o homem estava agora.
Com um lampejo de intuição conectou os dois eventos, o terror da criança e os assassinatos relatados nos jornais, supostamente o trabalho de um louco. Podia ser coincidência, uma criança correndo de um parente embriagado, e ainda, e ainda...
Seu coração começou a bater forte em seu peito, o instinto advertindo-o para sair dali, agora, voltar para onde ele tinha vindo, mas e quanto a criança?
O que iria acontecer à criança?
Então ouviu passos. Ela desaparecera pela porta aberta de um prédio, presumivelmente uma entrada dos fundos. Estava chorando enquanto corria, não era o som comum de uma criança assustada, mas a ingestão de pânico da respiração de um ser indefeso em desespero. Seus pais em casa iriam protegê-la, mas a quem ele poderia avisar?
Hesitou um instante, depois seguiu-a.
— Olá! Está tudo bem — ele gritou. — Não vou deixar ele te machucar, está tudo bem – disse amaldiçoando sua falta de italiano, mas possivelmente uma voz amiga, mesmo em um idioma estranho para ela, poderia tranquilizá-la. Mas foi inútil. Ela correu soluçando até outro lance de escadas em espiral, que subia ao andar de cima, e já era tarde demais para ele desistir.
Ouviu sons do perseguidor no pátio, alguém gritando em italiano, um cachorro latindo.
É isso, pensou, estamos nisso juntos agora, eu e a criança.
A menos que encontrasse uma porta interna lá encima, e que desse um jeito de trancá-la, ele iria alcançá-los. Subiu as escadas correndo e se lançou em uma sala que conduzia a um pequeno patamar.
Seguiu para dentro e fechou sua porta. Céu Misericordioso!
A criança estava junto da parede.
Se gritasse por ajuda alguém certamente ouviria, alguém viria antes do homem.
O quarto estava vazio, exceto por um colchão em uma velha cama, e um amontoado de trapos em um canto.
— Está tudo bem — disse ofegante. — Está tudo bem!
Estendeu a mão, tentando sorrir. A criança ficou diante dele.
Ele olhou para ela paralisado, tamanha incredulidade e horror.
Não era uma criança, mas uma pequena anã, cerca de noventa centímetros de altura, com uma grande cabeça adulta quadrada, grande demais para seu corpo, cachos de um cabelo feio, cinzento, caindo nos ombros, e não estava chorando, estava sorrindo para ele, balançando a cabeça para cima e para baixo.
Em seguida ouviu passos e o martelar na porta, e um cachorro latindo, e não uma só voz, mas várias.
Gritos.
— Abra! É a polícia!
A criatura se atrapalhou com sua manga ao puxar uma faca e atirou-se sobre ele com uma força medonha, perfurando sua garganta.
John tropeçou e caiu. Uma coisa pegajosa cobria suas mãos. A criatura estava balbuciando em seu canto.
E viu o vaporetto com Laura e as duas irmãs atravessando o Grande Canal, não hoje, não amanhã, mas no dia seguinte, e soube que triste finalidade as reunira.
As vozes e o cão latindo tornavam-se fracas e, Deus, pensou, que estranha maneira de morrer...
FIM
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